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iNFRADebate: Qual o modelo portuário mais adequado para o Brasil?

Frederico Bussinger*

Síntese da intervenção do autor na audiência da CVT (Comissão de Viação e Transportes) da Câmara dos Deputados em 16 de abril de 2021

A CVT (Comissão de Viação e Transportes) da Câmara dos Deputados vem de realizar, neste 16 de abril, audiência pública para discutir o tema que dá título ao artigo. A iniciativa deve ser saudada por colocar em discussão tema tão estratégico para o futuro do País. Mormente porque: 

  1. São frequentes eventos para anúncios e exposições de medidas, planos e projetos; de empresas, entidades e governos. Mas vão se tornando cada vez mais raras no Brasil oportunidades para discussões abertas e aprofundadas de políticas públicas. Negociações e busca de sínteses, então, muito menos.
  2. Acompanhei de perto, nessa Casa e no Senado, as tramitações das leis de 1993 e 2013; leis que balizaram as reformas brasileiras do setor ao longo das 3 últimas décadas. Testemunhei discussões temáticas e algumas negociações. Mas nenhuma delas, pelo que me recordo, partiu de um modelo sistematizado, detalhado, compreensível e de amplo conhecimento.

Por essa razão, a iniciativa da CVT, de colocar em pauta um típico tema de política pública, deve ser ainda mais valorizada.

Qual é o modelo portuário mais adequado para o Brasil?” é textualmente a questão colocada à mesa; objeto dessa Audiência Pública. E o convite formal agrega: (modelo) “mais eficiente e que produz melhores resultados ao Brasil”. Detalha ainda: “gerando menores custos dos serviços portuários aos usuários, com maior qualidade, desempenho operacional, atratividade de investidores, assim como desenvolvimento econômico regional e nacional”.

Portanto, não se trata de oportunidade para mera defesa de interesses (ainda que legítimos!) ou, mesmo, de uma discussão opinativa, em clima de Fla-Flu como comum nesses tempos: a CVT baliza, contextualiza com objetivos e, até, parametriza a questão posta à mesa – como toda discussão de política pública deveria ser! 

Mais uma razão para se parabenizar a CVT.

Operações privadas sempre foram majoritárias no Brasil. Arrendamentos tornaram-se rotineiros no cenário portuário brasileiro desde meados dos anos 90. Autorizações para TUPs tiveram um “boom” após promulgação da lei de 2013. Até aí nenhuma novidade. 

O que deve ter motivado esta iniciativa da CVT é a tal da “privatização dos portos brasileiros”; uma impropriedade, vez que as operações portuárias já são 100% privadas no Brasil há mais de 20 anos. 

Assim, o que está em pauta, na verdade, é a desestatização (privatização, na linguagem corrente) das Autoridades Portuárias, dos portos públicos; o que, se efetivado, representaria, sim, uma significativa inflexão no modelo brasileiro,

Ademais, dois fatos devem ter aguçado o interesse da CVT: 

  1. a difusão da informação de que um tal “modelo australiano” seria nossa referência básica (ou o “modelo australiano ajustado”, como passou a ser veiculado), já mesmo antes do BNDES ter sido envolvido no processo de modelagem; e
  2. a realização da Audiência Pública dentro do processo da CODESA e dos portos capixabas.

É oportuna, pois, a iniciativa da CVT; mesmo porque, ante esses fatos, a discussão não é mais em tese, mas a respeito de processos em curso e com paradigmas estabelecidos.

Na busca de respostas à questão proposta pela CVT, ao menos 3 abordagens podem ser usadas:

  1. Um olhar para fora: examinar-se a história e inspirar-se nas experiências mundiais. Uma avaliação de melhores práticas, habitualmente usada pelas agências multilaterais.
  2. Um olhar para os desafios do Brasil futuro;
  3. Um olhar para nossas recentes experiências.

O que o mundo nos ensina?

Na 1ª perspectiva, as pesquisas periódicas de “Governança Portuária”, feita pela Associação Europeia de Portos (European Sea Port OrganizationESPO), em mais de 200 portos do Continente, nos fornecem uma abalizada resposta. E ela é inequívoca: o modelo Landlord é o benchmarking internacional!

