iNFRADebate: Novo Marco Legal do Saneamento – o decreto federal que regulamentará a comprovação pelos prestadores de condições econômico-financeiras para universalizar os serviços

Mauricio Portugal Ribeiro* e Marcelo Rangel Lennertz**1

Entrou em vigor em 16 de julho de 2020 o novo Marco Legal do Saneamento (Lei Federal 14.026/2020). Apesar de a nova lei ser um avanço extremamente importante, a sua capacidade de produzir os efeitos desejados, particularmente a universalização dos serviços de água e esgoto, depende da sua adequada regulamentação.

O novo Marco Legal do Saneamento exige a comprovação pelos atuais prestadores dos serviços de saneamento de condições econômico-financeiras para realizar os investimentos para universalizar os serviços até o ano de 2033, ou, quando inviável mesmo mediante a prestação regionalizada, até o ano de 2040.

Além disso, estabeleceu no Parágrafo Único do artigo 10-B da Lei 11.445/2007 (modificada pela Lei 14.026/2020) que a regulamentação da metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores para viabilizar a universalização dos serviços seria feita por meio de decreto do Poder Executivo federal, no prazo de 90 dias da publicação da Lei 14.026/2020 (prazo esse que venceu no último dia 15 de outubro). Chamaremos esse decreto de “Decreto Regulamentador”.

Até o presente, o Decreto Regulamentador não foi editado. Foi realizada apenas uma consulta pública que solicitou dos participantes ideias sobre como deveria ser essa regulamentação. Não foi disponibilizada ao público uma minuta desse decreto e, aparentemente, o Governo Federal não pretende submeter o texto do Decreto Regulamentador a prévia consulta pública. 

Nesse contexto, a seguir, elencamos as nossas principais preocupações em relação ao Decreto Regulamentador:

1. Prazo para assinatura dos aditivos que inclui a nova meta de universalização dos serviços nos contratos em curso. O prazo para assinatura dos aditivos para adequação dos contratos em vigor às novas metas de universalização é 31 de março de 2022. Até lá, tem que ser feito todo o procedimento para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviço de saneamento para fazer os investimentos necessários à universalização dos serviços – sejam eles empresas estatais ou concessionárias privadas que concordem em adequar seus contratos às novas metas legais (ver item 4 a seguir).

2. Interdependência entre a regulamentação da regionalização e o Decreto Regulamentador. Há interdependência entre as regras a serem estabelecidas, em princípio, pelos estados2 e, subsidiariamente, pela União3 para a regionalização dos serviços de saneamento e as regras para comprovação pelos prestadores de serviço de saneamento de capacidade econômico-financeira para universalização. Observe-se que os estados têm até julho de 2021 para estabelecer as unidades regionais de saneamento básico para a prestação de serviços de saneamento, e, só após isso, a União pode exercer sua competência subsidiária para estabelecer blocos de referência para a prestação regionalizada desses serviços.

2.1. É importante assinalar que cumprir esse prazo de julho de 2021 é um enorme desafio para os estados, pois, provavelmente, (a) as companhias estaduais de saneamento terão que contratar consultoria para propor o agrupamento de municípios do estado em unidades regionais de saneamento básico para efeito da prestação do serviço de saneamento4; (b) a consultoria terá que elaborar o seu produto; (c) o produto terá que ser aprovado na companhia estadual e no Poder Executivo do estado; (d) será necessária a tramitação, debate e aprovação legislativa da proposta de agrupamento dos municípios do estado em unidades regionais; (e) é possível que, mesmo após ser aprovada e publicada, a lei de criação dessas unidades regionais seja questionada judicialmente por municípios que sejam por ela afetados.

2.2. Se, ainda assim, os estados conseguirem cumprir esse prazo de julho de 2021 para aprovar a legislação necessária para a criação de unidades regionais para prestação dos serviços de saneamento, restarão apenas oito meses até março de 2022 para assinatura dos aditivos que incluirão nos contratos em curso (de programa e de concessão comum ou PPP) as metas de universalização em 2033.

3. Comprovação de condições econômico-financeiras para realizar qual investimento? Para a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores para viabilizar a universalização, é preciso fazer estudos de viabilidade (ou, pelo menos, “planos de negócio”) para cada área integrante de estrutura de prestação regionalizada (i.e., unidades regionais criadas pelos estados ou blocos de referência criados subsidiariamente pela União), com um fluxo de caixa descontado representativo de todos os custos do prestador (considerando investimentos e custos operacionais), receitas, forma e custo de obtenção dos recursos a serem usados para os investimentos etc. Somente com a elaboração desses fluxos de caixa descontados será possível saber qual a capacidade de investimento que deve ser comprovada pelos prestadores dos serviços de água e esgoto para viabilização da universalização dos serviços.

3.1. É necessário, portanto, que o Decreto Regulamentador defina pelo menos (a) as premissas para elaboração desses planos de negócio, (b) o procedimento para sua elaboração (envolvendo consulta pública etc.) e (c) quem vai avaliar se esses planos de negócio são realistas e coerentes (o titular dos serviços? As agências reguladoras?).

