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iNFRADebate: Novo Marco Legal do Saneamento – efeitos da manutenção pelo Congresso Nacional do veto ao artigo 16, particularmente sobre os limites para assinar novos contratos de programa

Mauricio Portugal Ribeiro*

  1. O que dizia o artigo 16 da Lei nº 14.026/2020 e qual foi a justificativa para o seu veto?

O artigo 16 dizia o seguinte:

Art. 16. Os contratos de programa vigentes e as situações de fato de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, assim consideradas aquelas em que tal prestação ocorra sem a assinatura, a qualquer tempo, de contrato de programa, ou cuja vigência esteja expirada, poderão ser reconhecidas como contratos de programa e formalizadas ou renovados mediante acordo entre as partes, até 31 de março de 2022.

Parágrafo único. Os contratos reconhecidos e os renovados terão prazo máximo de vigência de 30 (trinta) anos e deverão conter, expressamente, sob pena de nulidade, as cláusulas essenciais previstas no art. 10-A e a comprovação prevista no art.10-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, sendo absolutamente vedada nova prorrogação ou adição de vigência contratual.

A mensagem da Presidência da República assim justificou o veto:

A propositura legislativa, ao regularizar e reconhecer os contratos de programa, situações não formalizadas de prestação de serviços públicos de saneamento básico por empresa pública ou sociedade de economia mista, bem como possibilitar a prorrogação por 30 anos das atuais avenças, prolonga de forma demasiada a situação atual, de forma a postergar soluções para os impactos ambientais e de saúde pública decorrentes da falta de saneamento básico e da gestão inadequada da limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. Ademais, a proposta, além de limitar a livre iniciativa e a livre concorrência, está em descompasso com os objetivos do novo marco legal do saneamento básico que orienta a celebração de contratos de concessão, mediante prévia licitação, estimulando a competitividade da prestação desses serviços com eficiência e eficácia, o que por sua vez contribui para melhores resultados.” (grifei)

No dia 17 de março, o Congresso Nacional manteve esse veto. Apesar dos seus efeitos parecerem óbvios em uma primeira leitura, creio que há alguns pontos que precisam ser esclarecidos.

A seguir, no item 2, vou falar dos efeitos diretos da manutenção do veto. E, no item 3, vou analisar como ficou a possibilidade de assinatura de contratos de programa por empresas estaduais de saneamento após o veto ao artigo 16. 

  1. Mapeamento dos efeitos do veto

O veto e sua confirmação têm efeitos diretos sobre:

a) Situações precárias entre municípios e empresas estaduais de saneamento, que são definidas pela prestação dos serviços de saneamento sem contrato, ou com contato vencido;

b) Possibilidade de prorrogação de contratos de programa em curso com municípios.

Abaixo, vou tratar em mais detalhes dessas duas hipóteses.

2.1. Efeito do veto sobre as situações precárias

O veto impossibilita a empresa estadual de saneamento de regularizar situações precárias com municípios. Inviabilizou-se a revalidação de contratos que perderam validade. E novos contratos só mediante licitação.

É importante notar que, em várias empresas estaduais de saneamento, isso deve ter impacto bastante relevante da perspectiva econômico-financeira. O número de situações precárias varia a depender de cada empresa. Mas há empresas em que um terço ou mais dos municípios nos quais presta seus serviços está em situação precária. Em alguns casos, até mesmo a capital do estado – que é a operação que em regra gera mais receitas para a estatal – está em situação precária. 

O veto ao artigo 16 e a sua confirmação significa, basicamente, que as empresas estatais perderam o direito de prestar serviços nesses municípios em que não há contrato ou que o contrato está vencido. 

Na prática, contudo, a prestação terá continuidade até que o município ou entidade regional seja capaz de realizar uma nova contratação. 

De qualquer modo, qualquer processo de privatização dessas empresas estatais ou de venda de parcela do seu capital já deverá considerar que elas não têm mais o direito de prestar os serviços a esses municípios.