A ESPO conseguiu identificar 5 variantes do modelo; mas todas têm 2 características básicas incrustradas no seu DNA:

  • Separação das funções de autoridade e operação portuária;
  • Autonomia administrativa. Dito de outra forma: processo decisório descentralizado.

Esse modelo foi concebido há 8 séculos; antes, mesmo, do estabelecimento de estados nacionais: 

  • o Porto de Hamburgo, berço do “Landlordismo” no Século XIII, já existia quando a Alemanha foi constituída como tal; 
  • o Porto de Genova, de onde partiu Colombo, também é anterior à institucionalização da atual Itália! 

Desde então esse modelo vem sendo desenvolvido com contribuições de distintas culturas, sistemas econômicos e regimes políticos. E hoje é o modelo dominante não apenas na Europa; mas também na Ásia, Sudeste Asiático, Oriente Médio, África, América Latina e, mesmo, nos USA: a Austrália é uma das poucas exceções! Difícil, pois, entender-se o porquê ela foi escolhida como nossa estrela-guia!

Para além dos latinos, por que queremos adotar modelo distinto da (emergente e pujante) China; país onde estão 7 dos 10 maiores portos do mundo? Ou daquele predominante nos portos dos USA; referência frequentemente invocada para organização econômica e institucional do Brasil desde o final do Século XIX; principalmente pelos liberais? 

Ou da Europa, nossa mais duradoura referência, onde “a esmagadora maioria das Autoridades Portuárias é pública”, segundo a pesquisa da ESPO feita junto a 216 portos, de 26 países, representando 2/3 da movimentação europeia? Ora municipais, ora estaduais, ora regionais. Ora com presença do governo central; ora com participação acionária privada. Mas, sempre, organizações sob comando de instâncias públicas; é o que mostra o relatório final da ESPO: essa seria uma 3ª característica cravada no DNA do “modelo landlord”!

Ou seja, da avaliação das boas práticas internacionais pode-se tirar uma conclusão ainda mais específica e detalhada: o benchmarking mundial é o modelo landlord, com gestão descentralizada e autônoma, e sob comando de instâncias públicas 

Ou seja, o benchmarking mundial pode ser enunciado ainda mais detalhadamente: ele é modelo landlord, com gestão descentralizada, autônoma e participativa, e sob comando de instâncias públicas. Evidentemente profissionalizada.

Duas explicações normalmente vinham sendo dadas para o Brasil se descolar benchmarking internacional:

  1. A existência de “burocracia”, de dificuldades para licitação e contratação no setor público, resultantes da Lei nº 8.666 – uma peculiaridade brasileira.
  2. E, “impossível administrar-se com influência política”; “é preciso blindar os portos dos políticos”; ou variações dessas afirmativas. Ou seja, haveria que se colocar numa redoma nossos portos; ou de “vaciná-los” contra efeitos de disfunções institucionais, federativas e da democracia brasileira. 

Ao menos do ponto de vista de resultados, esses argumentos sempre tiveram pouca sustentação em dados, fatos e retrospectiva histórica; visto que:

  1. Aquela grande transformação dos anos 90 foi feita tanto sob a vigência da mesma Lei nº 8.666/93 (álibi preferido para a inação de administradores e governantes; lei que teve a má sorte de no seu número ter o 666 da besta do Apocalipse!), e sob o execrado tal “presidencialismo de coalização” (igualmente apontado como imobilizador da administração pública): haveria, pois, que se explicar o porquê foi possível implementar-se tantas e tão profundas transformações naquela oportunidade, e não o é atualmente.
  2. Outra conclusão da pesquisa da ESPO é que “A influência política varia regionalmente, mas é substantiva por toda parte, com exceção dos portos anglo-saxões. Ela se materializa através da indicação dos principais executivos e da composição dos conselhos “. Ou seja, influência política, em si, não seria um privilégio brasileiro: a se discutir a forma dela. 

