Revisão das garantias físicas das hidrelétricas acirra queda-de-braço bilionária entre agentes

Roberto Rockmann e Leila Coimbra, da Agência iNFRA

Consulta Pública 132/2022, do Ministério de Minas e Energia, referente à revisão ordinária de garantias físicas das hidrelétricas, cujo prazo de contribuições públicas vai até dia 29 de agosto, tem acirrado uma queda de braço bilionária entre agentes.

A discussão regulatória movimenta muito dinheiro: com a proposição de redução de 1,2 GW médios na revisão e considerando um preço de R$ 200 o MWh, cerca de R$ 2 bilhões por ano no faturamento das hidrelétricas estão em jogo, segundo estimativas de mercado.

Período crítico
O cerne do debate é relacionado ao período crítico de chuvas a ser usado como referência do histórico das garantias das usinas.

Há pressão de alguns agentes, como Engie, Copel e CTG, que possuem usinas mais ao Sul do país, para uso de um novo período crítico, incorporando as hidrologias de 2020 e 2021. Isso se evidenciou no fim do ano passado quando a Engie questionou premissas usadas na revisão a que foi submetida a Eletrobras em razão do processo de capitalização. O debate voltou agora com a Consulta Pública 132.

A alteração do período crítico oficial aumentaria a garantia física de alguns agentes na revisão ordinária e reduziria de outros.

O setor elétrico trabalha com um período único para todas as usinas em operação, o qual varia entre junho de 1949 e novembro de 1956. Entretanto, as mudanças climáticas dos últimos anos têm criado discussões sobre a existência de um período mais recente: 2012 e 2021, sendo que o ano passado marcou a estiagem mais severa da história.

Por que o período crítico é tão importante? “Porque a energia firme das usinas hidrelétricas, que é o parâmetro básico para ratear o total das garantias físicas, é calculada para o período crítico, isto é, de maior escassez de água”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da ANEEL.

Eletrobras
A Eletrobras sofreu uma redução de 7,3% de suas garantias físicas, com informações validadas até 2019 e com base no período crítico histórico entre junho de 1949 e novembro de 1956. A revisão ocorreu no ano passado.

Se incluir o período de 2020 e 2021, por exemplo, onde as usinas da região Sul receberam bem mais chuvas que o Sudeste e o Nordeste (onde se concentra o parque gerador da companhia), a Eletrobras, agora com o capital difuso, pode ser prejudicada nas próximas revisões ordinárias, que devem ocorrer a cada cinco anos.

Divisão do mercado
Empresas como a EDP, a Enel, a Neoenergia e a Light se manifestaram, em carta, a favor da metodologia utilizada na revisão da Eletrobras, que não considera o período crítico de 2020- 2021, mostrando que há uma divisão clara do mercado em dois grupos.

No primeiro, as empresas com usinas localizadas na região Sul, que são a favor da inclusão do biênio 20/21 como o mais crítico, dentre elas Engie, Copel e CTG. No segundo grupo, as geradoras donas de usinas mais ao Sudeste e Nordeste do país, lideradas pela Eletrobras e com o apoio da EDP, Enel, Neoenergia e Light.

Ação da CTG
Recente decisão judicial a favor da empresa geradora CTG embaralhou ainda mais o cenário e trouxe receios mesmo para empresas que já tiveram grande parte de suas usinas submetidas a revisões, casos da Eletrobras e da Auren.

Na semana passada, a geradora venceu a União em julgamento sobre revisão das garantias físicas em processo de 2017. Por 4 votos a 1, a 6ª Turma do TRF1 (Tribunal Regional Federal da Primeira Região) deu ganho de causa à CTG, que disputava com o governo federal critérios sobre a revisão do volume de energia que as hidrelétricas Capivara (643 MW), Chavantes (414 MW), Taquaruçu (525 MW) e Rosana (354 MW) podem entregar ao sistema.

A empresa tinha passado por uma revisão extraordinária por obras que ampliaram sua capacidade e alegou que não poderia passar por uma revisão extraordinária e uma ordinária em um período de cinco anos.

Em maio de 2017, o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou a Portaria 178/2017 que definiu os novos valores de garantia física de energia das usinas hidrelétricas despachadas de forma centralizada, válidos a partir de janeiro de 2018. O governo trabalha para reverter a decisão, que pode abrir precedente jurídico e conturbar o processo.

