iNFRADebate: Minirreforma do marco legal do setor portuário – Seis destaques da Lei 14.047

Rafael Wallbach Schwind*

Foi publicada no dia 25 de agosto a Lei Federal 14.047, resultado da conversão da Medida Provisória 945, de 4 de abril.

A MP 945 tinha por objetivo estabelecer medidas temporárias em resposta à pandemia decorrente da Covid-19 no âmbito do setor portuário. Entretanto, no processo de conversão em lei, foram estabelecidas diversas outras regras que acabaram resultando numa verdadeira minirreforma do marco legal do setor portuário.

Trata-se de aprimoramentos introduzidos na legislação, com o claro objetivo de facilitar a realização de investimentos privados nessas estruturas tão importantes ao desenvolvimento da economia brasileira.

Seis pontos dessa minirreforma merecem ser destacados.

O primeiro ponto de aprimoramento pela minirreforma destina-se a estabelecer uma maior clareza conceitual a propósito das figuras da concessão e do arrendamento portuário.

Até agora, a Lei 12.815 tratava da concessão e do arrendamento como figuras similares, sem diferenciá-las com muita clareza. Considerando que os contratos de arrendamento portuário realmente guardam similaridade com os contratos de concessão em geral, essa forma de tratamento da matéria causava algumas imprecisões conceituais que se refletiam numa certa dificuldade de compreensão.

Embora essa dificuldade fosse superável mesmo sob a redação original da Lei 12.815, ela acabou sendo solucionada em definitivo com a minirreforma instituída pela Lei 14.047. Foram estabelecidos com mais precisão os contornos de cada uma dessas figuras.

A concessão diz respeito aos portos organizados como um todo, enquanto que os arrendamentos referem-se às instalações portuárias localizadas dentro de um porto organizado.

Os contratos de concessão de portos organizados são definidos na nova redação do art. 4º da Lei 12.815 e devem contemplar as cláusulas relacionadas nos incisos I a XVIII do art. 5º.

Já os contratos de arrendamento portuário envolvem a transferência à iniciativa privada de um espaço no porto organizado para exploração por meio do desempenho de atividades portuárias. Tais contratos deverão contemplar cláusulas que abranjam as matérias relacionadas nos incisos I a XII do art. 5º-C da Lei 12.815.

Portanto, agora ficou (ainda mais) claro que a concessão é reservada aos portos organizados como um todo, e os arrendamentos dizem respeito a instalações portuárias específicas.

O segundo ponto de destaque da minirreforma diz respeito a uma peculiaridade das concessões de portos organizados.

O novo art. 5º-A da Lei 12.815 passou a estabelecer que os contratos celebrados entre a concessionária de um porto organizado e terceiros, inclusive os que tenham por objeto a exploração de instalações portuárias, serão regidos pelas normas de direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre os terceiros e o poder concedente, sem prejuízo das atividades regulatória e fiscalizatória da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).

A novidade não diz respeito à natureza privada dos contratos da concessionária com terceiros. Esta é a regra em qualquer concessão. O ponto de destaque aqui é o de que a concessionária de um porto poderá estabelecer contratos com terceiros que tenham por objeto a exploração de instalações portuárias – numa posição similar à que o poder concedente tem num contrato tradicional de arrendamento portuário. Assim, a depender da abrangência das contratações privadas será possível que, em lugar de um grande número de contratos públicos, haja um único contrato de concessão e vários contratos privados firmados pela concessionária.

A previsão em questão tende a ganhar uma importância maior quando for realmente instituído e intensificado o movimento de privatização das autoridades portuárias. Como se sabe, há estudos avançados em andamento e tudo indica que a primeira estatal a ser privatizada será a Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo). Nesse contexto, uma importante fonte de receita das concessionárias de portos organizados será justamente a exploração de instalações portuárias por terceiros.

Isso não significa que o modelo de contratos administrativos de arrendamento se tornará ultrapassado, mesmo porque nem todas as autoridades portuárias serão necessariamente privatizadas. De todo modo, a sistemática de exploração por meio de contratos privados com a concessionária do porto pode ser bastante inovadora, seja em termos de modelagem, seja no tocante à distribuição de riscos e incentivos. Resta saber até que ponto a concessionária terá liberdade para estabelecer regras contratuais nesse tipo de arranjo que eventualmente sejam bastante diversas das regras gerais que são verificadas nos contratos de arrendamento.