Se com base em dados e fatos já era difícil sustentar-se rejeição ao modelo Landlord para o Brasil, agora tornou-se ainda mais difícil: é que a Lei nº 8.666/93 vem de ser revogada. A data de promulgação da sua sucessora (Lei nº 14.133/21) não inspira lá tanta confiança (1º de abril); mas a maioria de juristas e gestores da área, que se manifestaram até agora, asseveram trazer ela grandes avanços: é moderna, destravante, e focada em resultados.

O renomado Dr. Marçal Justen Filho, por exemplo, proferiu didática palestra, seguida de debate, no Instituto dos Advogados do Paraná – IAP (https://youtu.be/6XV9xbLhzrI), no último dia 13 de abril. Registrou que “não seria a lei que faria”; mas defendeu os inúmeros avanços da nova lei. 

Dentre tantos apontamentos, quatro merecem destaque por confirmar a avaliação dominante e mudar o cenário de contratações pelo setor público no Brasil:

  • incorpora recursos tecnológico: tudo deve ser feito pela internet; 
  • possibilita pré-qualificação objetiva (para minimizar o risco do “café de repartição”);
  • contrato que começa mal pode ser corrigido;
  • e, especialmente: rejeita “formalismo inútil”.

Nossos desafios; nossa experiência:

Como essa não é uma reflexão meramente diletante, há uma 2ª abordagem para a questão proposta pela CVT (“Qual é o modelo portuário mais adequado para o Brasil?”). Esta é uma abordagem mais objetiva e pragmática; uma abordagem que, com farol de proa aceso, olha para nós mesmos e para o futuro; um futuro que nos propõe novos desafios: que problemas precisamos e, principalmente, queremos resolver (particularmente nos portos públicos)? 

Para tanto, é preciso rebobinar o filme:

  1. Na virada dos anos 80/90, véspera da aprovação da lei de 93 que balizou um novo modelo, o foco das reformas era o cais: como embarcar, desembarcar e armazenar. Hoje o principal gargalo e, por conseguinte, foco são os acessos: como chegar e sair dos portos.
  2. Assim, se o foco há 3 décadas era portuário, hoje ampliou-se: é logístico.
  3. Tanto lá como agora há necessidade de aumento de capacidade. Lá foi feita essencialmente com mecanização e automação (visto haver infraestrutura sub-aproveitada). Hoje é necessária requalificar a infraestrutura existente, e também ampliá-la.
  4. Lá buscava-se a “avulsificação” da capatazia. Hoje a vinculação dos TPAs (avulsos).
  5. Lá era a redução do contingente. Hoje é a qualificação (e requalificação da mão de obra).
  6. Lá as empresas/empresários queriam entrar no porto público. Hoje, à exceção de operantes com granéis líquidos, o desejo majoritário (ainda que surdo) é sair dos portos públicos (ante as vantagens competitivas dos TUPs, proporcionadas pela lei de 2013 – conforme, inclusive, constatado por recente auditoria do TCU).
  7. Hoje há, também, demandas, desafios, compromissos e metas ambientais que inexistiam há 30 anos atras!

E um aspecto novo, de extrema relevância para a análise da desestatização das autoridades-administradoras, no âmbito da governança portuária:

  • quando da aprovação da lei de 1993, porto e porto organizado praticamente se confundiam;
  • por exemplo, em Santos, o Porto Organizado abrangia todo o Estuário, incluindo TUPs então existentes (pois a antiga lei o permitia – a nova não);
  • com a sistemática redução das Poligonais, houve a necessidade de se criar um novo conceito: os “complexos portuários”;
  • como decorrência, os “Planos Mestres” foram introduzidos no “sistema de planejamento” (pois os PDZs focam os portos organizados; as poligonais);
  • mas ainda não se concebeu e desenvolveu uma governança para os “Complexos Portuários”; certamente uma das razões de lacunas e conflitos nos processos decisórios e, mesmo, para a regulação que vêm sendo observados.

Agreguem-se a esses, dois outros fenômenos crescentemente observados no passado recente:

  • a “TUPização” dos portos públicos;
  • a verticalização da cadeia logística; articulando-se navegação, instalações portuárias, retroportuárias e serviços de transporte terrestre. 

