O Credenciamento e a Lei Federal 14.133/2021

Thays Chrystina Munhoz de Freitas*

A Lei Federal n.º 14.133/2021 foi editada com o intuito de implementar um regime geral de contratação pública, uniformizando as regras aplicáveis a modalidades de licitações e regimes de contratações públicas praticadas por meio de leis esparsas, como o Pregão e o RDC (Regime Diferenciado de Contratação). Além disso, a Lei trouxe inovações em relação a modelos e institutos ainda não experimentados e utilizados no Brasil, buscando modernização e aprimoramento do planejamento da gestão pública no que concerne às contratações públicas.

Outro ponto da Lei refere-se à positivação e regulamentação de temas que surgiram ao longo dos quase 30 anos da vigência da Lei n.º 8.666/93, os quais, em grande medida, extraídos de discussões encerradas no âmbito dos órgãos de controle e do Poder Judiciário a respeito da aplicação dos dispositivos da citada lei1.

Nesse sentido, verifica-se que os artigos 6º, XLIII, e 79, da nova Lei, igualmente, cuidou de positivar e regulamentar o Credenciamento, cuja utilização se difundiu ao longo da vigência da Lei nº 8.666/93, sem que nela houvesse qualquer previsão específica a respeito do tema.

Com efeito, o Credenciamento teve os seus contornos definidos a partir das orientações dos órgãos de controle, em especial dos Tribunais de Contas, que indicam que o referido modelo de contratação decorre da impossibilidade de competição que permitiria à Administração a escolha da proposta mais vantajosa, acomodando-se à situação de inexigibilidade de licitação, regulamentada pelo artigo 25 da Lei nº 8.666/93.

Nesse sentido, analisando casos concretos extrai-se situações de impossibilidade de competição, na busca da melhor técnica ou da melhor qualidade, tendo em vista que tais requisitos são estipulados pela Administração por meio do ato convocatório, para os quais existia interesse desta na contratação de todo o universo de interessados, por preço certo e prefixado.

O TCU (Tribunal de Contas da União) ao apreciar a matéria posicionou-se favoravelmente à adoção do Credenciamento como hipótese de inexigibilidade de licitação, para a contratação de serviços médico-hospitalares e odontológicos para atendimento de demanda dos servidores públicos federais (Decisão n.º 656/1995), oportunidade em que cuidou de delinear alguns aspectos essenciais voltados à sua caracterização e, ainda, de forma a assegurar sua adequada adoção pela Administração Pública2.

Além disso, verificou-se a edição de leis, normas e pareceres por entes e órgãos administrativos3 objetivando a regulamentação da utilização desta contratação no âmbito de suas competências, os quais, se apropriaram das orientações traçadas pelo TCU, fixando outros requisitos voltados ao aperfeiçoamento de sua utilização, como por exemplo, a necessidade de o respectivo processo administrativo contemplar parecer com justificativas para a adoção da inexigibilidade de licitação, a submissão da minuta de contrato à análise da Procuradoria Jurídica, a impossibilidade de fixação de critérios restritivos para a distribuição da demanda, a necessidade de observância de critérios objetivos de credenciamento que não atentem contra a isonomia e a restrição do universo de interessados.

Diante da existência de entendimentos distintos, voltados à fixar hipóteses de sua utilização e regulamentação do Credenciamento, ensejando, muitas vezes, a ausência de uniformidade na aplicação de regras e aspectos voltados à sua implementação, conclui-se que a Lei Federal n.º 14.133/2021 caminhou bem ao positivar a matéria, confirmando ser hipótese de inexigibilidade (art. 74, IV), viabilizando a sua utilização, também, para fornecimento de bens, e trazendo em seus artigos 6º, XLIII, IV, 78, I, e 79, conceito e regras aplicáveis ao Credenciamento.

Em que pese a previsão sobre a necessária regulamentação do Credenciamento, as disposições da nova Lei ao lhe atribuir conceito, enquadrando-o como procedimento auxiliar de contratação e, principalmente, ao fixar as hipóteses4 e regras fundamentais que deverão nortear a sua utilização, conferiram maior segurança jurídica à Administração Pública e aos particulares que adotam/atuam nesse modelo de contratação.

