Análise: Muita retórica, pouco trem

Dimmi Amora, da Agência iNFRA

Corre na Justiça Federal de Goiás uma Ação Civil Pública para determinar que o governo federal opere parte do Tramo Central da Ferrovia Norte-Sul, um trecho de 855 km entre Palmas (TO) e Anápolis (GO), inaugurado pelo menos cinco vezes pelos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff entre 2010 e 2015, e que só ficou operacional em 2016.

Na ação, é descrita a perda milionária que, todos os dias, é imposta ao país pelo não uso da ferrovia pronta. Nessa conta entram preço maior do frete de mercadorias para andar de caminhão, gastos a mais com diesel, perdas de vidas nos acidentes rodoviários etc.

Transportar por trem tem um custo menor que por caminhão. No mais recente estudo do governo, o transporte por caminhão de cargas agrícolas previsto em 2025 vai custar R$ 20 bilhões. Se metade da carga fosse de trem, o custo cairia para algo na faixa dos R$ 14 bilhões.

Os R$ 6 bilhões que seriam gastos em algo que poderia ser mais barato sairão do seu bolso. O apelido dele é Custo Brasil, país onde 2/3 de tudo anda de caminhão. Em geral, no mundo civilizado, a proporção é na casa do 1/3.

Quem deveria operar essa via é a Valec, estatal criada na década de 1980 com a finalidade de levar a ferrovia do Maranhão a São Paulo, criando o que se chamou de espinha dorsal das ferrovias do Brasil, concentradas no litoral por terem sido planejadas pelo Império para atender locais onde havia gente e carga na época. O trabalho da Valec não está concluído quase 35 anos depois de iniciado.

No caso do trecho pronto entre Tocantins e Goiás, a estatal faz poucas e irregulares operações de transportes desde que ela ficou pronta. Um investimento novo, de mais de R$ 8 bilhões, praticamente inútil.

A solução encontrada pelo governo para operar a via pronta foi concedê-la à iniciativa privada num leilão cujas regras foram apresentadas em audiência pública, debatidas e revisadas pelo TCU (Tribunal de Contas da União) nos últimos dois anos e ocorre hoje (29), em São Paulo.

Além de poder iniciar imediatamente a operação desse trecho pronto, quem ganhar ainda ficará responsável por terminar a outra parte da Norte-Sul, os 682 km que ligam Goiás a São Paulo, que a Valec tinha a incumbência de terminar em 2014 e… não terminou. Também terá que comprar máquinas e equipamentos e pagar uma outorga de no mínimo R$ 1,3 bilhão. A estimativa é de R$ 4 bilhões de investimentos em 30 anos de contrato.

Em 2016, quando o governo lançou a Audiência Pública para essa concessão, perguntei aos técnicos do governo se eles acreditavam que a Valec seria capaz de, em um ano, de terminar os dois lotes de obras que ainda não estavam prontos. Responderam que sim. Dois anos depois, viram que não e passaram essa incumbência a quem vencer a disputa.

 

R$ 30 milhões por ano

Com os instrumentos que o poder público tem, para terminar e operar essa ferrovia, o Tramo Central, o governo não gastaria menos de cinco anos, numa perspectiva otimista. A conservação do que está pronto e inoperante custa não menos que R$ 30 milhões por ano, na estimativa do próprio governo.

A obra do trecho entre São Paulo e Goiás está parada porque, como em praticamente todas as obras da Valec, foi detectado superfaturamento pelo TCU. Nesse caso, o superfaturamento é mais complexo porque em alguns trechos ele foi feito com o uso de material abaixo das especificações. Em um caso específico, a brita, o que ajuda a dar sustentação aos trilhos, tem risco de não fazer essa função, segundo apurou o tribunal. Trens descarrilham quando isso ocorre.

O responsável por essa contratação é o ex-presidente da Valec, José Francisco das Neves, o Juquinha. Indicado da família Sarney para o cargo, ainda no governo Lula, desde 2013 a frequência dele no sistema prisional é assemelhada à de idas ao shopping de uma família de classe média.

