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iNFRADebate: O caso da THC2 e a Análise de Impacto Regulatório promovida pela ANTAQ

Heloísa Armelin*

As agências reguladoras surgiram no Brasil na década de 90, no contexto das desestatizações promovidas pelo Governo Federal, em uma tentativa de sanar as contas públicas e proporcionar melhorias na qualidade da prestação dos serviços, bem como sua universalização, sobretudo mediante atração de investimentos privados. Para que cumprissem seu papel institucional no Estado regulador brasileiro, a essas autarquias foram conferidos, ao lado das autonomias administrativa e financeira, independência técnica e poder normativo, para que pudessem disciplinar, a partir da sua expertise, as atividades desenvolvidas nos mais respectivos setores regulados.

No entanto, muito se discute a propósito da autonomia dessas entidades reguladoras na prática. Entre outros fatos, o que a realidade tem demonstrado é que, muitas vezes, o controle exercido pelo Judiciário ou pelos tribunais de contas acaba por esvaziar as competências regulatórias das agências, que são verdadeiramente substituídas pelos controladores1.

Foi nesse contexto que a preocupação com a procedimentalização dos atos normativos foi positivada pela Lei Federal nº 13.848/20192, que dispõe sobre gestão, organização, processo decisório e controle social das agências reguladoras. Instrumentos de qualidade regulatória voltados à ampla participação popular, ao aumento da transparência e à robustez da motivação dos atos administrativos são verdadeiros mecanismos de aperfeiçoamento do Estado regulador e de preservação da autonomia e da independência das agências, uma vez que, ao mesmo tempo em que conferem legitimidade às decisões dessas entidades, impõem maior ônus àquele que pretender revisá-las. 

Merecem destaque: (i) a previsão de elaboração de Análise de Impacto Regulatório ou, simplesmente, AIR  (art. 6º), (ii) a disciplina de transparência e publicidade dos atos, como divulgação das pautas e transmissão das reuniões deliberativas (art. 8º), (iii) a ampliação da participação popular e a difusão de informações, mediante consulta e audiências públicas, por exemplo (art. 9º, 10º e 16), (iv) a institucionalização do planejamento, com a elaboração de plano estratégico e plano de gestão (arts. 17 e 18), além da implementação de agenda regulatória, enquanto instrumento de planejamento da atividade normativa (art. 21). Com todos esses instrumentos à disposição das agências, há grande expectativa de que sua utilização sirva de barreira às ingerências indevidas do controlador3.

Atualmente, a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) se depara com um caso bastante emblemático, em que a implementação de tais mecanismos poderá ser responsável pela afirmação da sua autonomia, com a observância da sua escolha regulatória pelos órgãos de controle. 

Trata-se do caso do preço cobrado pelo SSE (Serviço de Segregação e Entrega de Contêineres), também conhecido como THC2 (Terminal Handling Charge 2). A julgar pelo histórico do tema, dificilmente a discussão ficará circunscrita ao âmbito da agência, tendo em vista que, por diversas vezes, os interessados se socorreram do Poder Judiciário e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para discussão de casos concretos envolvendo o assunto.

A possibilidade de cobrança desse preço é, atualmente, objeto de disciplina pela Resolução Normativa nº 34/2019 (impugnada por recursos ainda pendentes de julgamento pela ANTAQ), a qual define o SSE como preço cobrado pela movimentação das cargas entre a sua localização no pátio e a entrega no portão do terminal portuário4.

A redação da resolução normativa ainda confere margem para a normatização dos critérios que deverão ser utilizados pela agência nos casos de abusividade da cobrança. É o que prevê o artigo 9º, parágrafo único, da norma: “No caso em que restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal na cobrança do SSE, a ANTAQ poderá estabelecer o preço máximo a ser cobrado a esse título, mediante prévio estabelecimento e publicidade dos critérios a serem utilizados para sua definição”.

Assim, em complemento à RN 34/2019, paralelamente à decisão de mérito sobre esta cobrança, cabe agora à agência regular a metodologia para o estabelecimento do preço-teto a ser aplicado nos casos em que for constatada a abusividade dos valores praticados a título de THC2. Considerando a complexidade do assunto e o histórico de questionamentos dos atos normativos com essa temática5, é imprescindível que a ANTAQ adote os mecanismos de qualidade regulatória cabíveis, com especial destaque para a Análise de Impacto Regulatório6, para resguardar suas decisões sobre o tema e, consequentemente, conferir maior segurança e previsibilidade aos players do setor.

