iNFRADebate: Os trilhos tortuosos das ferrovias do Brasil

Bernardo Figueiredo*

Novo marco legal e processo de autorizações são insuficientes para elevar o modal ferroviário ao patamar que se faz necessário.

O Brasil precisa construir uma malha ferroviária que tenha ampla cobertura do território nacional, interligando os centros de consumo aos polos de produção. As vias férreas devem ser mais integradas, e o mercado tem uma forte demanda por maior flexibilidade de acesso das cargas aos trilhos. E tudo isso deve ser acompanhado por eficiência operacional, competitividade e tarifas justas. Mas será que o novo marco legal das ferrovias (Lei 14.273/2021) e o dispositivo das autorizações conquistarão essas metas? Definitivamente, a resposta é não.

Atribuir somente à iniciativa privada a responsabilidade de incrementar a infraestrutura é virar as costas para os desafios de um país como o Brasil, onde os produtos percorrem em média 1.000 quilômetros para chegar ao seu destino. E não existe experiência internacional de desenvolvimento de ferrovias sem uma forte participação do poder público no suporte econômico-financeiro e regulatório.

O governo atual vem justamente na contramão de nações que, ironicamente, são usadas como exemplos. Para a União, a expansão ferroviária deve ser feita por meio de uma livre e desordenada iniciativa privada. E os técnicos do governo utilizam como referência os Estados Unidos com um viés desequilibrado. Ou há um grande desconhecimento sobre a história, ou podemos considerar a hipótese de uma deturpação proposital da realidade.

O exemplo da América
Nos Estados Unidos, as ferrovias existentes foram construídas no final do século XIX e começo do XX com uma forte participação do governo em apoio à iniciativa privada. Em 1916, a América já contava com 406 mil quilômetros de trilhos. Mas a crise econômica de 1929, a forte concorrência da indústria automotiva e a pouca racionalidade da malha (que tinha uma grande superposição de trechos ferroviários – pasme, como acontece hoje com algumas autorizações no Centro-Oeste) comprometeram a competitividade e a viabilidade econômica dos operadores.

Ao contrário do que se propaga, o Staggers Act de 1980 reduziu drasticamente a malha americana dos iniciais 406 mil para 222 mil quilômetros. Eliminou-se a superposição de trechos antieconômicos. E dos 56 operadores ferroviários Classe I existentes em 1976, restaram apenas sete em 2015. Os Estados Unidos reforçaram a tese de monopólio natural na ferrovia e geraram ganhos de escala e produtividade. Vale ressaltar que, recentemente, o governo de Joe Biden anunciou um agressivo programa público de investimentos para expandir as ferrovias.

Marco legal e autorizações: um desencontro regulatório em desfavor do país
O novo marco legal brasileiro estabelece que são pilares do modelo de autorização a liberdade dos autorizatários em cercear o acesso de terceiros às ferrovias e de praticar preços sem nenhum tipo de limites. Se a ideia era se basear no modelo de sucesso norte-americano, nós erramos. Não só na América do Norte, mas também em muitos outros países desenvolvidos, o compartilhamento da infraestrutura é uma prática corriqueira. E os usuários norte-americanos são protegidos de abusos dos operadores – se as tarifas cobradas excederem 1,8 vez o custo variável do transporte, elas podem ser revistas pelos órgãos reguladores.

O Brasil tem utilizado ferramentas estratégicas de maneira equivocada. Um exemplo é o uso da outorga de autorização para construir novos trechos. Aportes dessa natureza são eficientes em situações específicas como, por exemplo, estender ferrovias existentes para aumentar a competitividade ou para eliminar a necessidade de viagens rodoviárias longas para se acessar os trens. A autorização não é um instrumento capaz de realizar todos os investimentos necessários para a infraestrutura nacional.

Outro problema grave que se impõe na esfera legal é a falta de garantias de condições mínimas de efetividade dos investimentos propostos. Não estabelecer exigências de qualificação do projeto e do solicitante estimula especulação que serve somente para posicionar estrategicamente os proponentes de “ferrovias de papel” e desestabilizar a concorrência. Conceder múltiplas autorizações para o mesmo par de origem e destino, muitas vezes com traçados superpostos, inviabiliza a realização do investimento por qualquer um dos proponentes ao impor um risco não-gerenciável.

As concessões de malhas que estejam na área de influência de autorizações podem revisitar ou até cancelar investimentos programados. Afinal, nenhum player privado que se preze “rasgará dinheiro” quando o cenário for de uma competição predatória, na qual a “ameaça de fretes baixos” serve apenas ao objetivo de eliminar concorrentes indesejados. Por óbvio, isso afeta gravemente o equilíbrio econômico-financeiro de qualquer concessionário e a conta será cobrada do poder concedente e dos usuários.

O instrumento da autorização foi precarizado, e seu uso hoje cria uma ilusão de que ele tem o poder de viabilizar os investimentos necessários para as ferrovias. Se o governo não revisitar esse processo e o seu marco legal, assistiremos novamente a um novo ciclo de atrasos da infraestrutura do país.

*Bernardo Figueiredo é economista de formação, já atuou como diretor-geral da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres); diretor administrativo e financeiro da Valec – Engenharia, Construções e Ferrovias SA; diretor executivo da ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários); e presidente da estatal EPL (Empresa de Planejamento e Logística S.A.)
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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