iNFRADebate: TRF1 confirma a legalidade da cobrança pelo escaneamento de cargas nos terminais portuários

Rafael Wallbach Schwind*

Há poucos dias, o TRF1 (Tribunal Regional da 1ª Região) confirmou, mais uma vez, a possibilidade de terminais portuários efetuarem a cobrança de preço específico pela prestação do serviço de inspeção não invasiva de cargas (escaneamento).[1]

O assunto vem sendo objeto de discussões judiciais há muitos anos.

Em síntese, a Lei 12.350/2010, em seu art. 34, § 1º, inciso IV, estabeleceu que os recintos alfandegados – dentre os quais se inserem os terminais portuários – precisam dispor de scanners em quantidade suficiente para promover a inspeção não invasiva da integralidade das cargas e veículos que passam por esses recintos. A regra abrangeu os espaços já em operação, que tiveram um prazo para se adaptar. Isso envolveu a execução de pesados investimentos pelos terminais portuários, materializados na aquisição desses itens e na própria prestação do serviço, que ocorre de forma ininterrupta e envolve riscos e encargos específicos.

A previsão decorre fundamentalmente de compromissos internacionais voltados a proporcionar maior segurança ao trânsito de cargas.

A Receita Federal editou a Portaria 3.518/2011, que não tratou da cobrança pelo serviço de escaneamento. Apenas determinou que não haveria ônus para a Receita (art. 14). Outras normas se seguiram detalhando melhor o assunto em termos operacionais.

Já a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), na qualidade de autarquia que disciplina os serviços prestados pelos terminais portuários e os preços por eles praticados, estabeleceu a possibilidade de cobrança (art. 11 da Resolução 2.389/2012). Posteriormente, houve consulta pública da agência sobre o tema, bem como a edição da Resolução Normativa 34/2019, mais recentemente substituída pela Resolução 72/2022. Em todas essas normas, sempre se previu a possibilidade de cobrança de contraprestação pelo serviço.

No caso recentemente julgado pelo TRF1, uma associação de usuários de um porto específico impetrou mandado de segurança coletivo em face do diretor-geral da ANTAQ. Alegava existir omissão da agência por permitir a cobrança pelo serviço, supostamente em desconformidade com as regras aplicáveis. Na prática, a associação pretendia a proibição da cobrança pelo escaneamento.

A sentença denegou a segurança, reconhecendo que não há omissão da autarquia em relação ao tema. Dentre outros fundamentos, considerou o fato de que estava em curso uma consulta pública acerca da questão. O tema da cobrança pelo escaneamento, portanto, estava em ampla discussão e, supervenientemente, foram editadas regras sobre o assunto. Não havia como se falar em omissão.

Há poucos dias, o TRF1 negou provimento à apelação, por unanimidade. O acórdão junta-se a diversas outras decisões já proferidas não só pelo mesmo TRF mas também por diversos outros tribunais no mesmo sentido – ou seja, reconhecendo a legalidade da cobrança pelo escaneamento de cargas.[2]

Inicialmente, o acórdão reconheceu que não há omissão da ANTAQ em relação ao tema. A agência não apenas promoveu consulta pública a respeito do assunto, como editou normas disciplinando a matéria – as quais estabelecem a possibilidade de os terminais portuários cobrarem uma contraprestação pela realização de atividades determinadas pelas autoridades aduaneiras, como é o caso do escaneamento de cargas.

Some-se a isso a atuação concreta da ANTAQ na análise prévia e a posteriori dos preços – como ocorre com a generalidade de serviços e na decisão de reclamações eventualmente formuladas por usuários – o que também é visto com os preços em geral. Claramente, jamais houve omissão da ANTAQ em torno do tema. Existe, isso sim, um entendimento diverso daquele que a associação impetrante considera correto. Mas omissão propriamente dita não há.

Uma das alegações da apelante dizia respeito à natureza da atividade desempenhada pelos terminais portuários. Em sua visão, ao realizarem o escaneamento de cargas, os terminais portuários estariam exercendo poder de polícia, o qual somente poderia ser objeto de cobrança mediante taxa instituída por lei formal.