Em síntese, há desafios novos para o planejamento, governança e regulação. E, nesse caleidoscópio, a desestatização das autoridades portuárias acaba se tornando apenas um dos inúmeros aspectos. E, certamente, não o principal.

Por conseguinte, o modelo portuário mais adequado para o Brasil, que é o que nos indaga a CVT, em termos lógicos, estratégicos e do interesse nacional, só pode ser aquele que dê melhores respostas, que melhor enfrente os desafios portuários e logísticos do futuro próximo; certo?

Nessa mesma linha de raciocínio, e no caso específico do modelo para as autoridades portuárias, de per si, o modelo mais adequado é aquele que melhor dê conta das funções, conceitualmente consagradas, de uma autoridade-administradora; quais sejam:

  1. Gerar e gerir os espações portuários;
  2. Prover a infraestrutura básica e os serviços condominiais;
  3. Regular as operações portuárias e as parcerias;
  4. Fomentar negócios;
  5. Contribuir para o desenvolvimento regional.

Quatro observações:

  • Autoridades portuárias têm e gerem ativos, sim. Mas o mais relevante para o desempenho portuário são as funções que elas desempenham;
  • A lei brasileira trata-as conjuntamente: mas uma coisa são as funções de administração, outra a de autoridade portuária – essa com muitos componentes de regulação (a nível local) e de poder público.
  • Assim, é até cogitável privatizar-se a função de administração (dos ortos públicos); mas a de autoridade, com tais componentes, precisaria ser mais bem esclarecido o como? Mormente no ordenamento jurídico brasileiro.
  • É possível também imaginar um complexo portuário privado, seja como TUP (como o Porto do Açu-RJ ou o Terminal Portuário de Alcântara-MA); seja como concessão global; o que a lei brasileira o permite 

Difícil analisar-se a potencial adequabilidade e eficácia do tal do “modelo australiano” ante tais desafios, e para solução desses problemas (mesmo o “modelo australiano ajustado”): os objetivos das reformas naquele país eram em muito distintos, e há muitos questionamentos em relação aos resultados.

Mas algo que pode ser feito é olharmos para nós mesmos; agora com o farol de popa: essa uma 3ª abordagem.

E, nesse caso, é praticamente um consenso que as maiores transformações nos portos brasileiros ocorreram sob a vigência do modelo balizado pela Lei nº 8.630/93). A saber, por exemplo: 

  • reestruturações profundas de práticas centenários (como horário de funcionamento do porto, jornada de trabalho e sincronismo de turnos capatazia-estiva);
  • introdução de novos instrumentos (como DTAs);
  • atração e comprometimento de pesados investimentos (que se efetivaram!); 
  • aumento exponencial da eficiência (portuária e sistêmica);
  • redução de custos portuários;
  • expansão geométrica de movimentações. 

Importante observar que esse modelo foi, incidentalmente, o mais próximo do landlordismo que o Brasil já teve: descentralização (do processo decisório), autonomia de gestão, participação da comunidade local no processo decisório. E também, incidentalmente, que ele começou a perder fôlego quando o processo decisório começou a ser paulatinamente re-centralizado e as autoridades-administradoras a perder autonomia: valeria avaliar-se o peso relativo da contribuição de cada um desses componentes: privatização e descentralização!

Coincidência? Pode ser! Há outros fatores? Certamente! Mas difícil negá-lo: ele “mostrou serviço”.

Enfim, quer olhemos para o mundo; quer olhemos para os desafios futuros; quer nos espelhemos em nossas experiências do passado recente; o mais prudente seria nos alinharmos ao benchmarking internacional para os portos públicos: landlord, com gestão descentralizada, autônoma e participativa; e sob comando de instâncias públicas. Evidentemente profissionalizadas.

*Frederico Bussinger foi presidente da Docas de São Sebastião, diretor da Codesp (Porto de Santos) e do Departamento Hidroviário (SP). Conselheiro do Consad da Codesa e da Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização. Secretário-executivo do Ministério dos Transportes. Coordenou o PROPS em Santos e o PIPC (Plano Integrado Porto-Cidade) em São Sebastião. Foi consultor de PDZs e de modelagem para arrendamentos em diversos portos. Atualmente é consultor.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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