“País está no auge do colapso regulatório”, diz ex-diretor da ANEEL

Roberto Rockmann*

Em maio de 2021, o ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) Edvaldo Santana fez um alerta no jornal “Valor Econômico” sobre a possibilidade de o país ter de racionar energia durante o ano passado. São Pedro evitou uma crise maior, mas a solução adotada foi a mais cara. “A solução mais barata seria restrição do consumo a partir de maio de 2021.”

Segundo Santana, parte dos aumentos que estão provocando ruídos no Congresso vem da gestão da crise de energia e da solução cara adotada, que frisa que a lição de casa para evitar novos problemas continua em aberto.

A discussão neste momento sobre as garantias físicas das hidrelétricas precisa resultar em revisão de fato, adverte ele, que faz outros dois alertas: o país está no auge do colapso regulatório e o projeto de lei de liberalização do mercado pode trazer mais custos do que benefícios. A seguir, os principais trechos da entrevista à Agência iNFRA:

Agência iNFRA – Há um ano, o senhor deu o primeiro alerta público sobre a possibilidade de o país decretar um racionamento. Um ano depois, a situação mudou completamente. Quais as lições que ficaram?
Edvaldo Santana – No que diz respeito ao que passou, as medidas tomadas foram razoáveis, como a publicação daquele decreto de emergência hídrica que deu flexibilidade à operação do sistema, mas a solução não foi a melhor. Foi a mais cara.

A solução mais barata seria restrição do consumo a partir de maio de 2021. Não precisaria de bandeira de escassez hídrica. Parte dos aumentos que estão provocando ruídos no Congresso vem da gestão da crise de energia que tivemos e da solução cara adotada.

Quanto ao que aprendemos, vamos acompanhar, porque há muitos assuntos que estão ainda abertos, como a revisão das garantias físicas das hidrelétricas. A crise de 2021 ocorreu porque o governo contava com uma oferta hidrelétrica que não existia. Então precisamos saber o que temos para gerar de fato.

Desde 2003, deveriam ser feitas revisões das garantias físicas das hidrelétricas a cada cinco anos. Foi feita uma apenas em quase 20 anos. As garantias não são nem garantias, muito menos físicas?
Esse é um ponto que tem de ser olhado com cuidado para sabermos se o governo realmente aprendeu com a crise do ano passado. Ao contrário de anos anteriores, parece que há mais decisão para fazer o processo. Por quê? Porque houve uma redução de 7,3% das garantias físicas das usinas da Eletrobras. Não fará sentido revisar de um e não revisar as das demais.

Isso criaria uma diferença de tratamento e desvantagem grande para a estatal. Acho que não há saída de não fazer. Mas há uma briga grande, tem gente já falando que na revisão será preciso aumentar a garantia física da sua usina. Isso é um contrassenso, a não ser que tenha descoberto água em algum lugar que não se sabe, porque a tendência é reduzir.

A pressão para não fazer é porque os cobertores estão curtos?
Eu, sinceramente, tenho dificuldade de entender essa resistência. O empreendedor tem uma usina hidrelétrica com 100 MW médios de garantia física e um GSF [sigla para risco hidrológico] de 80. Ele fica exposto em 20.

Agora, se houver uma redução de garantia e ele passa a ter 90 MW médios e um GSF de 80, a exposição é menor, fica em dez. Ele corre risco maior com superoferta. Mas por que tem essa resistência? Porque eles descobriram o caminho de reduzir isso, ir ao Congresso e buscar uma emenda. Resolve-se um problema físico de uma usina com os parlamentares. O Congresso se tornou um balcão de negócios técnicos.

O Congresso foi importante na criação de um jabuti do projeto de capitalização da Eletrobras, que prevê a contratação de 8 GW em térmicas em algumas localidades em que não há gasoduto. Como o senhor analisa isso?
Primeiro, existe um planejador, a EPE [Empresa de Pesquisa Energética]. Também existe uma secretaria de planejamento ligada ao Ministério de Minas e Energia. Esses são os órgãos que, a partir de debate, propõem medidas.

O Congresso impôs essa contratação, uma medida de cima para baixo. Não se estudou o problema, não se atendeu aos interesses do setor. Esse caso de imposição de térmica com gás importado é um insulto à racionalidade técnica e econômica.

