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iNFRADebate: Responsabilidade oculta – os órgãos de controle como freios ao desenvolvimento brasileiro

Thiago Barros Ribeiro*

O ativismo político-executivo dos órgãos de controle brasileiros não encontra paralelo em qualquer país do mundo. Se, por um lado, isso auxilia o Brasil a sustentar alguns bons índices de transparência governamental – somos, por exemplo, o 7º colocado mundial em transparência orçamentária, de acordo com o Relatório Global de Competitividade, do Fórum Econômico Mundial –, por outro, a ingerência de tribunais de contas e outros agentes de controle em assuntos que extrapolam suas atribuições é um dos principais vetores a comprometer o ambiente de negócios entre os setores público e privado no país.

O mesmo relatório de competitividade mencionado acima coloca o Brasil no último lugar entre os 141 países pesquisados quando o tema é a carga de regulação governamental, entendida como a dificuldade enfrentada pelas empresas para atender a todos os requisitos para fazer negócios com a administração pública. É isso mesmo: em nenhum outro país do mundo é tão difícil de se fazer negócios público-privados quanto no Brasil.   

É evidente que o emaranhado de leis, decretos e outros regramentos a se cumprir para a obtenção de licenças e autorizações junto aos governos intimida e muitas vezes inviabiliza a execução de parcerias público-privadas. Mais do que isso, regras excessivas são um convite à corrupção, posto que, quanto mais etapas burocráticas a serem percorridas e vencidas, maior o estímulo para que os agentes busquem caminhos mais ágeis para as soluções, à revelia da honestidade. É vasta a literatura que explora os efeitos nefastos da paixão do legislador e do burocrata brasileiros por regular toda e qualquer tentativa de negócios público-privados.

Porém, muito pouco se fala sobre a responsabilidade dos tribunais de contas e outras instâncias de controle para o baixíssimo grau de atratividade dos negócios com o setor público brasileiro. Infelizmente, o tema virou tabu porque criticar a atuação dos órgãos responsáveis por fiscalizar a lisura dos atos administrativos relacionados às contas públicas passou a ser visto quase como sinônimo de defesa da corrupção. Assim, na esteira do necessário processo de combate ao mau uso do dinheiro público e amparados pela espécie de carta branca de que dispõem para a ação, os tribunais têm se transformado em não apenas cortes de contas, mas de políticas públicas em sentido amplo, arbitrando sobre questões que em muito fogem de suas competências originais e ampliando ainda mais a famigerada morosidade burocrática brasileira.

Pior do que a invasão de competências em si é o fato de que não se tem notícia de casos em que tal intromissão tenha se dado no sentido de agilizar um processo de licitação, de conferir maior flexibilidade à gestão contratual, de, enfim, aproximar o setor público brasileiro das melhores práticas internacionais de contratação. Ao contrário, o que se observam são medidas que na maioria das vezes geram entraves desproporcionais antes, durante e depois dos certames licitatórios. 

É praxe das unidades técnicas de auditoria de tribunais de contas recomendar e até determinar que o executivo empreenda, em seus editais de concessões e outros tipos de parcerias público-privadas, alterações relacionadas a modalidade de outorga, curva de integralização de capital, matriz de riscos, obrigações entre as partes, alternativas de reequilíbrio econômico-financeiro e outros itens de caráter estritamente regulatório e, portanto, distantes da alçada adequada a uma corte que, como o próprio nome diz, deve se concentrar na análise das contas de editais e contratos.

Mesmo quando as orientações advindas de uma unidade técnica de auditoria se comprovam descabidas e, afinal, não prosperam na forma das medidas que propõem, acabam por trazer relevantes prejuízos aos processos em que tentam interferir. Isso ocorre devido a uma variável das mais importantes quando o que se está em jogo é o interesse público e a competitividade dos projetos: o tempo.  