Na prática, o vencedor da concessão de hoje terá que reconstruir boa parte da obra de Juquinha, se quiser operar a ferrovia com o mínimo de segurança. Por sua conta e risco.

Para um operador privado que quiser arriscar-se, a tarefa é contratar uma empresa para analisar e refazer o que tiver que ser refeito. Para o poder público, a regra é cheia de nuances. Seria necessário contratar um estudo, depois elaborar uma modelagem de obras, depois contratar a empresa para fazer a obra e outra para supervisionar. Tudo isso num governo que há cinco anos pega mensalmente emprestado na praça R$ 10 bilhões para pagar conta de consumo e salários e empurra outros R$ 20 bilhões de dívida vencida pra frete.

 

O contraponto

A Associação Ferrofrente, que fez a ação judicial em Goiás para obrigar o governo a encontrar solução para operar a via, é parte agora de um movimento contra a concessão da Ferrovia Norte-Sul, insuflado por grandes empresas usuárias do transporte de carga, a maioria grandes conglomerados econômicos.

Nas ações judiciais e administrativas impetradas contra a disputa, há dois argumentos principais contrários a essa concessão: o direito de passagem, que acabaria por direcionar o edital aos atuais concessionários, e a falta de previsão de transporte de passageiros. São argumentos legítimos de preocupação de qualquer cidadão que tenha o mínimo de respeito pelo país.

A Justiça e o TCU derrubaram todos os pedidos de suspensão até o dia do leilão. A última foi do STF, na noite de ontem (27).

No caso do direito de passagem, ele pode ser resumido no direito de qualquer empresa, atuais concessionárias ou não, de passar com seu trem por qualquer ferrovia até chegar a um porto ou local de transbordo, o grande motivo para os trens de carga existirem.

O setor produtivo reclama que os atuais concessionários ferroviários mantêm um monopólio sobre os trilhos que, na prática, faz com que aqueles bilhões economizados em custos mais baixos de frete em relação ao uso do caminhão sejam apropriados pelas concessionárias. O mais comum de se ouvir nesse mercado é que o preço pago para transportar de trem é 5% a 10% menor que o do caminhão. Ponto.

 

A origem

Os atuais concessionários se originam no início do primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990. Com o país quebrado, o governo tinha como direção se livrar (a palavra é essa mesma) de tudo o que gerasse gastos. E as ferrovias, na mão da então estatal Rede Ferroviária Federal, davam prejuízo de US$ 1 milhão por dia, num tempo em que esse valor não era troco de propina.

Para concedê-las, o governo montou a equação para obter o resultado que precisava. O menor custo possível de operação com a maior vantagem econômica possível, para poder receber o máximo de recursos possíveis da vencedora. Uma equação dessas só funciona com um direcionamento: monopólio para as empresas que já usavam as vias para transportar suas cargas.

Vale, Usiminas, CSN, Gerdau acabaram ficando com as ferrovias e, recentemente, ganharam a companhia da Cosan, que entrou no jogo no início desta década para não tomar uma volta dos antigos controladores de uma das concessionárias, o 3G Capital.

Na prática, as vencedoras dos leilões da década de 1990 não têm obrigação de ampliar a capacidade das ferrovias e nem de operar todos os trechos (só os que ela acha viáveis). Assim, restringiram a operação aos trechos que a Rede Ferroviária já mantinha como rentáveis, mas que pagavam parte da operação do que dava prejuízo (a má gestão era tamanha que mesmo assim a conta não fechava). Hoje, a avaliação é que 2/3 da malha ferroviária do país de quase 30 mil km está abandonada ou subutilizada.

Como não precisam investir em ampliação (elas têm que manter tudo pronto para funcionar, mas algumas nem isso fazem), a inegável melhoria da qualidade da operação dos trechos rentáveis nesse período levou a uma restrição de capacidade para operar mais carga neles. E, pela lei da oferta e da procura, isso virou obviamente custos mais altos para os usuários que precisam levar sua carga por via férrea.