Não sou contra térmica, acho que, com a evolução da matriz com fontes intermitentes e resistência à construção de novas hidrelétricas, as termelétricas são essenciais, mas térmicas despachadas pelo Operador Nacional do Sistema.

Esse jabuti criou térmicas despachadas pelo Congresso, 70% de inflexibilidade mostra isso. Isso significa que essas usinas irão operar 70% das horas do ano, uma hidrelétrica com cheia opera 60% a 65%. Isso não vai sair barato. Em uma matriz tão limpa quanto a brasileira, com sol, biomassa, vento, recurso hídrico, teremos térmicas que operarão muito tempo. Isso não faz sentido.

Usar o dinheiro da PPSA, como uma das emendas prováveis do PL 414, para colocar de pé essas térmicas é uma boa ideia?
Esse é um outro absurdo na minha visão. São royalties do petróleo que deveriam ser usados para outros fins nobres, como educação. Iremos subsidiar gás e térmicas sem racionalidade? Esse é um caminho inadequado.

A gente está discutindo neste momento o PL 414, de liberalização do mercado. Qual sua análise dele? É um passo para outros que ensejarão liberdade para o consumidor?
Sou um ferrenho defensor do mercado livre para todos os consumidores. Como a gente não tem uma outra saída, o PL 414 virou o pilar dessa modernização. É naquele ditado: ´Se não tem tu, vais tu mesmo’.

Tem forte probabilidade de ser um dos mais caros projetos de liberalização do mundo e pode ser que exija um outro projeto de lei que arrume alguns pontos de uma liberação que não deu resultado.

Pela versão que li, todo o risco do pequeno consumidor de migração fica com ele, ele assume grandes riscos, paga muitas coisas, o que não ocorre no mercado dos grandes consumidores. Então me parece que foi criado um mercado de primeira e um de segundo categoria. Um com pulseirinha, outro sem.

Tenho muitas dúvidas de que os benefícios superem os custos. Há ainda prováveis jabutis como esse da utilização dos recursos do PPSA para incentivar as térmicas, vamos cometer os mesmos erros do projeto da capitalização da Eletrobras, como a contratação de 8 GW de térmicas que foge à racionalidade econômica e técnica.

Nos últimos dias, temos visto críticas de parlamentares sobre os reajustes de energia e tentativas de suspensão. Isso é novo?
Não é de agora. Quando estava na ANEEL, vi CPIs sendo criadas em vários estados para discutir as tarifas e tentar reduzi-las e influenciar na decisão. O problema é que de uns tempos para cá a ANEEL ficou desprestigiada, isso incentivou uma medida de tentativa do Legislativo de ter controle. O presidente da Câmara deu sinais disso. Isso é novo. É o auge do colapso regulatório.

Desde a MP (medida provisória) 579, quando a ANEEL não fez nada e ainda ajudou a elaborar a MP, essa onda vem num crescendo e agora se mostra com um desprestígio muito grande da agência. Os parlamentares se sentem ainda mais livres para propor projetos de apelo eleitoreiro. Suspender reajuste tem um custo gravíssimo para a sociedade e empresa, vai criar um tumulto judicial.

O senhor vê tentativa de enfraquecimento das agências reguladoras? 
Sim, claramente. Há uma minuta de PEC nesse sentido, há a pressão dos parlamentares. As agências têm buscado, mais recentemente, também agradar ao governo e ao Congresso. Acho que não é adequado.

Tem uma grande mistura entre regulador e regulado. Temos visto indicações de gente altamente capacitada do ministério para o ONS e para a ANEEL, mas isso cria algumas dúvidas: ANEEL e ONS viraram seções do ministério? Isso não tem interferência na independência da autonomia? Isso não cria preocupações nas empresas? Há interferência nas regulações entre os entes? Pode um diretor que está numa agência ser indicado para outro órgão do setor que ele vai assumir daqui a cinco meses? Uma agência não fiscaliza esse outro órgão? Não há conflito de interesse? Isso não tem dado alerta a muitos, mas acho que esse é um ponto de preocupação. Normalizamos absurdos e não nos preocupamos com isso.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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