iNFRADebate: O acórdão 10/2023 do TCU – alteração unilateral de concessões de transmissão e premissas gerais para a mutabilidade contratual

Guilherme F. Dias Reisdorfer*

1. O acórdão 10/2023 do TCU

Na sessão de 18 de janeiro de 2023, o Plenário do TCU (Tribunal de Contas da União) examinou os pressupostos e limites a serem observados pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) a propósito de exclusão de investimentos relativos a reforço de subestação em concessão de serviços de transmissão de energia elétrica. O tribunal decidiu pela ausência de fundamento para fracionar o contrato a fim de submeter essa parcela de investimentos a nova licitação.

A decisão é relevante não apenas às concessões de transmissão. Dela se extraem critérios e balizas que, em maior ou menor medida, já constavam de pronunciamentos anteriores e devem orientar futuras deliberações do TCU a respeito de modificações dos contratos de concessão em geral.

Destacam-se abaixo pontos da decisão que se estendem à generalidade das concessões (definição de hipóteses de alteração e observância dos direitos do concessionário), além de elemento específico relacionado à disciplina regulatória dos reforços nas concessões de transmissão.

2. As hipóteses de redução do escopo contratual

O acórdão delimitou o exercício da competência de redução unilateral dos contratos de concessão considerando as hipóteses (i) de perda de utilidade de parcela de seu objeto; (ii) de maior adequação de solução alternativa à prevista em contrato; e (iii) de eventual prestação inadequada dos serviços.

As duas primeiras hipóteses são clássicas e estão relacionadas com a gênese da noção de contrato administrativo. Já a terceira suscita controvérsias, porque equivaleria a uma espécie de caducidade parcial, não prevista no ordenamento (arts. 35, inc. III, e 38 da Lei 8.987/1995). Cabe ainda observar a existência de outros instrumentos menos onerosos e mais ágeis, regulamentares e contratuais (sanções, p. ex.), concebidos para orientar a boa execução das obrigações contratuais.

No caso examinado, o TCU entendeu que o fracionamento dos investimentos, justificado pela ANEEL para servir à modicidade tarifária, não se enquadraria nas hipóteses acima referidas. Primeiro, por não se tratar de parcela cindível (v. item 4, a seguir). Segundo, porque não teriam sido demonstrados critérios claros e objetivos aptos a evidenciar a vantajosidade da decisão de remeter os investimentos a nova licitação.

3. A vedação à “encampação parcial”: as premissas econômicas da outorga, os direitos da concessionária e a segurança jurídica

O acórdão aponta que a modificação dos contratos de concessão pressupõe a consideração de fatores complementares, que não teriam sido cobertos pela decisão da agência.

Do ponto de vista da situação da concessionária e da relação contratual, a corte de contas indicou que a supressão dos investimentos fora das hipóteses cabíveis teria “características semelhantes à irregular encampação parcial da concessão”. Concluiu que dessa alteração adviria o dever do poder concedente de arcar com a indenização pelas perdas havidas pela concessionária, em regime equivalente ao da encampação.

E a apuração das perdas e danos não seria trivial: há de se considerar não apenas os prejuízos diretamente relacionados à perda de determinado escopo (como relativos a planejamento de fornecimentos e compromissos com terceiros, p. ex.), mas também o impacto produzido no plano de negócios da concessionária, tendo em vista que a programação dos investimentos pode seguir lógicas específicas, não reconduzíveis a uma fórmula padronizada.

Esse ponto foi abordado no voto do revisor, ministro Walton Alencar Rodrigues. Nele se observou que mesmo a exclusão de parcelas menores do escopo da outorga pode “representa[r], para a concessionária, verdadeiro confisco, pois desfigura seu plano de negócio, podendo até torná-lo insustentável”. O voto prossegue com o apontamento de que “indenizar investimentos não amortizados” pode ser “insuficiente para assentar a viabilidade da concessão na nova configuração”.

Do ponto de vista setorial, a corte assinalou que a decisão da ANEEL ampliaria a percepção de risco regulatório, com “o condão de produzir perda de confiança no regulador” e anular “os benefícios que poderiam, em tese, ser obtidos com licitação isolada do serviço encampado”.

4.         O posicionamento específico sobre a lógica das concessões de transmissão: reforços como atividades não fracionáveis

O TCU avançou ainda sobre aspecto peculiar às concessões de transmissão. Entendeu que a parcela de investimentos que a ANEEL pretendia licitar de forma autônoma não poderia ser dissociada das obrigações contratadas com a concessionária.

Como referido acima, o elemento retirado da concessão consistia em reforço de subestação integrante da outorga. De acordo com a Resolução Normativa 905/2020 da ANEEL, reforço “é a instalação, substituição ou reforma de equipamentos em instalações de transmissão existentes, ou a adequação destas instalações, para aumento de capacidade de transmissão, de confiabilidade do SIN, de vida útil ou para conexão de acessante” [grifos do autor].

Ou seja: o reforço constitui obrigação de autonomia meramente relativa. Embora possa ser avaliado de forma isolada e específica, inclusive para fins remuneratórios, o reforço corresponde à realização de investimentos de melhoramento de “instalações de transmissão existentes” e integrantes da outorga. Trata-se do tipo de providência destinada a assegurar a contínua adequação do serviço público ao longo da vigência do contrato de concessão.

Nessa condição, o reforço encontra-se sujeito às regras gerais dos arts. 18, inc. VII, e 23, inc. V, da Lei 8.987/1995, que disciplinam as obrigações relacionadas à manutenção da atualidade e da adequação do serviço concedido. Tais obrigações não são destacáveis, pois integram a regulação do serviço público que é objeto da concessão e da sua adaptabilidade ao longo do tempo.  Em vista dessas características, o TCU concluiu pela inviabilidade da licitação do reforço de forma autônoma.

A decisão é consentânea com a disciplina setorial, que remete a realização de reforços à concessionária responsável pela respectiva instalação. O Decreto 2.655/1998 estabeleceu que “os reforços das instalações existentes serão de responsabilidade da concessionária”, mediante autorização a ser outorgada pela ANEEL (art. 6º, § 1º). A Resolução Normativa 905/2020 da ANEEL dispõe que os reforços devem, como regra, ser implementados com base em outorga de autorização pela ANEEL à concessionária (item 4.1.2 do Módulo 3).

É também nesse sentido a qualificação conferida pelo recente Decreto 11.314/2022, com previsão de que “melhorias, reforços e novas instalações previstas pelo planejamento setorial” são instrumentos “para garantir a atualidade do serviço” (art. 5º, § 2º).

Anote-se que a observância dessas regras é usualmente reiterada nos contratos de concessão de transmissão, o que confirma a incorporação dessa lógica à equação econômico-financeira desses ajustes.

5. Síntese: o processo decisório sobre a mutabilidade das concessões

O pronunciamento do TCU confirma, entre outros pontos, que a invocação linear de determinada razão apresentada como favorável à coletividade não é em si suficiente para justificar a mutabilidade das concessões. A modificação contratual pressupõe a demonstração de análise sistêmica das variáveis envolvidas e dos efeitos a serem produzidos, para o fim de evidenciar que, sopesados os prós e os contras, prevalece a vantagem da alteração, sob o pressuposto de compatibilidade com os direitos da concessionária.

*Guilherme F. Dias Reisdorfer é doutorando e mestre em Direito Administrativo pela USP (Universidade de São Paulo).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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