A reclamação dos usuários é que, se a Norte-Sul for concedida como está, esse modelo será reforçado e, por isso, somente as atuais concessionárias teriam interesse na disputa, o que de fato ocorreu. Rumo (da Cosan) que opera numa ponta da Norte-Sul, e a VLI (da Vale), que opera a outra, seguem na disputa [Atualização em 28/03, às 15h30: A Rumo venceu a disputa, com proposta de R$ 2,7 bilhões, contra R$ 2,06 da VLI]. Sem grande entusiasmo, os integrantes do governo defendem que é a melhor solução possível diante do quadro.

 

Mudança no modelo

A constatação de que essa modelagem de concessão mal feita da década de 1990 – ou feita para obter resultados que não eram bons para a sociedade e sim para o governo de plantão – precisava mudar está presente no governo pelo menos desde 2005. Todas as tentativas foram infrutíferas, entre elas a mais alta cartada nesse jogo, realizada em 2013, que foi tentar mudar o modelo ferroviário de vertical para horizontal.

Tecnicamente isso significa quebrar o monopólio que as empresas ferroviárias têm de operar na sua região o trem e cuidar da linha férrea, para deixá-las só cuidando da linha e impedidas ou com restrições para operar os trens. Elas seriam como operadoras de pedágios das rodovias. Os veículos seriam outras empresas que disputariam entre si as cargas dos clientes.

O modelo – também chamado Open Access – é usado na União Europeia e na Austrália, por exemplo. Os EUA usam o modelo fechado, semelhante ao nosso. As empresas ferroviárias são contrárias a esse formato e dizem que ele não é adequado à nossa carga típica para trens (granéis minerais e agrícolas). Dizem ainda que o direito de passagem está regulamentado e é utilizado, cada vez mais, entre as concessionárias existentes.

E têm argumentos para mostrar que a concessão da década de 1990 é bem sucedida: na prática elas levam duas vezes mais carga, e de mais usuários, que a Rede atendia em 1995, com quase 1/20 dos acidentes. A resposta dos clientes: tirando minério e granel agrícola, o país continua praticamente levando quase nada de carga por ferrovia. E não é destino que seja assim.

Quem tem razão? Difícil saber. O fato é que, em mais de 10 anos de muito palavrório, nunca se produziu no país um estudo aprofundado para demonstrar que um modelo seria mais adequado que o outro. Quase tudo o que se diz sobre o tema é opinião, baseada em impressões e experiências pessoais.

 

Regresso ao modelo

Em 2015, o governo decidiu abandonar a ideia do modelo horizontal e voltar ao modelo vertical. Mas, entendendo que de fato monopólio não faz bem para a sociedade, decidiu também mudar os contratos das empresas ferroviárias, aproveitando que elas têm o direito de renová-los uma vez após 30 anos de concessão, contanto que se demonstre que isso seja vantajoso para a sociedade e em novas bases.

A ideia do governo é, nessa mudança, garantir um direito de passagem efetivo, melhor especificado em contrato. Essas regras novas já estão no contrato de quem vencer a disputa do Tramo Central da Norte-Sul, o que vai a leilão hoje.

Não que atualmente o direito de passagem não exista. Foi previsto nos contratos originais mas de forma dúbia e com o governo no início fazendo vista grossa para a imposição monopolista das empresas, foi pouco efetivo.

Em 2011, numa apuração para reportagem sobre por que a linha do trem entre as duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, estava praticamente sem uso, um ex-funcionário da Rede Ferroviária, que havia passado a cooperar com empresas de logística, contou que anos antes havia dado consultoria a uma grande multinacional que queria contratar uma concessionária para transportar sua carga da fábrica até um porto por trem.

Meses de negociação sem que a concessionária decidisse pegar a carga – não havia problema de preço, já que a empresa se dispunha a pagar o teto permitido – e o consultor deu uma dica ao presidente da empresa. “Diga para eles que, se não aceitarem, você vai trazer seus trens da matriz e operar a carga na linha dele.” A decisão da concessionária de transportar a carga saiu em quinze minutos, me disse o consultor.