Com efeito, a discussão imprópria aberta por recomendações impertinentes a determinados projetos obriga o gestor a se debruçar sobre respostas e justificativas documentais e esperar por uma réplica do respectivo órgão de controle, num processo de incessantes idas e vindas que perdura por meses, às vezes anos, digno de uma saga kafkiana, no qual simplesmente há, de um lado, o responsável executivo tendo de se explicar por um ato que lhe é legítimo, discricionário e legalmente atribuído enquanto formulador de política pública e, de outro, um agente querendo fazer valer sua opinião a respeito de um assunto que não é de sua competência, posto que não é formulador de política, mas sim agente responsável pelo controle de contas dos atos administrativos.

Exemplos não faltam. Um bom e recente foi o processo para a renovação do contrato de concessão ferroviária da Malha Paulista, com vencimento inicialmente previsto para 2028. As negociações entre a concessionária Rumo e o governo federal se iniciaram ainda em 2016 e, depois de várias rodadas, levaram à aprovação de uma proposta por Ministério dos Transportes e Agência Nacional de Transportes Terrestres, no segundo semestre de 2018. A renovação contratual para contratos desse tipo é uma previsão legal e não apresenta qualquer irregularidade inerente a si mesma, devendo a decisão, frise-se, discricionária do Poder Concedente se basear na análise da vantajosidade pública dessa possiblidade comparativamente à alternativa de uma nova licitação ao final do contrato vigente. 

Por mais subjetiva que possa ser uma análise de vantajosidade, e realmente não há uma medida exata de cálculo para ela, há alguns óbvios aspectos qualitativos que evidenciam os ganhos associados à renovação contratual, desde que atenda ao interesse público. De fato, a concessionária já estabelecida possui vantagens comparativas estruturais e operacionais que a tornam ampla favorita numa eventual nova licitação. Entre essas vantagens, pode-se mencionar, por exemplo, os investimentos já realizados e que, ainda não amortizados, deverão ser indenizados pelo concedente ao final do período contratual, convertendo-se em potencial fonte de recursos para que a concessionária vença as eventuais concorrentes numa nova disputa. Não se pode esquecer, por outro lado, todos os custos tangíveis e intangíveis relacionados a um novo processo licitatório, normalmente traduzidos em mais de dois anos de recursos humanos e financeiros despendidos entre o início dos estudos e o lançamento do edital de concorrência. Ora, mesmo poucos neurônios em trabalho de sinapse são capazes de concluir, pois, que a opção por lançar uma nova licitação tendo a possibilidade de se negociar um acordo para a prorrogação contratual antecipada é tão lógica quanto, querendo ir de uma esquina à outra da mesma rua, escolher dar a volta em todo um quarteirão em vez de caminhar em linha reta. 

Ciente disso, o governo federal, na proposta de renovação da concessão da Malha Paulista por 30 anos protocolada no Tribunal de Contas da União em outubro de 2018, previa não só a antecipação de investimentos de cerca de R$ 5,8 bilhões, mas também o direcionamento de parte das novas obrigações financeiras contraídas pela concessionária para a resolução de conflitos urbanos em dezenas de cidades paulistas. O interesse público e a vantajosidade eram claros desde os primeiros documentos apresentados ao Tribunal, que, no entanto, passou incríveis 19 meses questionando e buscando arbitrar questões associadas justamente à vantajosidade da escolha. Conforme já mencionado, é impossível de se calcular os números exatos associados à vantajosidade de uma renovação contratual de concessão, simplesmente porque isso exigiria a convivência prática de dois cenários excludentes entre si – a renovação e a nova licitação. Em outras palavras, os técnicos do controle passaram tempo equivalente à gestação de um bebê elefante colocando em xeque pontos que não poderiam ser, e por isso não foram, equacionados, embora as respostas qualitativas a eles fossem imediatas para qualquer um com alguma experiência executiva na administração pública.  

Apenas em maio de 2020, o ministro Augusto Nardes interrompeu a quixotesca aventura que continuava a embalar os sonhos da equipe técnica de seu próprio órgão, ainda tão convicta na busca por seu Ovo de Colombo quanto cega aos prejuízos inerentes a essa busca, e autorizou a assinatura da renovação contratual, em termos que, como esperado, eram em tudo semelhantes àqueles apresentados quase dois anos antes. Quase dois anos em que investimentos que já poderiam estar em ritmo de antecipação tiveram de esperar, quase dois anos em que os ganhos de competitividade à economia brasileira devido a uma infraestrutura de melhor qualidade tiveram de esperar. Quase dois anos em que nossos produtos poderiam já ter se beneficiado por um sistema de escoamento mais eficiente, tornando-se mais competitivos no mercado externo e mais baratos no mercado interno. Mas tivemos, todos, de esperar.  