2.2. Efeito do veto sobre a possibilidade de renovação ou prorrogação dos contratos 

O veto ao artigo 16 tem por objetivo evitar a prorrogação dos contratos de programa em curso. Note-se que usaremos a palavra “renovação” como sinônimo de “prorrogação”.

Para entender essa pretensão, é preciso, em primeiro lugar, distinguir, de um lado, entre prorrogação e, de outro lado, extensão de prazo para efeito de reequilíbrio do contrato.

O exercício da prerrogativa de prorrogação do contrato, quando prevista no contrato, é, por um lado, decisão discricionária do poder concedente e, por outro lado, se corporifica em aditivo ao contrato, que é o ato bilateral que estende o seu prazo. 

A prorrogação geralmente gera direito de reequilíbrio a favor do poder concedente. É que o ato de prorrogar o contrato em si gera vantagens econômico-financeiras para o contratado, que devem ser compensadas por meio de reequilíbrio a favor do poder concedente. A forma ordinária entre nós de reequilíbrio nesses casos é a inclusão de novos investimentos no contrato, ou o pagamento de outorga pelo concessionário ao poder concedente, como, ocorreu, por exemplo, nas recentes renovações de arrendamentos portuários e de ferrovias de carga, no âmbito da União.

Já a extensão de prazo para reequilíbrio é um meio de pagamento de dívida contratual. A extensão de prazo ocorre geralmente como resultado de um processo que reconhece o desequilíbrio do contrato em desfavor do concessionário e define como forma de compensação ao concessionário – ou seja meio para pagamento da dívida contratual decorrente do desequilíbrio – o aumento do prazo.

O veto ao artigo 16 atingiu apenas a possibilidade de prorrogação do contrato. O veto não impediu a extensão de prazo dos contratos de programa em curso para reequilibrá-los.

2.2.1. E se os contratos de programa em curso já tiverem cláusulas que permitam a sua renovação ou prorrogação?

Nesse caso, há dois entendimentos possíveis:

a) O contrato poderia ser prorrogado porque o novo marco legal do saneamento não poderia atingir atos jurídicos perfeitos. Isso porque o artigo 5°, inc. XXXVI, da Constituição Federal proíbe leis de modificarem atos jurídicos perfeitos e contratos de programa regularmente assinados são atos jurídicos perfeitos;

b) Apesar de os contratos de programa que prevêem prorrogação estarem protegidos por ato jurídico perfeito, poder-se-ia entender que o novo marco legal tirou a base normativa que permitia ao agente público responsável pelo contrato adotar a decisão discricionária de renová-lo.

2.2.2. Seria possível estender os contratos de programa para reequilíbrio?

Sim, não há dúvida sobre isso. A extensão ou redução do prazo dos contratos de programa para reequilíbrio continua permitida, assim como a modificação dos prazos do contrato para facilitar a modalidade de desestatização dos serviços escolhida pelos entes envolvidos (vide artigo 13, da Lei n°14.026/2020).

  1. O veto ao artigo 16 tem como efeito necessariamente eliminar a possibilidade de celebração de novos contratos de programa pelas empresas estatais com entidades regionais?

Essa é a pergunta mais controversa do momento. Enquanto o discurso oficial do Governo Federal parece supor que não há a possibilidade de assinatura desses contratos de programa entre empresas estaduais e entidades regionais, há uma controvérsia jurídica sobre o tema em processo de configuração que pode ir parar nos tribunais.

Vamos seguir tratando do tema sob a forma de perguntas e respostas.

3.1. Considerando o novo marco legal, em que situações é viável companhias estatais assinarem contratos de programa?

Nos casos em que o titular do serviço de saneamento seja controlador da empresa estatal.

3.2. Podem as companhias estaduais de saneamento assinar novos contratos com municípios que exerçam a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico de interesse local?

Não. Como se entende que, em relação aos serviços públicos de saneamento básico de interesse local, os municípios são titulares do serviço, não é viável que os municípios assinem contratos com empresas de saneamento controladas pelo Estado.