“Não cria jurisprudência, mas abre um bom caminho para argumentação de outras empresas que quiserem contestar o processo e isso pode ser usado para travar a discussão e empurrá-la”, diz um advogado. “A decisão da justiça vai embaralhar a Consulta Pública. Além disso, a turma não está atenta, mas a mesma decisão exigirá o recálculo do GSF para um longo período. Muito dinheiro de um lado para o outro”, diz Edvaldo Santana.

Receios entre os agentes
A decisão jurídica traz preocupações entre os agentes. Por quê? Primeiro, porque ela pode criar ruídos sobre a Consulta Pública da revisão ordinária e abrir espaço para a redefinição do período crítico.

Segunda razão: no fim dos anos 1990, no espírito da privatização da geração e com uma matriz predominantemente hídrica, foi criado o MRE (Mecanismo de Realocação de Energia), uma espécie de condomínio para as hidrelétricas, em que os ônus e os bônus (maior ou menor geração em virtude de chuvas ou ocorrências) são compartilhados entre as usinas participantes.

O MRE realoca contabilmente a energia entre os participantes dessa espécie de “condomínio”, transferindo o excedente daqueles que geraram acima de suas garantias físicas para aqueles que geraram abaixo. É um jogo de soma zero.

Ele está ligado intrinsicamente ao GSF (sigla em inglês para o risco hidrológico). Quando o condomínio representado pelas usinas integrantes do MRE não consegue entregar produção elétrica total compatível com a soma das garantias físicas associadas ao SIN (Sistema Integrado Nacional), o GSF torna-se negativo.

Nessa situação os agentes se sujeitam à exposição negativa no mercado de curto prazo, tendo de arcar financeiramente com o déficit de energia elétrica de forma proporcional à redução. “O MRE é um condomínio, então se houver um impacto nele há rateio de perdas e ganhos entre os agentes e isso agrava o GSF”, diz um empresário.

Adiamento
Há uma pressão de alguns agentes para se usar 2012-2021 para empurrar o início da revisão. “A homologação do ano hidrológico de 2021 ocorreria só em 2022 para uso em 2023. Então isso gera pressão para fazer a revisão em 2023 ou 2024. E aí é mais um adiamento. Com isso, usar o período crítico 1949-1956 é a solução pragmática para preservar o ato no seu cronograma regular, em um processo que por definição é imperfeito”, diz um empresário.

Nesse momento, as empresas estão avaliando os números preliminares de garantias físicas revisadas anunciadas pelo governo e buscando entender os impactos.

Governo atento
O governo está atento à discussão e à tentativa de agentes buscarem mudar o período crítico a ser usado como referência. Técnicos não estariam propensos à mudança do período crítico, apesar de pressões de alguns agentes. A mudança do período crítico poderia elevar a garantia física do sistema, em vez de reduzir, o que poderia trazer problemas e poderia agravar o GSF, risco hidrológico.

“Isso faria alguns ganharem garantia física. No final das contas, se fizer isso, vai se distribuir lastro podre no mercado, o que é totalmente contrário ao propósito de revisar as garantias físicas. O que precisa ser feito e reavaliar o critério de rateio, tem várias alternativas ao uso do período crítico”, diz uma fonte.

Processo historicamente controverso
Historicamente, o processo é controverso. Desde 2003, as hidrelétricas deveriam ser submetidas à revisão ordinária a cada cinco anos. Em quase 20 anos, só uma vez, em 2017, com validade a partir de 2018, a revisão foi feita.

Apesar das dificuldades do processo, que mexe diretamente nos contratos de venda e compra de energia de grandes grupos, ele tem relevância para o setor elétrico. Uma das razões de o país ter vivenciado a ameaça de nova crise de racionamento ano passado foi a dificuldade em mensurar a energia disponível de fato nos reservatórios das hidrelétricas.

Revisar a garantia física é um ponto importante para o planejamento do setor, assim como na estratégia comercial das empresas. Reduzir a garantia física de usinas seria impor perdas às geradoras que tivessem revisadas para baixo suas garantias, já que elas teriam menos energia disponível para a venda.

Entre muitas incógnitas, uma certeza: as novelas do GSF, do MRE e das garantias físicas ainda renderão muitos capítulos e muitas disputas nos bastidores e nas cortes. Modernizar de fato o setor elétrico impõe superar obstáculos históricos.

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