Infelizmente, o caso da Malha Paulista é regra, não exceção. Um sem número de obras são paralisadas por suspeitas de irregularidades que, passado o tempo, mostram-se desarrazoadas; diversos contratos de longo prazo são impedidos de serem reequilibrados de forma ágil e eficiente, solucionando carências e proporcionando entregas de interesse a toda a sociedade, porque dos gestores é retirada a liberdade de, respeitando a legislação e o contrato, encontrar soluções criativas que deem sustentabilidade ao acordo com o parceiro privado; muitos editais não podem sequer seguir seu curso normal de licitação não por falta de transparência em sua estrutura contábil-financeira, mas porque não atendem ao formato de política pública que os órgãos de controle consideram a mais adequada.

Gestores públicos que cometem equívocos na condução de contratos sob sua guarida são responsabilizados, independente da boa intenção de seus atos, com o potencial comprometimento inclusive de bens e direitos pessoais. Tal previsão, ainda que seja cruel para os casos de comprovada boa-fé, não é descabida, configurando-se no preço a se pagar por aqueles que se dispõem a participar da gestão de recursos públicos, obtidos a partir da tributação a milhões de pessoas que não têm condições de fiscalizar a lisura na aplicação dos recursos que emprestam ao governo. 

Integrantes de tribunais de contas e demais órgãos de controle, porém, por mais que em teoria possam e devam ser responsabilizados por atos de improbidade, como qualquer outro agente público – conforme § 4º do Art. 37 da Constituição Federal e Arts. 2º, 10º e 11º da Lei 8.429/92 –, na prática, e de forma bastante inexplicável, não estão acostumados a responder por quaisquer de suas ações, independente de eventual má intenção ou de comprovada imperícia técnica em relatórios e pareceres que, ao atrasar processos de contratação ou execução de empreendimentos públicos, causam danos irreparáveis à sociedade. Habituaram-se a pairar sobre a lei, como se acima dela pudessem se colocar, o que eleva à enésima potência aquilo que em economia se conhece por risco moral, verificado sempre que um indivíduo tem incentivos a agir de maneira irresponsável, pois sabe estar protegido das consequências negativas de seus atos.

É hora de se combater esse péssimo hábito. Todos os agentes públicos devem ser igualmente responsabilizados por seus feitos, sem importar a posição que ocupam ou o órgão em que trabalham. Seja na forma dos milhões de reais em prejuízos ao erário provocados por paralisações precipitadas de obras que, danificadas ao longo do tempo em que ficam abandonadas, precisam ser refeitas quando retomadas, seja pelas feridas de morte infligidas à competitividade brasileira ou pelos atrasos na entrega de melhores serviços à população causados puramente pelo anseio de englobar competências e adentrar discussões que não lhes são pertinentes, os danos ocasionados pela atuação inadequada dos tribunais de contas e demais órgãos de controle precisam ser devidamente alocados aos seus responsáveis.

Claro está que a ação preventiva ou corretiva das instâncias de controle é importante na busca pelo melhor uso dos recursos públicos. Entraves são sim necessários como mecanismos de freio a gestões temerárias. Mas, quando essa ação passa ela própria a provocar o desperdício de recursos públicos, a travar por seus próprios e desmedidos meios o desenvolvimento do país, sendo mais um elemento a contribuir para nos colocar na vergonhosa posição de estrutura governamental com a qual é mais difícil de se estabelecer negócios em todo o mundo, então é hora de se levantar e trabalhar para que os pesos e contrapesos passem a funcionar para todos em igual medida.

*Thiago Barros Ribeiro é economista pela Universidade de São Paulo, mestre em Economia de Empresas pela Fundação Getulio Vargas, mestre em Assuntos Públicos pela Sciences Po Paris, gestor público federal do Ministério da Economia e atual secretário de Parcerias Estratégicas de Porto Alegre.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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