Outra questão que se põe diz respeito a uma possível assimetria regulatória entre os contratos de arrendamento tradicionais e os contratos privados celebrados entre concessionárias e empresas que explorem instalações portuárias. É plenamente factível que haja uma concorrência entre essas estruturas. Ainda que o art. 5º-A estabeleça claramente que mesmo os contratos privados serão submetidos a regulação e fiscalização da ANTAQ, os regimes em tese podem ser diversos. Suponha-se, por exemplo, que os contratos privados tenham maior maleabilidade e permitam o desenvolvimento de mais serviços e a execução de investimentos sem a necessidade de prévia autorização pelo poder público. Essa assimetria pode conduzir a certas questões práticas que precisarão ser enfrentadas.

O terceiro ponto que chama a atenção na minirreforma está previsto no parágrafo único do novo art. 5º-B da Lei 12.815, introduzido pela Lei 14.047.

O dispositivo estabelece a possibilidade de celebração de contratos de arrendamento portuário sem a necessidade de licitação. Essa dispensa de licitação será possível apenas se houver um único interessado na exploração do bem e se estiverem presentes os seguintes pressupostos, de forma concomitante: (1) realização de chamamento público pela autoridade portuária com vistas à identificação de interessados na exploração econômica da área e (2) conformidade com o plano de desenvolvimento e zoneamento do porto.

A regra tem o claro propósito de facilitar a realização de investimentos em terminais portuários localizados nos portos organizados. Permite que as autoridades competentes, ao identificar a ausência de mais de um interessado, celebrem contratos de arrendamento sem licitação. Assim, dispensa-se a realização de um longo e demorado processo licitatório que acaba não fazendo sentido se a perspectiva é que não haja disputa efetiva alguma.

A norma segue a mesma lógica, por exemplo, da regra que permite a elaboração de estudos de viabilidade simplificados para certas concessões e arrendamentos (art. 6º do Decreto 8.033). Assim como determinadas situações comportam estudos simplificados, em outras não há racionalidade na realização de uma licitação.

A rigor, a possibilidade de contratações diretas de arrendamentos portuários já existia antes, ainda que não de forma expressa. O mesmo se aplica às concessões em geral, que também admitem contratações diretas. De todo modo, a regra tende a dar maior segurança jurídica a essas contratações sem licitação. Os requisitos elencados pela norma (chamamento público e conformidade com o PDZ do porto) normalmente não envolvem grande complexidade.

Ainda em relação ao tema, é muito importante esclarecer que os requisitos para a contratação direta de arrendamentos portuários não se confundem com os pressupostos que tornam cabível a ampliação (por meio de termo aditivo) de terminais que já são objeto de contrato de arrendamento prévio.

De fato, para o caso das expansões de terminais portuários arrendados, os requisitos (alternativos) aplicáveis continuam sendo os do art. 24 do Decreto 8.033, os quais são detalhados nos arts. 33 a 36 da Portaria 530 de 2019 do Ministério da Infraestrutura: (1) existência de ganhos comprovados de eficiência à operação portuária ou (2) comprovação da inviabilidade técnica, operacional ou econômica de realização de novo arrendamento portuário. 

Logo, para que haja a expansão de um terminal portuário, não se exige a realização de chamamento público, por exemplo, nem a existência de apenas um interessado na área pretendida para expansão. Continua sendo possível a expansão de um terminal portuário ainda que haja outro interessado na mesma área. Nesse caso, as autoridades competentes deverão comparar as alternativas e decidir fundamentadamente por aquela que melhor atenda as regras aplicáveis e propicie melhores resultados em termos de eficiência nas operações portuárias.

Essa ressalva quanto à inaplicabilidade dos requisitos do parágrafo único do art. 5º-B da Lei 12.815 às expansões de terminais portuários arrendados é relevante porque um dos fundamentos para essas expansões baseia-se no próprio cabimento de contratações diretas. Sob um certo ângulo, a expansão acaba sendo uma contratação direta do arrendamento de uma área contígua à de um terminal previamente existente. Contudo, os requisitos legais introduzidos pela minirreforma não se aplicam às expansões de terminais, que se submetem a regras próprias. A única, a rigor, que se aplica a ambas as situações é a necessidade de compatibilidade com o plano de desenvolvimento e zoneamento do porto.

O quarto ponto de destaque da minirreforma é a criação de uma terceira sistemática de exploração de estruturas portuárias. Além das concessões de portos organizados e de arrendamentos de terminais portuários, passou a haver a possibilidade de se estabelecer contratos de “uso temporário” de áreas e instalações portuárias localizadas na poligonal dos portos organizados.