Todavia, a unidade técnica da ANTAQ, ao dar início à AIR7 no caso concreto e delimitar seu objeto de estudo, não observou o campo de regulamentação predefinido pela RN 34, indicando como objeto da análise: “i) os critérios para impor o preço-teto de que trata o parágrafo único do art. 9º da RN 34/2019, ii) qual seria o preço-teto para o SSE; e iii) se caberia a solução complementar de uma franquia, introduzindo esse conceito dentro da RN 34/2019”. Adicionalmente, a unidade técnica previu que a opção de regular “contempla um Preço-Teto referencial a ser aplicado em conjunto com a possibilidade de estabelecimento de uma franquia para a guarda provisória associada ao Serviço de Segregação e Entrega (SSE), incluindo critérios para caracterização de abuso ilegal na cobrança para o SSE e para as demais práticas de conduta abusiva”8.

Como se vê, em vez de pretender estabelecer metodologia para eventual estipulação de preço máximo aplicável aos casos concretos de verossimilhança da ilegalidade do abuso na cobrança da THC2 (como previsto no parágrafo único do mencionado art. 9º), a AIR pretende fixar, desde já, um preço-teto nacional, aplicável a todo e qualquer caso envolvendo o SSE.

Sem adentrar na análise dos efeitos indesejados do tabelamento do preço, que já conta com um voto favorável da Diretoria da ANTAQ9, a presente análise cuida da aplicação da AIR no caso concreto. 

Embora ainda não disponibilizado ao público o relatório da AIR, das passagens transcritas no voto-vista exarado por diretor da agência10, infere-se que a identificação do problema regulatório que se pretende solucionar e a definição dos objetivos a serem alcançados com a AIR (requisitos previstos no artigo 6º do Decreto nº 10.411/2020) extrapolaram os limites previstos RN 34/2019, o que conduziu a uma proposta de norma diferente daquela pretendida pela normativa originária.

Levada à deliberação da diretoria colegiada para posterior submissão à audiência pública, a minuta de resolução foi objeto de duras críticas de um dos diretores da agência, que, no voto-vista acima mencionado, posicionou-se contrariamente à proposta elaborada, apontando o equívoco originário na delimitação do escopo do trabalho responsável por originar a proposta de tabelamento de preços. 

Com o julgamento paralisado em razão de pedido de vista formulado pelo último diretor a votar, as atenções se voltam para o desfecho do caso no âmbito da própria ANTAQ, o qual poderá ser determinante para questionamentos dos regulados e para a própria sorte dessas impugnações.

Parece claro que para que a escolha regulatória da agência seja dotada de maior solidez, é fundamental a implementação substancial dos mecanismos de qualidade regulatória que legitimem e motivem sua edição e seu teor. Assim, o equívoco inicial quanto à delimitação do objeto da Análise de Impacto Regulatório, além de ensejar um tabelamento de preços não previsto na RN 34/2019, mina um dos principais benefícios do uso da AIR, que é o de fornecer elementos indispensáveis para a prevalência das decisões das agências reguladoras quando analisadas pelos órgãos de controle em razão do seu sólido embasamento empírico e científico.

É igualmente desejável, também sob a ótica do regulado, a correta adoção desses mecanismos para que, a um só tempo, seja garantida previsibilidade e evitado excesso de regulação tendente a, no caso concreto, institucionalizar o tabelamento de preços, que poderia ser evitado mediante observância do campo regulamentação predefinido pela RN 34.

O que se observa então é que a ANTAQ se depara com um caso relevantíssimo, cujo tema já foi objeto de muitas controvérsias que se arrastaram ao longo de anos, e tem nas mãos a possibilidade de reparar eventuais inconsistências no processo administrativo referente à Análise de Impacto Regulatório. Trata-se de providência fundamental para, ao mesmo tempo, não postergar ainda mais a solução do tema, possibilitando a prevalência da decisão regulatória da agência (que, muito provavelmente, ainda será objeto de impugnações), e conferir maior segurança e previsibilidade aos agentes regulados.