3.3. Podem as companhias estaduais de saneamento assinar novos contratos de programa com entidades regionalizadas?

Claramente, o objetivo do novo marco legal e, particularmente, o objetivo declarado do veto ao artigo 16, da Lei n° 14.026/2020, foi impedir a assinatura sem licitação de novos contratos de programa, inclusive com entidades regionais.

Alguns, contudo, tem sustentado que o artigo 8º da própria Lei n° 11.445/2007, com redação dada pelo novo marco legal de saneamento, abriria a possibilidade de assinatura de novos contratos de programa entre empresas estaduais de saneamento e entidades regionais:

Art. 8º Exercem a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico: (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020)

I – os Municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local; (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

II – o Estado, em conjunto com os Municípios que compartilham efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum. (Incluído pela Lei nº 14.026, de 2020)

O inciso II diz que o Estado, em conjunto com os Municípios, exerce a titularidade nos casos em que há “interesse comum”, ou seja, o compartilhamento de infraestruturas integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual.

Argumenta-se que, nesse caso, a lei diz que o Estado exerce a titularidade dos serviços. Não a exerce sozinho. Mas o fato de se dizer que o Estado exerce a titularidade seria um gancho para permitir a celebração de contratos de programa entre as entidades regionais que o inciso II menciona e empresa estadual de saneamento controlada pelo Estado.

Tecnicamente, a Lei n° 11.445/2007 deveria ter dito que a titularidade dos serviços é da entidade regional, sendo os estados e municípios meros representantes (e não titulares) dos serviços, nos termos da governança estabelecida para a entidade regional. E é possível argumentar no sentido de que essa é a interpretação correta da lei.

Na outra ponta, está os que entendem que, como a lei falou que o Estado é titular do serviço nas entidades regionalizadas que o inciso II menciona – mesmo que não seja titular sozinho – ele poderia assinar novos contratos de programa com a empresa que controla para prestar serviços de saneamento àquelas entidades regionais.

Trata-se, portanto, de uma controvérsia jurídica relevante. Como o tema tem impactos econômico-financeiros extremamente relevantes para as companhias estaduais de saneamento – a adoção de uma ou outra interpretação pode significar a sobrevivência ou extinção de algumas companhias estatais – é possível que mais cedo ou mais tarde o tema chegue ao Poder Judiciário.

3.4. Mas, admitindo para efeitos argumentativos, a tese de que as empresas estaduais de saneamento possam celebrar novos contratos de programa com as entidades mencionadas no artigo 8º, II, da Lei n° 11.445/07, há limites que impeçam as empresas estaduais de saneamento de assinar contratos de programa com essas entidades?

Ainda que se acolha a tese mencionada, haveria limites para a celebração de contratos de programa entre as empresas estaduais de saneamento e entidades regionais. 

Esses limites serão estabelecidos pelo decreto que disciplinará a comprovação das condições econômico-financeiras para universalizar os serviços de saneamento. 

Portanto, no contexto atual, ficou ainda mais importante as regras que serão estabelecidas pelo decreto que deveria ter sido emitido pela União desde outubro de 2020. Supostamente, o decreto não foi ainda emitido na expectativa da estabilização do cenário legislativo que veio com a confirmação pelo Congresso Nacional no dia 17 de março dos vetos realizados pela Presidência da República no novo marco legal de saneamento.

Portanto, ainda que se acolha a tese de que o novo marco legal de saneamento não tenha impedido a celebração de novos contratos de programa entre as empresas estaduais de saneamento e as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, nas quais se verifica a prestação de serviços públicos de saneamento básico de interesse comum, a celebração desses contratos depende da comprovação pela empresa estatal da sua capacidade econômico-financeira para universalizar os serviços, nos termos a serem definidos pelo decreto a ser emitido pela União sobre esse tema.

*Mauricio Portugal Ribeiro é especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura, autor de vários livros e artigos sobre esse tema, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, mestre em Direito pela Harvard Law School, ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ. Mauricio foi e é advogado de diversos grupos econômicos nos setores de infraestrutura.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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