iNFRADebate: Mecanismos adequados de prevenção e resolução de controvérsias em contratos de concessão

Vitor Soliano*

Os contratos de concessão são ajustes regulatórios complexos que (i) viabilizam a delegação de atividades de titularidade ou obrigação do poder público; (ii) relacionam-se com atividades, serviços, utilidades ou bens de relevante interesse coletivo; (iii) enredam interesses sociais dispersos; (iv) envolvem o dispêndio de recursos vultosos e, consequentemente, a estruturação de financiamentos complexos; (v) possuem objetos de implantação e operação complexa, exigindo a gestão concomitante de múltiplos atores e contratos instrumentais; (vi) possuem prazo de vigência alargado, podendo alcançar múltiplas décadas; (vii) implicam constante atualização e mutabilidade; (viii) exigem a estruturação de um relacionamento permanente entre o concedente e o concessionário durante longo período; (ix) estão imersos em contexto de elevados riscos e; (x) são dotados de alta incompletude.

Essas características findam por implicar duas consequências correlacionadas entre si: (i) é absolutamente esperado que dúvidas sobre obrigações, divergências interpretativas, discordâncias entre concedente e concessionário e, enfim, conflitos surjam ao longo da vigência contratual e; (ii) as causas desses conflitos tendem a ser complexas e de difícil delimitação definitiva, razão pela qual a resolução adequada demanda profunda expertise.

A constatação desta realidade exige, em primeiro lugar, a adequada estruturação e modelagem dos módulos concessórios. É necessário não apenas que os estudos técnicos, econômicos, financeiros, jurídicos etc. sejam adequadamente realizados, mas que os seus resultados sejam efetiva e corretamente transpostos para as cláusulas contratuais e seus anexos. O correto desenho das obrigações, a eficiente alocação de riscos, a realística definição dos prazos etc. serão determinantes para se evitar o surgimento de controvérsias.

Além disso, é fundamental que os agentes, públicos e privados, envolvidos na gestão do contrato detenham capacidade técnica compatível com a complexidade deste tipo de contrato. Do lado do concedente, a seleção de agentes experientes, a formação de núcleos especializados e de unidades de gestão, a realização de treinamentos periódicos, a contratação de terceirizados para assessoramento, dentre outras, são medidas essenciais para a governança administrativa. Do lado do concessionário, a realização de processos seletivos adequados, a identificação de profissionais experientes, o treinamento e a atualização constante, o desenvolvimento de um sistema de gestão integrada em consonância com a especificidade do empreendimento, dentre outras, são medidas não só esperadas, mas que podem ser exigidas no próprio contrato.

A boa estruturação do contrato e a boa estruturação das equipes envolvidas são elementos fundamentais para minimizar o surgimento de conflitos ou preventivamente solucioná-los. Contudo, por mais bem modelado que seja o contrato e por melhor que sejam os agentes envolvidos na sua gestão ordinária, é improvável que ao longo de 10, 20, 30 anos nenhum conflito surja.

A tendência natural tanto do sistema jurídico brasileiro em si quanto dos agentes envolvidos na sua operação foi, por muito tempo, recorrer ao Poder Judiciário para solucionar controvérsias. Com o tempo, contudo, e em razão de múltiplos fatores (demora, baixa especialização, insegurança etc.), foi-se consolidando a compreensão de que as formas de solução de controvérsias precisam evoluir para um “sistema multiportas”. Ou seja, devem não apenas existir, mas efetivamente serem utilizadas múltiplas formas (portas) de solucionar os conflitos sociais, especialmente aqueles de alta complexidade. 

Em verdade, diversos autores já não mais utilizam a expressão “métodos alternativos” de solução de conflitos para se referir a essas “portas”, mas em “tutela adequada”. Cada problema jurídico aponta para uma forma mais adequada de resolvê-lo, não cabendo mais pensar o sistema judiciário como a opção “normal” e os demais meios de solução de controvérsia como opções “alternativas”.

Esses mecanismos “alternativos” de resolução de controvérsias podem oferecer múltiplas vantagens em comparação com o sistema de adjudicação judicial tradicional: maior celeridade nas respostas, maior expertise dos atores responsáveis pela sua condução e resolução, maior segurança jurídica, maior aderência e aceitação pelas partes etc. Estas vantagens são fundamentais em conflitos exclusivamente privados, mas são igualmente importantes e, mais ainda, alinhadas à perseguição de interesses públicos, em conflitos que envolvam a administração pública.

Nesse sentido, não é mais sustentável a afirmação de que esses mecanismos de resolução de conflitos são incompatíveis com o chamado “regime jurídico de direito administrativo”. O dever que a administração pública possui de zelar por interesses de outrem (a função administrativa) não é, de forma alguma, incompatível a priori com mecanismos não judiciais de resolução de controvérsias. Em verdade, é razoável afirmar que em muitas situações a forma mais efetiva de se dar concreção a esses interesses e materializar posições subjetivas previstas em normas jurídicas é se valer de expedientes outros que não a adjudicação judicial. Ou seja, a complexidade e diversidade dos deveres que a administração possui e, especificamente, as complexidades e importância das obrigações regidas por contratos de concessão, reclamam a utilização de soluções não judiciais.

Mais ainda, deve-se avançar para a compreensão de que mesmo diante de direitos tidos como “indisponíveis” existe espaço soluções “alternativas”. E isso porque a indisponibilidade de um determinado direito nem deve implicar a sua inegociabilidade ou “intransacionabilidade” nem impõe uma única forma de tutela. Ou seja, os meios de tutelar e resguardar os direitos indisponíveis são, em múltiplas situações, disponíveis.