*Heloísa Armelin é advogada no escritório Tojal Renault Advogados, especialista em Direito Constitucional pela PUC-SP e pós-graduanda em Direito Administrativo pela FGV.
1 O controle judicial das decisões administrativas, discussão travada especialmente sob a ótica da separação de poderes e que ganha enorme relevo no âmbito regulatório, pode ser dividido em duas grandes tendências: o ativismo e a deferência judicial. A primeira delas se fundamenta na inafastabilidade do Poder Judiciário prevista no artigo 5, XXXV, da Constituição Federal, segundo a qual, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Seus adeptos entendem que ao Poder Judiciário é garantida uma ampla margem para a revisão das decisões técnicas, em razão de falhas formais ou até mesmo materiais. Já a deferência judicial, cuja origem remonta ao precedente da Suprema Corte norte-americana Chevron U.S.A., Inc. vs. Natural Resources Defense Council, Inc., 467 US 837 (1984), reconhece que o controle judicial deve primeiro avaliar se a matéria foi disciplinada pelo Poder Legislativo de forma clara e inequívoca, o que esvaziaria a atuação do Judiciário e da própria agência e, em havendo omissão legislativa ou margem de dúvida, deve-se verificar se a interpretação da agência foi razoável, dentro dos limites legais, o que igualmente afastaria o controle judicial.
2 Na justificação do PLS 52/2013, lê-se: “As agências reguladoras constituem um novo tipo de ente estatal criado no Brasil em meados da década de 1990. A presença das agências tornou-se indispensável para a concessão, a agentes privados, do direito de atuar na prestação de serviços públicos, tais como energia elétrica, telefonia, transportes em suas diversas modalidades etc. Passados cerca de quinze anos, as regras de funcionamento das agências reguladoras, entidades típicas de Estado, precisam ser aperfeiçoadas, tanto para preservar sua autonomia e independência, imprescindíveis ao seu bom funcionamento, quanto para suprir lacunas e corrigir problemas evidenciados ao longo dessa primeira década de experiência”.
3 Também inibidoras dessas ingerências indevidas são as novas disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (incluídas pela Lei nº 13.655/2018), que positivaram, nos artigos 21 e 22, o princípio da deferência. Sobre o tema, ver: JORDÃO, Eduardo. Art. 22 da LINDB – Acabou o romance: reforço do pragmatismo no direito público brasileiro. In Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 63-92, nov. 2018. (Disponível em <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77650/74313>. Acesso em 25 nov. 2020.)
4 Art. 2º Para os efeitos desta norma, considera-se: […] IX – Serviço de Segregação e Entrega de contêineres – SSE: preço cobrado, na importação, pelo serviço de movimentação das cargas entre a pilha no pátio e o portão do terminal portuário, pelo gerenciamento de riscos de cargas perigosas, pelo cadastramento de empresas ou pessoas, pela permanência de veículos para retirada, pela liberação de documentos ou circulação de prepostos, pela remoção da carga da pilha na ordem ou na disposição em que se encontra e pelo posicionamento da carga no veículo do importador ou do seu representante.
5 Mencione-se que o tema também foi objeto de análise pelo Tribunal de Contas da União e de debates na Comissão de Viação e Transporte, na Câmara dos Deputados, em 2017.
6 Como ensina Alexandre Santos de Aragão: “A análise de impactos regulatórios e todas as fases e procedimentos nela incluídos são inclusive formas por excelência de motivação da medida regulatória, bem como de concretização do princípio da eficiência, já que permitem que se demonstrem as razões para a sua edição, a sua comparação com outras possíveis medidas, as consequências esperadas da sua aplicação e os ônus sociais e econômicos que dela são derivados”. (Análise de impacto regulatório na lei de liberdade econômica in SALOMÃO, Luis Felipe CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana. Lei de Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro. São Paulo, RT, 2020, pág. 373)
7 Embora ainda não obrigatória, haja vista a produção de efeitos do Decreto nº 10.411/2020 somente a partir de 15 de abril de 2021 para as agências reguladoras, a ANTAQ optou por realizar a AIR no caso concreto.
8 Conforme voto do diretor Francisval Mendes. Disponível em: <https://sei.antaq.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?9LibXMqGnN7gSpLFOOgUQFziRouBJ5VnVL5b7-UrE5SSpXK8Ff-byEQTDJS1UnQ378GaCrHMlnM94CiOzPsiengafytCeoRQLNymD2scIhgNwjBt7LRm66a1rnDoV1-k>. Acesso em 25 nov. 2020.
9 Voto da diretora relatora, Gabriela Costa, disponível em: <https://sei.antaq.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?9LibXMqGnN7gSpLFOOgUQFziRouBJ5VnVL5b7-UrE5QTjDj1cLFV5qfV9B4R2_9A5ZTFEdCV54N85QFlA7Ty703J8eCvnsHEeQ0mNImSBQpDLOOSyi_bbYqIZmf6ZT4Y> Acesso em 25 nov. 2020.
10 Voto já mencionado acima, proferido pelo diretor Francisval Mendes.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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