iNFRADEBATE: Transferência das concessões de rodovia

*Rafael Véras de Freitas

A exploração de rodovias, pela iniciativa privada, se confunde com a própria descoberta do módulo concessório no Brasil. Tanto é verdade que, malgrado o Programa de Concessão de Rodovias Federais (Procrofe) tenha sido iniciado no começo da década de 1990, sua afirmação só veio a ocorrer com a estabilização jurídica do regime concessório, que teve lugar com a edição das Leis nº 8.987/1995 e nº 9.074/1995. Nessa perspectiva, arrisco-me a dizer que o contrato de concessão de serviço público, que é utilizado para a exploração de diversas infraestruturas públicas (v.g. metroviária, ferroviária, portuária), não raro, é interpretado a partir das bases jurídicas estabelecidas no contrato de concessão de rodovia.

Porém, tal modelo de contrato vem apresentando algumas vicissitudes. Os contratos celebrados na 3° Fase do Procrofe se tornaram inexequíveis, seja pela previsão de obrigações de investimentos desnecessárias, seja pela não efetivação da demanda projetada, seja, ainda, pela atribuição de riscos que o concessionário não poderia gerenciar (a um menor custo). O resultado: tais contratos precisarão ser relicitados ou transferidos para novas concessionárias.

Acontece que, na modelagem desses contratos, consta previsão de que a transferência de controle não poderá ocorrer antes da conclusão das obras de duplicação da rodovia previstas no PER (Programa de Exploração Rodoviária). Ora, se a impossibilidade de conclusão dessas obras de duplicação é, justamente, uma das razões pelas quais se está cogitando da transferência, tal previsão contratual terá de ser objeto de uma interpretação um tanto mais sofisticada.

O tema da transferência de controle nas concessões está ligado ao vetusto (e em vias de superação) entendimento de que os contratos administrativos possuiriam caráter intuitu personae. Dito em outros termos, de que tais ajustes seriam pactuados em razão das características pessoais do contratado, as quais seriam aferidas por ocasião do procedimento licitatório. Razão pela qual tal alteração subjetiva importaria em violação ao dever de licitar, previsto no art. 175 da CRFB.   

Tal entendimento, contudo, não nos parece o melhor. É que os contratos de longo prazo (de que é exemplo a concessão de rodovia) são incompletos, seja por que às partes é impossível estabelecer, ex ante, todas as contingências que incidirão sobre tais ajustes (sem prejuízo do incremento dos custos de transação), seja pela incidência do princípio da atualidade dos serviços públicos (art. 6º, §2º, da Lei nº 8.987/1995). Ademais, é de se ressaltar que, em determinadas hipóteses, a transferência da concessão poderá melhor atender aos interesses enredados na delegação do serviço público, por duas razões. A uma, porque os custos e o tempo para realização de um procedimento licitatório para selecionar um novo concessionário podem ser proibitivos. A duas, porque eventual procedimento de declaração de caducidade, em razão de sua morosidade habitual, pode importar em prejuízos à adequada prestação do serviço público.

Daí por que o art. 27 da Lei nº 8.987/1995 autoriza a transferência de concessão, ou do controle societário da concessionária, mediante prévia anuência do Poder Concedente – prescrição que, de resto, tem lugar em diversos setores regulados (v.g. art. 97 da Lei n°9.472/1997 art. 3º, VIII, da Lei n°9.427/1996).

Claro que a transferência não poderá ser autorizada em prejuízo do serviço público delegado. Mas isso não significa dizer que tal provimento seja discricionário do Poder Público. Assim não se passa na medida em que, ao realizar a delegação do serviço público, o Poder Público transmite ao concessionário um plexo de direitos de conteúdo econômico decorrente de tais ajustes, dentre os quais o de realizar reorganizações societárias.  

Razão pela qual a anuência deve se limitar a avaliar se, com a transferência de controle, serão atendidas as exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço concedido. Assim é que, se ficar demonstrado que o serviço será prestado de acordo com os mesmos critérios qualitativos, bem como que serão adimplidas as obrigações de investimento previstas no contrato, não há que se cogitar de qualquer juízo de “conveniência e oportunidade” por parte do Poder Público.

Nesse quadrante, se a análise do poder concedente deve ser orientada pela avaliação da possibilidade de serem adimplidas “as obrigações de desempenho” e as “obrigações de investimentos” pelo novo concessionário, não resta dúvida de que, no âmbito desta análise, já estará inserida a possibilidade de tal agente adimplir a obrigação de duplicação prevista no PER; não haverá, pois, qualquer prejuízo. Muito ao contrário, tal aprovação propiciará que tais obrigações sejam adimplidas em um menor tempo do que se fosse realizada uma licitação para a escolha de um novo concessionário.

Daí poder-se concluir que interditar que as atuais concessionárias transfiram as suas concessões, com base na referida previsão contratual, importaria em violação ao próprio art. 27 da Le n° 8.987/1995, e, na ponta, ao princípio da liberdade de iniciativa (arts. 1º, inciso IV e 170, caput, da CRFB). E, mais que isso, tratar-se-ia de precedente negativo que, considerando o poder de influência que o contrato de concessão de rodovia sempre teve sobre os outros contratos de concessão de serviços públicos, poderá importar em severos prejuízos para diversos segmentos da infraestrutura brasileira

* Rafael Véras de Freitas é sócio do LL Advogados, professor e coordenador dos Módulos de Concessões e de Infraestrutura da pós-graduação do curso de Direito da FGV/RJ. Também é autor do livro “Concessão de Rodovias” (Fórum, 2018).
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