Modelo atual das agências reguladoras está em xeque, diz presidente da Abar

Roberto Rockmann*

Estabelecido na metade dos anos 1990, o modelo das agências reguladoras está em xeque. Há poucos dias, uma minuta de PEC (Proposta de Emenda Constitucional) foi apresentada com sugestões que modificam drasticamente o desenho atual e voltam a colocar decisões como reajustes tarifários nas mãos do governo.

Os recentes aumentos de dois dígitos em energia elétrica, como na semana passada no Ceará, têm também trazido ainda mais pressões da sociedade civil sobre a regulação. Nesse contexto, aperfeiçoamentos nos contratos podem ser dialogados entre sociedade, agências e concessionárias, disse Fernando Franco, presidente da Abar (Associação Brasileira de Agências de Regulação), em entrevista à Agência iNFRA. Franco deixa o cargo no próximo dia 30 de abril. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Agência iNFRA – Temos visto muitas críticas às agências reguladoras hoje. Como era o ambiente regulatório institucional antes das agências?
Fernando Franco – Não havia qualquer tipo de compromisso com as regras do contrato. Os interesses políticos e eleitoreiros eram privilegiados. Os investidores buscam estabilidade política, condições de mercado e segurança jurídica. Cabe às agências reguladoras proporcionar a segurança jurídica, por meio da estabilidade regulatória. Isso é importantíssimo nos contratos de longo prazo, com investimentos que são maturados ao longo de décadas.

A primeira agência foi a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), criada em 1996. A ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) veio em seguida, em 1997. Já temos algumas com quase 30 anos. O que é preciso ainda evoluir?
A gente precisa dividir os dois ambientes de regulação que temos no Brasil. Nas agências federais, precisamos evoluir, principalmente, em relação ao entendimento das instituições de como se opera uma decisão regulatória.

É impressionante que no Judiciário e no Executivo há um desconhecimento brutal de como se dá essa decisão. Se tivessem esse conhecimento, eles talvez não criticassem tanto ou não atrapalhassem tanto. Já nas agências subnacionais temos um abismo: porque, além de existir falta de total conhecimento, há ingerência política de gestores municipais e estaduais nas decisões.

O que tem servido como blindagem nas interferências federal e estadual é a governança das agências. Elas se compõem em colegiado, não é decisão de um diretor. Essa decisão regulatória vem com um parecer técnico feito pela equipe técnica.

Como se busca esse melhor entendimento em um momento em que as opiniões estão polarizadas e em que os reajustes de energia começam a vir elevados?
A gente está vivendo isso nesses últimos dias, por exemplo, no Ceará, estado de minha origem. A ANEEL anunciou um reajuste de 24,85% nas tarifas de energia da concessionária local. As entidades estão em reboliço.

Como se explica a um comerciante um reajuste de 24%, se a inflação não está nesse patamar? É difícil. Há ameaças de judicialização. A complexidade de uma decisão regulatória é de difícil entendimento, da sociedade a todos os Poderes.

Estive falando com diretores da ANEEL sobre esse aumento. Eles falando que a agência toma decisões com base em regras, em contratos, normas, cálculos. Um dos quesitos que têm contribuído para essa alta é o IGP-M, índice que está embutido nos reajustes. Isso tem de ser respeitado, mas entramos aí também numa discussão em que acho que as agências têm de ter: levei para eles um caso que algumas agências estaduais fizeram na questão do gás em relação ao IGP-M.

Foi feita em SP, MG uma substituição desse índice com as concessionárias, porque elas também têm interesse que haja uma tarifa que a população possa pagar, para que não haja um descompasso. As agências têm de fazer sua parte: a questão da eficiência, a questão da mutabilidade contratual, da inovação tecnológica, dos fatos imprevisíveis e da eficiência regulatória.

Hoje um ciclo de inovação está em 20 anos, antes eram 100 anos. Um contrato de 20 anos pode ter cláusulas que podem ser melhoradas. O grande desafio das agências é que essa regulação possa acompanhar essa evolução sem quebrar a segurança jurídica.

