iNFRADebate: Reputação e controle – a interferência do TCU nas concessões de rodovias

Mariana de Melo Sanches* e Caio Cesar Figueiroa**

O grau de intervenção do TCU (Tribunal de Contas da União) em relação às agências reguladoras federais depende da reputação destas entidades. Essa foi a hipótese de pesquisa, posteriormente confirmada, em estudo empírico do Observatório de Controle da Administração Pública, conduzido em 2019 pela Faculdade de Direito da USP, a partir da teoria da organização reputacional1.  

Depois de o estudo escancarar essa faceta nas decisões do controle externo, o jogo não virou2.

É nesse sentido e cenário que, em sessão do último dia 22 de setembro, foi proferido o Acórdão nº 2.264/2021, de relatoria do ministro Raimundo Carreiro.

Na ocasião foram apreciados pedidos de reexame apresentados pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e pela Concessionária ECO101 em face do Acórdão nº 1.447/2018, de relatoria do ministro Augusto Nardes, cuja análise decorreu de solicitação do Congresso Nacional, em que foram apontadas falhas na fiscalização da agência em razão, principalmente, da (i) não promoção da recomposição do equilíbrio econômico-financeiro em razão de atrasos e inexecuções de investimentos com celeridade, o que as estimularia por não gerar perda tarifária efetiva; e (ii) inclusão de investimentos sem a aprovação de projeto executivo.

A partir disso, foi expedida naquele acórdão uma série de determinações à agência, dentre elas a exclusão de investimentos incluídos no contrato de concessão e a redução concentrada e pelo período de um ano da tarifa em caso de inadimplemento da concessionária. 

Para além das peculiaridades do caso concreto, chama a atenção a determinação endereçada à ANTT para a revisão de seus atos normativos. Em resumo, a exigência consistia na previsão de mecanismos que assegurassem a incidência do desconto na tarifa de forma concentrada e logo após a identificação de atraso ou inexecução de investimentos.   

No âmbito do relatório do Acórdão nº 2.264/2021, a partir da análise dos pedidos de reexame, muito se discute do ponto de vista técnico e econômico acerca dos efeitos da aplicação diluída dos efeitos das inexecuções contratuais sobre a tarifa, como defendem concessionárias e agência, ou concentrada, como sustentado pelo TCU.

Tendo em vista a relevância setorial da análise, o processo contou com a participação da ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias), na figura de amicus curiae

A partir de argumento apresentado pela ECO101 e ANTT, no sentido de que o tribunal estaria usurpando a competência da agência, a área técnica do TCU foi incisiva quanto ao descumprimento contratual por parte da concessionária, bem como à suposta conduta omissiva e atuação ineficiente da ANTT, o que legitimaria a intervenção do órgão de controle externo.

O conflito de entendimentos entre concessionárias e agência reguladora contra o da Corte de Contas não espanta. Cada qual defendendo sua reputação, embora apenas uma esteja em jogo. É como se as opções regulatórias da ANTT, ainda que respaldadas tecnicamente, fossem irrelevantes para análise, ofuscadas pela sua imagem perante o TCU.

No caso, surpreende o entendimento externalizado pelo Ministério Público de Contas, reconhecendo que houve extrapolação da competência pelo tribunal ao fixar a forma e prazo em que a ANTT deveria promover os descontos tarifários. Segundo a procuradora-geral, a “opção por determinado modelo regulatório, ou metodologia de cálculo para aplicação aos contratos de concessão, insere-se na esfera de poder de escolha das agências, que podem dispor de diferentes alternativas para exercer suas competências finalísticas, ou mesmo para corrigir desvios identificados”, reforçando que “as determinações emanadas pela Corte de Contas […] não devem ultrapassar os limites do controle de segunda ordem ao qual estão circunscritas”. 

Ainda, surpreende também o aparente conflito inicial de entendimentos entre ministros do TCU, na medida em que o relator reconheceu a ocorrência de “excessos pontuais” no acórdão original, o que decorreria da “falta, à época, de uma norma balizadora de reequilíbrios contratuais”, o que teria sido superado com a Resolução nº 5.850/2019. 