Na realidade, trata-se de uma recriação da figura do uso temporário. Ela chegou a ser prevista na Resolução 2.240 de 2011 da ANTAQ e na Resolução Normativa 7 de 2016 também da ANTAQ (arts. 25 a 35). No entanto, tais dispositivos regulamentares tiveram sua eficácia suspensa e foram anulados por decisão da Justiça Federal do Espírito Santo, em ação civil pública proposta pelo MPF (Ministério Público Federal). A decisão entendeu que a exploração de áreas nos portos organizados só poderia ocorrer mediante licitação e que a ANTAQ teria extrapolado o seu poder regulamentar ao prever a possibilidade de exploração por meio de contrato antecedido de mero procedimento simplificado.

Agora, no entanto, a figura do contrato de uso temporário está prevista em lei formal. A mesma lei formal estabeleceu que esse contrato dispensa a realização de licitação ou, quando muito, comporta um procedimento seletivo simplificado prévio caso (1) haja mais de um interessado e (2) não exista disponibilidade física para alocar todos os interessados concomitantemente. Assim, considerando que a Constituição Federal admite inclusive contratações diretas, não nos parece que os óbices levantados pela sentença da ação do MPF permaneçam após a minirreforma. É plenamente compatível com a Constituição que haja contratações diretas e procedimentos seletivos simplificados para contratos de uso temporário de áreas e instalações localizadas nos portos organizados.

Mas o que é o contrato de uso temporário? Trata-se de uma (renovada) possibilidade de exploração de áreas e instalações portuárias situadas nos portos organizados, na qual o interessado pretende realizar a movimentação de cargas com mercado não consolidado – isto é, cargas relativas a um mercado não amadurecido. Nessas hipóteses, justamente por não haver um amadurecimento do mercado relativo a determinada carga, normalmente não fará sentido ao próprio particular a celebração de um contrato de arrendamento de longo prazo, derivado de licitação. A iniciativa privada não estará disposta a passar por um procedimento licitatório e firmar um contrato que normalmente prevê elevados investimentos e longo prazo, inclusive com metas de movimentação mínima. Nesse contexto, fica-se num impasse: o particular não tem segurança para ingressar num contrato de arrendamento e a autoridade portuária acaba ficando com a área ociosa, sem ser explorada e sem a obtenção de receitas para ela própria. Assim, para essas situações específicas, surge o contrato de uso temporário como uma alternativa interessante. 

A minirreforma não estabeleceu muitas minúcias acerca dos contratos de uso temporário. Determinou-se que as condições e os procedimentos sejam estabelecidos por meio de decreto regulamentador. Apenas se previu que os contratos em questão (1) terão prazo improrrogável de até 48 meses – portanto muito mais curto do que a prática dos contratos de arrendamento –, (2) que os investimentos vinculados a esses contratos ocorrerão exclusivamente às expensas do interessado, e (3) que após 24 meses de eficácia do contrato, ou em prazo inferior, a administração do porto organizado adotará medidas necessárias ao encaminhamento de proposta de licitação da área e das instalações existentes.

O objetivo do contrato de uso temporário, portanto, é criar uma sistemática de exploração voltada a cargas de mercados não consolidados. Contratos de prazo mais curto, que normalmente não envolvam grandes investimentos e que sejam realizados de forma direta ou no máximo por meio de procedimentos seletivos simplificados são muito mais compatíveis com esse tipo de situação.

Ainda neste ponto, uma última palavra sobre os procedimentos seletivos simplificados: trata-se de mecanismo de seleção plenamente compatível com os princípios que regem a Administração Pública. De um lado, permitem maior celeridade na celebração de contratos mais simples e celebrados por menos tempo. Não faria sentido realizar longas e complexas licitações para contratos de curtíssima duração, por exemplo. Isso afastaria investidores e restringiria a obtenção de receitas pelas próprias autoridades portuárias. De outro lado, procedimentos simplificados de seleção são mais condizentes com empresas estatais – natureza jurídica da grande maioria das autoridades portuárias do país –, notadamente a partir da edição da Lei das Estatais (Lei 13.303). Dentro dessa lógica, contratos de transição já têm sido celebrados pelas autoridades portuárias mediante procedimentos seletivos simplificados – como ocorreu com três áreas objeto de contratações recentes pela Santos Port Authority no Porto de Santos.