 

Nova briga na renovação

A renovação dos contratos das atuais concessionárias de ferrovias, ato que em tese encaminha a solução para o problema do monopólio, se arrasta há quatro anos. A perspectiva é que a primeira, a Rumo Malha Paulista de Ferrovias, a principal de São Paulo, seja concluída em 2019. Mais cinco concessões estão na fila.

Sem as novas regras da renovação há uma desvantagem do vencedor da concessão de hoje. Ele terá um contrato em novas bases, e os atuais concessionários ainda têm contratos em regras antigas, o que fez com que a ANTT, responsável pela concessão, tivesse que impor mudanças para garantir um mínimo de acesso do Tramo Central aos portos no Sul e no Norte. Esse foi o principal motivo a levar um interessado, um grupo de empresas nacionais de logística aliado à estatal Russa RZD, a não entrar na disputa.

Quando os contratos forem renovados ou relicitados, as regras se igualarão, é a perspectiva do governo que – pressionado por órgãos de controle e vigiado pela sociedade – parece de fato disposto agora a não permitir a monopolização do setor.

O problema é que no processo de renovação, usuários e concessionários seguem brigando sobre o tema direito de passagem e modelo de ferrovia, tentando angariar para si apoios entre grupos de agentes dos estados para suas teses que – mais uma vez – são majoritariamente opinativas.

Nunca se fez qualquer estudo aprofundado, por exemplo, para demonstrar que é boa ou ruim uma das regras previstas para impedir o monopólio: obrigar a concessionária a ampliar a capacidade da via quando o nível de serviço chegar a 90% da capacidade projetada, como o governo vem fazendo, ou 80%, como querem os usuários. E se o número ideal for 96%, 87%, 74%? E se isso não for suficiente?

E se for mais barato empoderar, dar independência e qualificação ao sistema de regulação para que ele possa, no interesse da sociedade, arbitrar conflitos por espaço sem precisar necessariamente obrigar investimentos que podem servir, por exemplo, por apenas três ou cinco anos, mas que depois podem ficar para sempre ociosos se implantados?

 

Trens de Passageiros

A falta de estudo também permeia o idílico mundo em que todos vão poder viajar de trem entre as principais cidades do país, sentindo-se num filme europeu dos anos 50, e se exige que os atuais trilhos sejam usados para transporte de passageiros.

Mas não vai ser possível.

As linhas de trem no Brasil são em geral do fim do século XIX e início do XX. Concebidas para operar trens movidos a carvão, no irregular terreno do litoral do país e passando por áreas hoje sem população, elas são sinuosas e e estreitas. Usá-las faria com que os comboios de passageiros tivessem a velocidade de uma bicicleta elétrica, em grande parte dos trechos.

Além disso, desconsidera-se a formação urbana do país, extremamente concentrada em poucas cidades, o que é o oposto da europeia, dispersa, além de outros temas como renda, costumes etc. Na prática, poucas ligações no Brasil têm a conformidade semelhante à de lugares onde trens de passageiros funcionam sem grandes subsídios do estado. A macrorregião metropolitana de São Paulo teria essas características.

Mas, novamente, sem estudo aprofundado, começa a se planejar gastar bilhões para recuperar linhas e comprar equipamentos ferroviários para se cumprir um desejo popular, mas que já pode estar até mesmo defasado tecnologicamente, visto que estão em produção meios de transportes com mais que o dobro da velocidade do trem mais rápido do planeta.

Nada no sistema ferroviário é barato, rápido ou simples. Investimentos em ferrovia sem planejamento derrubam impérios econômicos no mundo todo, inclusive no Brasil.

Proporcionalmente, portanto, será de grande valia para governo, concessionárias e usuários de transportes de carga diminuir o desperdício com retórica e advogados e começar a fomentar estudos independentes, profundos e rotineiros sobre o tema.

Sem isso, vamos continuar parados na mesma estação.

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