Por outro lado, em voto do ministro revisor, Walton Alencar Rodrigues, tem-se a defesa da atuação do tribunal no sentido de que este teria o dever de intervir “para manter a normalidade do regime jurídico administrativo das concessões e o equilíbrio do contrato” e que a atuação do controle externo seria imperiosa “para manter o regime de legalidade administrativa, em relação às concessões rodoviárias”. 

O dever de intervenção em nome do interesse público cede espaço a outros valores tão abstratos quanto, como a manutenção da “normalidade” e o “regime da legalidade”3.

Na linha do exposto pela área técnica – de maneira ainda mais incisiva – apontou o ministro, em suma, a ocorrência de atrasos sistemáticos de investimentos que beneficiam as concessionárias, na medida em que mantém sua remuneração na íntegra, em que pese o inadimplemento contratual, em desfavor dos usuários. Aponta que “as concessionárias, secundadas pela ANTT” seriam “espécie de verdadeiras ‘estelionatárias’” e que a tentativa da agência de regular o tema, a partir da edição da Resolução nº 5.850/2019, seria ineficaz e tópica.

Em razão disso, foi proposta pelo revisor, e acolhida pelo relator, verdadeira investigação acerca da resolução, tanto no que diz respeito à sua aplicação quanto ao seu processo de elaboração. 

Veja-se que independentemente de uma análise técnica para se dizer se o posicionamento do tribunal ou da ANTT, juntamente à ECO101 e ABCR, acerca da aplicação dos efeitos do inadimplemento contratual sobre a tarifa é ou não o mais correto, o acórdão evidencia a intervenção do TCU sob parâmetros nada claros. 

Em que pese as mudanças no corpo técnico e administrativo da ANTT nos últimos anos e edição de novas resoluções, como os Regulamentos das Concessões Rodoviárias Federais, resta evidenciado que a agência permanece em descrédito junto ao TCU.

Se, por um lado, essa perspectiva reputacional pode aproximar o controle da realidade – ao conceber maior deferência às agências com melhor desempenho técnico e moral –, de outro, amplia a subjetividade do controlador, não sendo raro encontrar nos acórdãos argumentos retóricos de caráter ad hominem.

Assim, permanece o cenário antes diagnosticado no estudo referenciado, de deslocamento das atribuições do regulador ao TCU, quando este presume que, em termos reputacionais comparativos, detém capacidade técnica superior à da agência. 

É verdade que a Corte de Contas possui um corpo técnico extremamente qualificado e que, em razão disso, é capaz de adentrar em um grau de detalhamento técnico em suas análises que não deixa de impressionar, principalmente se comparado a decisões judiciais sobre o setor rodoviário. 

Esse setor é técnico e complexo, e, atualmente, o TCU, em nível federal, se mostra como um dos poucos capazes, além da própria agência, é claro, de adentrar em suas minúcias. Isto não significa dizer que deveria sempre as adentrar e, com isso, questionar as decisões e regulamentos expedidos pela ANTT no exercício dos poderes que lhe são conferidos legalmente.

Assim, apesar das tentativas, resta o grande desafio para a agência eliminar a visão que a Corte de Contas expõe publicamente sobre sua atuação e sobre o setor por ela regulado. Enquanto isso não ocorre, quem nele atua vivencia o impacto dos desdobramentos dessa visão sobre a execução dos contratos e a regulação.

1 Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/80048>.

2 Voltando-se às concessões rodoviárias federais, a atuação do tribunal é notória, com exercício de ampla fiscalização em processos de relicitação (a exemplo do Acórdão nº 2.611/2020, Plenário, Rel. Min. Ana Arraes), acompanhamento de performance das concessões (Acórdão nº 2.190/2019, Plenário, Rel. Min. Bruno Dantas) e análise prévia de editais e contratos (a exemplo do Acórdão nº 4.036/2020, Rel. Min. Vital do Rêgo), dentre tantos outros que poderiam ser aqui citados.

3 É dizer, os fundamentos do voto do ministro revisor também poderiam ser questionados à luz do art. 20, da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
*Mariana de Melo Sanches é pós-graduanda em Direito Administrativo pela Direito GV-SP e advogada em regulação e infraestrutura no Cordeiro, Lima e Advogados.
**Caio Cesar Figueiroa é mestrando em Direito Público pela Direto GV-SP e sócio de Infraestrutura no Cordeiro, Lima e Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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