4. Comprovação de condições econômico-financeiras para realizar investimentos pelas companhias estaduais de saneamento. Em relação à comprovação da capacidade das companhias estaduais de saneamento para cumprir a meta de universalização de 2033, essa avaliação terá que ser feita na grande maioria dos casos por região. Para isso, é preciso ter a definição das unidades regionais que está prevista para julho de 2021. Nesse caso, ter-se-á apenas oito meses para realizar todo o processo de avaliação da capacidade econômico-financeira dessas companhias para viabilização da universalização, pois a assinatura dos aditivos aos contratos de programa que incluirão as novas metas de universalização terá que ser feita até março de 2022.

4.1. Não ignoramos que, em alguma medida, o processo de definição das unidades regionais pelos estados ou dos blocos de referência pela União já levantará e considerará informações relevantes para os estudos de viabilidade que deverão ser realizados na etapa subsequente para a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de viabilizar a universalização dos serviços até 2033. Mas o aprofundamento desses estudos e, em especial, a elaboração dos fluxos de caixa descontados que servirão de base para a avaliação da viabilidade desses “projetos de universalização” somente poderão se realizar uma vez que se tenha clareza da composição da respectiva estrutura de prestação regionalizada.

5. Comprovação de condições econômico-financeiras para realizar investimentos pelas concessionárias privadas de serviços de saneamento. Não nos parece fazer sentido exigir-se, dos prestadores cujos contratos foram submetidos a prévia licitação, nova comprovação de condições econômico-financeiras para realização da universalização dos serviços. É que esses prestadores comprovaram nas licitações as condições econômico-financeiras para o cumprimento das metas e demais obrigações previstas em seu contrato. Caso esses contratos de concessão prevejam metas de universalização posteriores a 2033 ou níveis de atendimento inferiores a 99% para abastecimento de água ou 90% para coleta e tratamento de esgoto, eles poderão ser alterados de comum acordo com as concessionárias para contemplar a meta legal5. Se e quando isso for feito, esses contratos serão concomitantemente reequilibrados, o que restituirá ao prestador as condições para o seu cumprimento. Portanto, não nos parece fazer sentido exigir comprovação de capacidade econômico-financeira para realização da universalização dos entes que operam contratos que foram submetidos à prévia licitação.

6. Como deve ser feita a comprovação? A regulamentação da exigência de comprovação de condições econômico-financeiras pelos prestadores para viabilizar a universalização dos serviços até 2033 enfrentará o desafio de definir como deve ser feita essa comprovação. A lei diz que a comprovação deve ser feita “…por recursos próprios ou por contratação de dívida…” (art. 10-B da Lei 11.445/2007, modificada pela 14.026/2020). A interpretação literal dessa exigência legal seria extremamente ineficiente, pois induziria os prestadores ou seus acionistas a comprovarem que têm ou dinheiro em caixa (“recursos próprios”) ou contratos de mútuo para realização do investimento (“contratação de dívida”), o que não é razoável pelo custo de se manter dinheiro em caixa e de se fechar dívida apenas para se comprovar condição econômico-financeira para realização dos investimentos para a universalização. Evidentemente, o Decreto Regulamentador deve especificar formas mais eficientes de se realizar essa comprovação, interpretando e aplicando adequadamente o texto legal.

7. Necessidade de consulta pública do Decreto Regulamentador. Em vista de todos esses desafios e apesar de o Governo Federal já ter perdido o prazo de 90 dias para a aprovação do Decreto Regulamentador e de ter havido uma consulta pública solicitando ideias para a elaboração do Decreto Regulamentador, parece-nos indispensável que a Presidência da República coloque o texto do Decreto Regulamentador em consulta pública antes da sua aprovação. As metodologias de avaliação da capacidade econômico-financeira são usualmente muito sensíveis e, por isso, o critério que venha a ser adotado pelo Governo Federal pode viabilizar ou inviabilizar a atividade de diversos prestadores de serviço. A situação é extremamente complexa e não podemos errar na regulamentação desse tema, sob pena de se decretar o fracasso da lei que determinou a universalização dos serviços em 2033.

*Mauricio Portugal Ribeiro é especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura, autor de vários livros e artigos sobre esse tema, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, mestre em Direito pela Harvard Law School e ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ.
**Marcelo Rangel Lennertz é especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, sócio do Portugal Ribeiro Advogados e mestre em Direito pela Yale Law School.
1 Os autores agradecem a Lucilaine Medeiros e Marcela Altale pelo debate do tema, que contribuiu para o aperfeiçoamento das ideias manifestadas neste artigo. E Mauricio Portugal Ribeiro agradece a Edisiene Correia, diretora de Gestão de Qualidade do Ar e das Águas, do Ministério do Meio Ambiente, pelo convite para expor sobre esse tema em reunião realizada em Brasília no dia 21 de outubro passado. Foi nessa reunião e com base na apresentação nela realizada que surgiu a ideia de escrevermos o artigo.
2 Cf. art. 15 da Lei 14.026/20.
3 Cf. § 3º do art. 52 da Lei 11.445/07, incluído pela Lei 14.026/07.
4 De maneira a “atender adequadamente às exigências de higiene e saúde pública, ou para dar viabilidade econômica e técnica aos municípios menos favorecidos”, ainda que não se trate de municípios limítrofes (art. 3º, VI, b, da Lei 11.445/07, incluído pela Lei 14.026/20).
5 Cf. art. 11-B, § 2º, da Lei 11.445/07, incluído pela Lei 14.026/20.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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