A verdade é que já é passada a hora de se deixar de lado o fetiche pelas licitações, como se elas fossem o único instrumento legitimador dos contratos administrativos. Outros procedimentos seletivos podem ser mais eficientes e compatíveis com certas realidades, sem descuidar dos princípios que regem a Administração Pública – como os da legalidade, objetividade, impessoalidade e (por que não?) da eficiência.

O quinto ponto de atenção da minirreforma diz respeito à criação de uma nova competência para a ANTAQ. Introduziu-se o inciso XXIX ao art. 27 da Lei 10.233 para se prever a competência da ANTAQ para “regulamentar outras formas de ocupação e exploração de áreas e instalações portuárias não previstas na legislação específica”.

Tal previsão busca possibilitar que a agência desenvolva novas formas de exploração de instalações portuárias sem a necessidade de haver uma previsão legal expressa da sistemática em questão. Assim, sem que haja violação ao princípio da legalidade, a ANTAQ poderá criar sistemáticas diferentes e inovadoras de exploração e ocupação de áreas e instalações portuárias.

Espera-se que a agência realmente exerça um papel dotado de certa criatividade, ficando sensível às dificuldades e anseios dos investidores.

Uma questão a ser examinada é se as autoridades portuárias poderiam estabelecer sistemáticas de exploração diversas. A julgar pela redação do dispositivo, a resposta seria negativa. 

No entanto, um ponto chama a atenção. De acordo com a própria minirreforma, as concessionárias de portos poderão celebrar contratos privados que envolvam a exploração de instalações portuárias. Nesse contexto, a rigor será possível que as concessionárias gozem de uma significativa liberdade, para estabelecer sistemáticas de exploração que não sejam somente aquelas estabelecidas pela ANTAQ. Trata-se de um tema ainda incerto e que demanda algumas reflexões.

Ademais, é natural que as próprias autoridades portuárias tenham certos poderes que poderão envolver o estabelecimento de sistemáticas de exploração de áreas e instalações portuárias. Tais autoridades, dada a sua proximidade com as atividades cotidianas do porto organizado, têm, sob um certo ângulo, inclusive melhores condições de estabelecer sistemáticas adequadas às necessidades dos operadores, usuários e demais interessados.

Por fim, o sexto ponto de destaque consiste na previsão de um novo inciso ao art. 3º da Lei 12.815, que estabelece ser uma diretriz da exploração dos portos organizados e instalações portuárias a existência de “liberdade de preços nas operações portuárias, reprimidos qualquer prática prejudicial à competição e o abuso do poder econômico”.

A liberdade de preços é essencial no setor portuário. Toda a lógica dos contratos de arrendamento portuário e das autorizações de instalações portuárias está calcada na liberdade de política comercial. Isso significa que o regulador deve respeitar os espaços de liberdade que o ordenamento confere aos arrendatários e autorizatários. Não por acaso, os valores cobrados por eles em contrapartida pela prestação dos seus serviços têm a natureza jurídica de preços, e não propriamente de tarifas. Tais prestadores assumem os riscos derivados de suas opções comerciais.

A previsão expressa da diretriz relacionada à liberdade de preços é a consagração desse entendimento. É necessário que os espaços de liberdade comercial dos operadores portuários sejam respeitados, afastando-se qualquer abuso de poder regulatório. Práticas abusivas por parte dos operadores poderão ser reprimidas, mas é necessário que os reguladores observem que a regra geral é liberdade, devendo as intervenções regulatórias ser excepcionais e limitadas ao estritamente necessário para que o mercado funcione em condições de normalidade. Como conclusão geral, reconhece-se que a minirreforma do marco legal do setor portuário promoveu aprimoramentos necessários e coerentes com a lógica do modelo de exploração de portos no Brasil. Espera-se que as novidades da legislação sejam aplicadas com os olhos voltados ao futuro, e não às práticas do passado. Quer-se que os portos brasileiros estejam dotados de todas as características que os façam compatíveis com os portos mais modernos do mundo. Para tanto, é necessário facilitar a realização de investimentos, ampliar o dinamismo na sua atuação e reconhecer a necessidade de colocar os procedimentos a serviço dos fins buscados, e não o contrário. Isso envolve enfrentar certos interesses corporativos, inclusive. Certamente, a legislação poderá ir além, mas os ajustes realizados são positivos. Espera-se que a prática também o seja e não frustre os objetivos buscados.

*Rafael Wallbach Schwind é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP. Visiting scholar na Universidade de Nottingham. Sócio de Justen Pereira, Oliveira e Talamini.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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