Recentemente, foi lançada uma proposta de PEC sobre agências reguladoras que põe em xeque o modelo estabelecido nos anos 1990. Qual sua leitura dela?
Desastrosa. Não acredito que ela passe. Todo dia se vê exemplo do que a boa regulação pode fazer. Exemplo? O da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e da Covid e a decisão sobre as vacinas. Os segmentos em que há uma agência por trás receberam investimentos, ampliaram serviços, melhoraram o atendimento. Se a PEC for aprovada, a gente volta para o início da sua entrevista, nos tempos em que os contratos não eram respeitados, em que os políticos tinham arbítrio sobretudo. Não terá segurança jurídica, as agências terão deixado de existir na sua essência.

A Abar vai enviar sugestões para os candidatos à presidência da República?
Sim. Meu mandato está se encerrando agora no fim de abril, continuarei na entidade contribuindo com ela, mas não mais à frente dela, mas essa é uma preocupação que temos e serão feitos eventos, sim. Isso é uma forma de mudar esse entendimento da falta de conhecimento sobre a regulação brasileira.

Em 2019, foi sancionada a nova lei das agências reguladoras para fortalecer a governança. Recentemente, indicações de 21 diretores levantaram críticas de alguns empresários e advogados. Como o senhor analisa?
Nós participamos intensamente da discussão dessa legislação, levando problemas que afetavam o dia a dia das agências. Introduzimos vários artigos que davam autonomia aos reguladores, como a que nenhum agente possa ser processado por uma decisão da agência, a não ser tomada de forma indevida ou ilegal. É um modelo que contribui para um ambiente regulatório mais propício. Poderia ser melhor? Poderia, mas é positivo. Em relação às indicações, elas são sempre pautadas de um grupo partidário ou de interesse. É um problema mundial.

Teria como blindar essas indicações políticas?
A lei estabelece a sabatina, é uma forma de freio também. Se a gente analisar, a estrutura está bem montada, o que a gente precisa mesmo é trazer para o Brasil a importância de um ambiente sólido de regulação e o que ele traz para nós. Sem ele, o impacto é muito grande.

O modelo das agências está em xeque nessas eleições, com os dois líderes nas pesquisas com críticas a elas?
Sim, tanto Jair Bolsonaro quanto Lula têm uma visão equivocada do que é regulação. Fico decepcionado, deveria partir dos dois o que é esse entendimento melhor. A equipe técnica deveria buscar esse suporte, mas alguns assessores também têm essa visão equivocada.

Agência reguladora tem autonomia financeira? Precisaria aperfeiçoar esse tema?
Autonomia financeira entre aspas. Por quê? Elas têm fonte própria, mas ficam vinculadas ao Orçamento Geral da União ou dos estados, ficando à mercê de contingenciamento. Dá com uma mão, tira com outra. Melhorar isso seria um próximo passo para melhorar a autonomia.

Mudar isso implica projeto de lei, não?
Sim, porque precisa de alteração constitucional.

No atual cenário isso é muito complicado, não?
Sem dúvida.

Em saneamento, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) tem um desafio especial, de padronização do novo marco regulatório, o que também servirá para agências subnacionais. Como está isso?
Há um claro atraso na área. Em pleno século XXI, há cidades no Norte e Nordeste com 10% a 20% de saneamento. A cada um real aplicado em saneamento, economiza-se de seis a oito reais em saúde. Para que o novo marco seja bem aproveitado, é preciso contribuir para a reestruturação da ANA.

Ela recebeu apenas 16 técnicos dos 40 pedidos para trabalhar na estrutura concebida pelo novo marco regulatório, enquanto não houvesse concurso público de contratação de funcionários. Não houve aprovação de concurso em 2021. Não deve haver neste ano. Havia uma previsão de criação de oito normas de referência em 2022. Esse número fica sob ameaça. Isso é preocupante e isso poderá ter impacto sobre a meta de universalizar os serviços de água e esgoto até 2033, como prevê o novo marco.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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