O argumento também foi rejeitado pelo TRF1. O acórdão reconheceu que, ao realizarem o escaneamento de cargas, os terminais portuários não exercem poder de polícia. Eles apenas transmitem para a Receita Federal os conjuntos de arquivos com as imagens geradas pelo escaneamento – como prevê o art. 14, §1º, da Portaria RFB 143/2022 (atualmente em vigor em substituição à Portaria RFB 3.518/2011). É a Receita Federal que, ao analisar as imagens geradas, exerce as competências típicas de poder de polícia – como, por exemplo, a determinação de realização de uma inspeção física do contêiner, a retenção da carga, dentre outras providências. Estas possíveis medidas, de competência exclusiva da Receita Federal, é que podem ser consideradas como exercício do poder de polícia, cujo núcleo essencial, mesmo numa concepção de “ciclo de polícia” ou “procedimento de polícia”, é a restrição a direitos do administrado.[3]

Como o escaneamento não representa o exercício de poder de polícia, o acórdão fixou o entendimento de que a contraprestação devida por essa atividade não tem natureza de taxa e, portanto, não precisa ser prevista em lei formal. Trata-se de um preço cobrado pelo desempenho do serviço.

Com relação à responsabilidade pelo pagamento do preço devido, o acórdão fixou o entendimento que cabe ao usuário (por exemplo, a empresa que está realizando a importação ou exportação da mercadoria). Aplicou por analogia a previsão contida no art. 4º, inciso I, da Instrução Normativa RFB 2.111/2022. A norma estabelece que a concessionária ou permissionária de porto seco cobrará do usuário as contraprestações derivadas da prestação de seus serviços, inclusive aqueles “necessários ao exercício da fiscalização aduaneira”. O escaneamento é justamente um serviço prestado para viabilizar o exercício dessa fiscalização.

A analogia está correta. Afinal, o dono da carga é que tem o dever de apresentar a sua carga devidamente escaneada para as autoridades competentes. Sendo assim, o serviço de escaneamento é desempenhado no interesse do usuário do terminal. Não se trata de um serviço prestado à Receita Federal. Neste particular, não há motivo para que haja cobrança pelos portos secos e não haja pelos terminais portuários.

O acórdão ainda reconheceu a competência da ANTAQ para disciplinar e monitorar os preços cobrados pelo escaneamento. Na prática, ainda que a Receita Federal proibisse a cobrança pelos terminais portuários, não poderia ocorrer na prática porque é competência da ANTAQ dispor sobre a questão.

O acórdão, por fim, concluiu que, se o serviço de escaneamento não for remunerado pelos usuários, haveria desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamento portuário. De fato, a obrigatoriedade de realizar investimentos e assumir despesas adicionais surgiu por norma superveniente aos contratos de arrendamento. Numa eventual impossibilidade de cobrança, esses contratos ficariam desequilibrados.

De todo modo, e independentemente de haver um desequilíbrio, o fato é que a solução adotada é a mais justa e se aplica tanto a contratos de arrendamento quanto a autorizações de terminais portuários privados. Ou seja, há a prestação de um serviço e ele precisa ser remunerado. Simples assim.

Na realidade, a cobrança pela inspeção de cargas não representa novidade alguma. A diferença é o emprego da tecnologia.

Antes de existir a possibilidade de escaneamento de cargas, os terminais portuários já faziam a ova e a desova quando isso era determinado pelas autoridades aduaneiras, de modo a possibilitar que elas exercessem o poder de polícia que cabia a elas. Pelo desempenho dessas atividades, os terminais cobravam um preço específico junto aos usuários. Essa cobrança não era questionada. Agora, o que muda é que a inspeção é feita de modo não invasivo, com a utilização de scanners. Isso dá uma dinâmica maior ao fluxo das cargas, mas exige mais investimentos. Do ponto de vista jurídico, no entanto, não há nenhuma novidade. Tal como antes, os terminais portuários precisam ser remunerados pela atividade prestada. O recente acórdão do TRF1 é mais uma importante decisão no caminho de pacificação do tema. Espera-se que a decisão traga mais segurança jurídica em relação ao assunto.


[1] TRF1 – Apelação Cível nº 1006869-49.2018.4.01.3400, Rel. Des. Fed. Novély Vilanova, j. 27.2.2023.

[2] Um dos acórdãos mais recentes é o da Apelação Cível nº 1040602-44.2020.4.01.3300 (Rel. Juiz Federal Henrique Gouveia, j. 12.7.2022), do TRF1.

[3] Sobre o assunto: SCHWIND, Rafael Wallbach. Particulares em colaboração com o exercício do poder de polícia: o “procedimento de polícia”. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein (coord.). Poder de polícia na atualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 131-156.

*Rafael Wallbach Schwind é advogado, doutor em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) e sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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