Uso múltiplo da água traz reflexões sobre o planejamento e preços da energia, diz EPE

Uso múltiplo da água traz reflexões sobre o planejamento e preços da energia, diz EPE

Roberto Rockmann*

O crescente uso múltiplo das águas traz desafios para o planejamento e para a operação do sistema elétrico e pode levar a uma postura mais conservadora em ambos.

“Se eu tenho mais dificuldade para fechar a torneira do sistema, então é preciso, talvez, guardar mais água no reservatório porque, se vier hidrologia muito ruim, eu tenho um estoque maior. Tem duas estratégias: ou eu guardo mais água preventivamente ou eu trabalho para aprimorar a gestão e governança do uso múltiplo de águas”, afirma o presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Thiago Barral.
 
Em entrevista à Agência iNFRA, ele afirma que essa postura mais conservadora leva à reflexão de que pode ser preciso adotar um sistema de precificação diferente para a água dos reservatórios das hidrelétricas. Leia a seguir os principais trechos da conversa:
 
Agência iNFRA – Em 2021, houve dificuldades com o orçamento da EPE. Como está esse ano?
Thiago Barral – Em 2021, tivemos uma parte enorme contingenciada, mais de 50%. Com apoio do Ministério de Minas e Energia e da Economia conseguimos recompor a partir de maio e assim viabilizamos contratos para investir em novas ferramentas de modelagem. Para 2022, na proposta de lei orçamentária, temos um valor compatível com nossas necessidades, principalmente a parcela discricionária, que não é pagamento de pessoal e benefícios. A preocupação permanece, a dinâmica orçamentária é muito complexa. Temos de estar atentos.
 
Temos conversado com MME e Economia para criar fontes alternativas de receita. Não muda a dependência, mas reduz. Um exemplo: nos leilões de transmissão, a partir de 2021, quando o lote é arrematado, ele precisa ressarcir os custos dos estudos da EPE e de outros. São pequenos avanços, mas que trazem robustez, ainda que esse recurso gere despesa porque precisamos pagar imposto e pedir orçamento para isso. Mas isso ajuda a negociar a recomposição.
 
Em 2021, acendeu um sinal amarelo em relação à oferta e demanda. O que se aprendeu da crise?
A gente se debruçou em um diagnóstico para ver o que está certo e errado. Primeiro aspecto é diferenciar o balanço estrutural e conjuntural. Temos de nos questionar: será que meu balanço estrutural está de fato robusto? Tivemos reflexões e aprendizados.
 
A ANA divulgou um novo documento de conjuntura: de 2001 a 2020 o aumento de retirada de água para fins diversos foi superior a 40%. E quando projetado até 2030, o incremento é de mais 25% nessa retirada, por conta de agronegócio, aumento das cidades, navegação, turismo. Outro aspecto importante é que a EPE, o ONS, a CCEE, todos temos falado bastante com a ANA para incorporar esses dados mais recentes sobre planejamento e operação.
 
Outra coisa é traduzir esses números em restrições: se existe uma restrição de afluência, se tem turismo próximo, se há uma balsa fazendo travessia em um reservatório. Quando temos usos múltiplos da água, cada uso implica uma restrição para a operação das hidrelétricas.
 
No Plano Decenal 2031, que deve ir para consulta pública em janeiro, estamos incorporando uma abordagem empírica para aprimorar a representação das restrições operativas das usinas hidrelétricas. Primeira vez que fazemos isso para mostrar esse impacto.
 
Qual foi o menor patamar de geração hidrelétrica em que ONS conseguiu operar, mesmo num momento em que ele queria preservar os reservatórios e maximizar a geração térmica? Buscou-se identificar a menor geração a que ele chegou e as restrições que teve, algumas estão no modelo, outras não estão no script. Quando se tem, sistematicamente, um estresse hídrico, as restrições ficam mais evidentes. Então é possível adicionar uma camada de restrição.
 
Quando se adiciona essa camada, fica evidente que será preciso contratar energia de potência? Terá de modular mais hidrelétrica?
A gente está consolidando as análises, mas, basicamente, se eu tenho mais dificuldade para fechar a torneira do sistema, então é preciso, talvez, guardar mais água no reservatório porque, se vier hidrologia muito ruim, eu tenho um estoque maior.
 
