iNFRADebate: Pedalando o credor do Estado (ladeira abaixo…)

José Virgílio Lopes Enei* e Maria Virginia Mesquita Nasser**

Em 2017, quando o ex-presidente da Odebrecht Infraestrutura prestou depoimento à Justiça Eleitoral sobre doações irregulares de campanha feitas pela empresa onde trabalhava, afirmou o seguinte: “Como eu disse ao senhor, nós nos afastamos do Governo Federal para não viver da peça de ficção que era o Orçamento Geral da União – o OGU. O OGU representava a cada liberação de dinheiro alguém que tinha de fazer um pedido e nós fugíamos disso. Então, que eu me recorde, não [solicitei a Marcelo Odebrecht que intercedesse pela Construtora Odebrecht S.A. junto ao Governo Federal]. O que eu pedia a Marcelo e ele se envolvia bastante era o fluxo de pagamentos do submarino nuclear. Ele fazia da agenda que ele tinha com as pessoas que… Da importância do submarino nuclear não ficar… Porque chegava o final de ano havia uma retenção, eles só iam pagar em março, era um projeto que demandava cem milhões mês. Era a única agenda que me envolvia com ele”.

A fala de Benedicto Barbosa diz respeito ao pedido do executivo para que o projeto do submarino nuclear, que demandava pagamentos mensais vultosos, fosse incluído nas discussões que Marcelo Odebrecht tinha com as altas autoridades do país, solicitando que não fossem represados os pagamentos contratualmente devidos à empresa pelo desenvolvimento do submarino nuclear que lhe fora encomendado. Mais tarde o executivo deixa claro que a Marinha do Brasil, contratante do projeto, jamais havia solicitado propinas ou doações eleitorais para fazer os pagamentos (que eram devidos). Os pagamentos eram incluídos na lista de “favores” negociados em troca das doações como um “seguro”1.

O relato do executivo deixa claro o nível de absurdo a que chegou a prática institucionalizada do calote na Administração Pública. O orçamento público federal, apontava o colaborador, era uma peça de ficção. E ocorre assim mesmo. O orçamento é preparado com estimativas infladas de arrecadação, para acomodar uma série de despesas. Iniciado o ano em que se deve executá-lo, vem o decreto de contingenciamento e lá vão os gestores decidir de onde cortar. Algumas despesas são obrigatórias, eis que vinculadas por leis ou pela Constituição. Outras são obrigatórias porque atendem a privilégios corporativistas que ninguém está disposto a combater. Não raro sobra para quem forneceu bens ou serviços ao ente público contratante ficar sem receber. Pior: se estiver prestando um serviço tido como essencial, esse fornecedor ainda pode ser obrigado judicialmente a seguir prestando o serviço mesmo sem receber por ele. É aquilo que os subscritores deste artigo ouviram um arguto professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco chamar de “pedalada contratual” quando estavam nos bancos da pós-graduação.

Pois bem, esse fornecedor que sofreu o calote e se tornou credor do Estado pode – e é o que geralmente ocorre – não ser pago com recursos orçamentários reservados ao pagamento do seu crédito no exercício seguinte. Ele deverá buscar a quitação da dívida na Justiça, em um processo que não será dos mais expeditos. Frequentemente tais processos tramitam 20 ou mais anos. Reconhecido e quantificado o crédito em juízo por decisão final e irrecorrível, e superados outros incidentes como ação rescisória e embargos à execução, o credor recebe um precatório judicial e deve apresentá-lo ao tribunal competente, para ser pago quando chegar a sua vez. Se o precatório for de altíssimo valor (um contrato envolvendo um submarino, uma estrada, um hospital, quem sabe?), pode fazer jus a receber apenas 15% do valor do precatório no ano seguinte ao de sua apresentação, ficando o restante parcelado em mais 4 anos, com a possibilidade de se fazer um acordo para receber antes, abrindo mão de 40% (isso mesmo) do valor inicial. 

E isso, é claro, tratando-se de precatórios detidos contra a União, considerada a melhor credora dentre os entes federativos.  Muitos estados e municípios vêm procrastinando o pagamento de seus precatórios, com sucesso, por algumas décadas.  E não são apenas os estados e municípios pobres. O município de São Paulo está atualmente pagando os precatórios emitidos em 2002, ou seja, com 17 anos de atraso.  O estado de São Paulo vem pagando os de 2007. E tudo isso com respaldo em sucessivas emendas constitucionais que postergam a data limite até a qual referidos entes deveriam passar a cumprir a regra geral de pagamento do precatório, grosso modo, no exercício seguinte ao da sua requisição. Algumas dessas emendas foram julgadas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, mas por decisões moduladas ou intempestivas que tiveram poucos efeitos práticos.

Olhando para esse calvário, é fácil entender porque grandes empresas que contratavam com o Estado estariam dispostas ao que fosse necessário, lícita ou ilicitamente, para não irem parar na tal fila do precatório. Ou porque uma mesma obra ou serviço é fornecida ao Estado a um preço maior do que é fornecida a um ente privado. Precifica-se aí o risco calote.

Pois bem. Eis que surge de alguns dos membros do Senado Federal a proposta de se tomar parte dos valores destinados ao pagamento dos precatórios ao novo programa de renda mínima do gestado pelo Governo Federal, adiando-se o pagamento de parte dessas dívidas. O calote do calote.

O mérito do programa não é questionado. É dever do Estado incluir os mais vulneráveis no orçamento. A medida é necessária inclusive para permitir que a economia não volte a um estado de maior apatia, o que é obviamente secundário frente ao ditame constitucional de assegurar existência digna a todos os cidadãos.

O que não se compreende é porque é justamente o credor do Estado quem deverá sofrer nova pedalada para financiar a manutenção do programa. Que se busquem outras fontes de financiamento, como as reformas tributária e administrativa.

A proposta é alardeada por seus defensores como razoável por não furar o teto de gastos. Ora, pode ser que realmente não o ultrapasse, mas passar a conta da falta de orçamento para ampliar um programa de renda básica de cidadania a quem já tomou um calote do Estado e percorre longo caminho para obter a quitação de um crédito reconhecido judicialmente fere a segurança jurídica e envenena o ambiente de contratações públicas com incentivos para que o Estado brasileiro siga sendo o mal pagador de sempre.

Antes de se acusar a existência de uma indústria do precatório, criada justamente pela necessidade de se dar alguma liquidez a tais títulos, seria o caso rever o funcionamento da máquina de pedalar os credores do Estado e a péssima gestão fiscal de curto prazo que dela resulta. Sem essa correção de rumos, seguimos ladeira abaixo.

*José Virgílio Lopes Enei é sócio do escritório Machado Meyer Advogados e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo.
**Maria Virginia Mesquita Nasser é advogada e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo.
1 Transcrição do depoimento de Benedicto Barbosa Silva Júnior nos autos da Ação de Investigação da Justiça Eleitoral nº 1943-58.2014.6.00.0000, p. 43 e p. 50. “JF” é a abreviação dada a “juiz federal”. Neste depoimento, o juiz federal Bruno Lorencini auxiliou o ministro Herman Benjamin na instrução da ação.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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