Nesse sentido espera-se que a regulamentação do Credenciamento traga luz para outros pontos e aspectos debatidos ao longo da adoção do instituto, como por exemplo, a indicação do(s) instrumento(s) necessário(s) à formalização da relação jurídica dele decorrente, fixando-os a partir da natureza e características do objeto a ser disponibilizado (bens, serviços de caráter continuado ou prestação sob demanda), identificando as normas a eles aplicáveis, de modo a preencher lacunas evidenciadas decorrente de sua utilização a partir de construção de entendimentos não refletidos pela legislação pátria.

Sobre este ponto específico, a expectativa é que a norma regulamentadora traga maior compreensão sobre o formato de contratação extraída a partir da convocação do particular para a execução do serviço ou fornecimento pretendido, delineado, a partir de sua natureza e características, de maneira mais clara os direitos e obrigações deles derivados. 

Exemplificando o tema, mostra-se necessário identificar de forma clara se a convocação determinará a formalização da relação a partir de um contrato administrativo, atraindo para o caso as disposições relacionadas a prazos de vigência, direito ao reajuste de preços e, ainda, condições de execução dos serviços e fornecimento, ou de instrumento substitutivo (nota de empenho, ordem de serviço etc.), para os quais há orientações e normas distintas para as obrigações e direitos assumidos de parte a parte.

Muito embora existam aspectos que ainda devem ser melhor delineados a respeito dos contratos derivados do Credenciamento e o indicativo de que outras discussões se encerrarão em torno do instituto – o que se mostra natural diante de toda e qualquer alteração legislativa, seja para inaugurar ou consolidar conceitos no ordenamento jurídico –, por ora, a Lei n.º 14.133/2021 enfrenta de forma adequada o instituto, mostrando-se como instrumento hábil a endereçar as discussões que virão pela frente.

1 Como, por exemplo, definição de percentual para identificação das parcelas de maior relevância técnica ou de valor significativo para efeito de eleição de exigências de qualificação técnica (artigo 67, §1º), limitação de quantitativos exigíveis para comprovação de qualificação técnica (artigo 67, §2º), critérios para aferição de qualificação técnica mediante apresentação de atestados técnicos emitidos em favor de Consórcio de empresas (art. 67, §10, incisos I e II).
2 Os critérios e requisitos elencados pelo TCU podem ser resumidos da seguintes forma: (i) ampla divulgação e publicidade do ato convocatório, de forma a ampliar o universo de interessados e credenciados; (ii) fixação dos critérios e exigências mínimas para credenciamento dos interessados, garantindo-se bom atendimento e adequada prestação dos serviços; (iii) fixar de forma criteriosa a tabela que remunerará os diversos itens de serviços prestados, critérios de reajuste, condições e prazos de pagamento; (iv)vedação de pagamento de sobretaxa em relação à tabela utilizada para a remuneração dos serviços; (v) fixação de hipóteses de credenciamento em caso de não atendimento das regras e condições fixadas no Edital para o atendimento dos usuários; (vi) permissão de credenciamento a qualquer tempo, desde que preenchidas as condições mínimas exigidas; (vii) previsão da possibilidade de denúncia do ajuste, a qualquer tempo, mediante notificação da Administração Pública, com antecedência mínima, de acordo com prazo fixado do ato convocatório; (viii) possibilidade de os usuários denunciarem qualquer irregularidade verificada na prestação de serviços e/ou faturamento; (ix) fixação das regras que devem ser observadas pelo credenciado no atendimento dos usuários.
3 A título de exemplo, a Lei n.º 16.920/2010, do estado de Goiás; a Lei n.º 9.433/2005 do estado da Bahia, a Lei n.º 15.608/2007 do estado do Paraná; o Parecer n.º 0003/2017/CNU/CGU/AGU.
4 “Art. 79. O credenciamento poderá ser usado nas seguintes hipóteses de contratação:
I – paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas;
II – com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação;
III – em mercados fluidos: caso em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação inviabiliza a seleção de agente por meio de processo de licitação.”
*Thays Chrystina Munhoz de Freitas é advogada graduada pelo Centro Universitário de São Paulo e especializada em Direito Administrativo pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Pós-graduanda em Direito Administrativo pela FGVlaw/SP.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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