Tem duas estratégias: ou eu guardo mais água preventivamente ou eu trabalho para aprimorar a gestão e governança do uso múltiplo de águas. Então se pode gerenciar tanto o lado da oferta quanto da gestão das restrições para assim se buscar o melhor custo-benefício.
 
Se você guarda mais água, você terá de usar alguma coisa no lugar: ou antecipar a geração térmica ou prover uma geração de fontes renováveis com maior excedente, para ter reservatórios mais altos, com um risco de vertimento maior, mas risco de conflito de uso de água menor.
 
Essa água acumulada precisaria ter um sistema de precificação diferente, não?
Se eu fizer investimento para potência e flexibilidade e eu descubro que por uma cidade a jusante ou por erosão ou navegação, eu não vou conseguir fazê-lo, há uma frustração de receita.
 
Então há o desafio regulatório de remunerar isso e do planejamento, do benefício energético. Mas o fato é que ele precisa ser feito, com um sinal econômico que possa maximizar o benefício.
 
Em geração, o parque hidrelétrico está envelhecendo e exigirá muitos investimentos, como em repotenciação. Esse planejamento terá muito a ver com o benefício das hidrelétricas frente a medidas restritivas, usos múltiplos de água.
 
Outra discussão vai ser retomada, em consulta pública, dos parâmetros de aversão ao risco hidrológico. Como está isso?
A EPE, o ONS, o ministério, nós estamos preparando essa discussão para colocar em consulta pública em abril e vendo se é preciso recalibrar os parâmetros.
 
Quando a gente faz planejamento da operação e expansão, sorteamos milhares de cenários hidrológicos e se calculam probabilidades, cenários com mais ou menos água. Com esses cenários hidrológicos, aí se estimam o risco de déficit de energia, potência. Em vez de pegar a média, posso dar importância aos piores cenários para planejamento e expansão.
 
Nos modelos, não está sendo refletida a percepção de risco do CMSE. Uma das estratégias é melhorar o uso de dados e calibrar os parâmetros de aversão de risco, ser mais conservador e usar esses cenários piores com um peso maior, mas isso é um processo complexo porque mexe na formação de preços, em garantia física, mas temos o dever de enfrentar essa discussão. Se o modelo está com uma percepção de risco deslocada das autoridades com fundamento, temos o dever do aprimoramento.
 
Outro grande desafio é a questão do envelhecimento do parque de geração e transmissão brasileiro. Como está se analisando isso?
Recentemente, lançamos uma nota técnica sobre a vida útil das eólicas. Sempre cabe lembrar que o fim da vida útil regulatória não coincide com o fim da vida útil técnica dos equipamentos.
 
No âmbito regulatório e de política, não é uma bola só da ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica], mas de política, terá de ter mecanismos de monitorar o desempenho dessas linhas de transmissão, o nível de indisponibilidade, ter a avaliação de como eles estão. A partir do momento que se identifica que esse ativo está em uma curva pior, isso pode acender o sinal amarelo. Aí o que temos de desafio: antecipar esse movimento.
 
Será que no fim da vida útil desse equipamento, faz sentido modernizar ou construir uma coisa nova? Tem uma dimensão ambiental e tecnológica. A conversora que traz a energia de Itaipu teve sua modernização anunciada por Furnas e Itaipu em fevereiro. Fizemos um estudo que apoiou essa modernização. Acho que terá de ser feita essa análise caso a caso.
 
E isso não é complexo?
Sim, é muita coisa. São bilhões de reais em equipamentos. Esse é um dos grandes desafios que temos. Temos feito estudos de reforço da transmissão por causa do avanço das fontes alternativas, com olhar regional, por exemplo no Nordeste e no Sudeste. Esse estudo será entregue até o fim do primeiro trimestre.
 
Estamos mapeando R$ 50 bilhões em investimentos de 2028 adiante em transmissão com benefícios sistêmicos, que atende parte do consumo, da alta da carga e do avanço das renováveis. Temos desafios tecnológicos com bipolos diversos, todos chegando ao Sudeste. Para crescer ainda mais, na próxima década, teremos de buscar novas tecnologias, mas isso é para o próximo ciclo.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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