O sistema jurídico-positivo já desenvolveu e segue criando mecanismos de sustentação segura para a utilização, pela administração pública, de meios mais adequados de resolução de controvérsias, aí incluídas aquelas que surgem de contratos complexos como os de concessão.

No campo mais geral, o Código de Processo Civil de 2015 incorpora, de forma expressa, o sistema de justiça multiportas. Os parágrafos do art. 3º não só autorizam a utilização de mecanismos como a arbitragem e a solução consensual dos conflitos, mas determinam que os atores públicos e privados devem estimular a utilização da conciliação, da mediação e de outros métodos de solução consensual. No mesmo sentido, o art. 190 cria cláusula geral de negócio jurídico processual, permitindo que as partes estipulem alterações no procedimento quando os direitos em disputa permitirem autocomposição. Ademais, o parágrafo único, como forma de regulação desta liberdade, autoriza o magistrado a controlar a validade destes ajustes, possibilidade relevante quando a administração pública é uma das partes envolvidas.

Em complemento, o art. 1º, §§ 1º e 2º da Lei Federal nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem) é também taxativo quanto à possibilidade de utilização da arbitragem pelos órgãos e entidades da administração pública quando os conflitos envolvem direitos patrimoniais disponíveis. Observe-se que o dispositivo, tal qual os dispositivos do CPC (Código de Processo Civil), são gerais, criando o permissivo para as mais variadas formas de conflitos, o que inclui, evidentemente, aqueles que emergem das relações pactuadas em contratos de concessão.

No mesmo sentido, em 2015 foi publicada a Lei Federal nº 13.140, que instituiu regras sobre mediação e autocomposição de conflitos. O diploma legal autoriza e regulamenta, em diversas passagens, a utilização de mecanismos de autocomposição de conflitos pelos órgãos e entidades da administração pública. O regramento legal é ainda mais inovador pois determina a criação de câmaras voltadas especificamente para a solução consensual de conflitos em que a administração pública é parte. Pode-se advogar, por exemplo, pela institucionalização de câmaras especificamente vocacionadas para dirimir consensualmente conflitos que surjam das relações veiculadas por contratos de concessão.

Ademais, a Lei inova substancialmente ao prever, no seu art. 3º, caput e §2º, a figura dos “direitos disponíveis que admitam transação” e dos “direitos indisponíveis transigíveis”, indo além, portanto, da utilização da mediação apenas quando os direitos forem disponíveis. Esses institutos devem ser mais bem explorados, pois abrem um rol amplo de possibilidades de resolução consensual de conflitos que envolvam o poder público, “tutor natural” dos interesses públicos, tidos como indisponíveis.

Ainda em um escopo geral, deve-se fazer menção ao art. 26 do Decreto-Lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), recentemente incluído pela Lei Federal nº 13.655/18. O dispositivo cria hipótese geral de negociação público-privada ao estabelecer que para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. 

Ora, contratos de concessão, como acima referido, são ricos em situações em que se alega o cometimento de irregularidades – seja pelo concedente, seja pelo concessionário –, em que surgem incertezas jurídicas e, evidentemente, em que emergem situações contenciosas. O art. 26 da LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), portanto, presta-se a, amplamente, autorizar soluções negociadas entre as partes em um contrato de concessão.

No caso das concessões federais que são fiscalizadas e reguladas por agências, o art. 32 da Lei Federal nº 13.848/19 (Lei das Agências Reguladoras) positivou expressamente a possibilidade de celebração de termos de ajustamento de conduta. Embora já fosse prática de algumas agências federais, o dispositivo atribui maior segurança e generalidade ao mecanismo.

Mais recentemente ainda, a Lei Federal nº 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos) trouxe importantíssima inovação legislativa ao expressamente prever a possibilidade de utilização de mecanismos “alternativos” de resolução de controvérsias em contratos públicos. Estabelece o art. 151 que “poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”. Destaca-se que a NLLC (Nova Lei de Licitações e Contratos) é subsidiariamente aplicável aos contratos de concessão regidos pela Lei Federal nº 8.987/95 (Lei Geral de Concessões) e pela Lei Federal nº 11.079/04 (Lei das PPPs), conforme estabelece o seu art. 186.

Por fim, no caso específico das concessões, o art. 23-A da Lei Federal nº 8.987/95 e o art. 11, III da Lei Federal nº 11.079/04 são taxativos ao autorizar a utilização de mecanismos privados de resolução de disputas para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.

Percebe-se, portanto, que o sistema jurídico brasileiro não é, nem de longe, refratário à utilização de mecanismos não judiciais para resolver e prevenir conflitos em que a administração pública seja parte. Dado o modo de funcionamento desses mecanismos, não há razão para assim não ser.

A negociação, conciliação e mediação são os mecanismos mais marcadamente consensuais que podem ser utilizados quando do surgimento (ou mesmo quando em vias de surgimento) de uma controvérsia entre concedente e concessionário. São mecanismos voltados à negociação direta entre as partes, ainda que possa haver um terceiro imparcial que tem como função facilitar o processo negocial. Esses mecanismos podem ser amplamente utilizados em contratos de concessão, seja em razão de previsão legal federal expressa, como visto, seja por regramento específico do ente federado concedente, seja, ainda, com base em procedimentos ainda mais concretos estabelecidos pelo próprio contrato de concessão. Podem ser desenvolvidas câmaras especializadas gerais para tal fim, comissão permanente de conciliação para contratos específicos – hipótese na qual a conciliação assumirá a forma de um tipo de processo administrativo – ou a instauração ad hoc de procedimento conciliatório ou de mediação.

Próximos à mediação e à conciliação, mas já assumindo, em alguma medida, a estrutura de heterocomposição de conflitos, os dispute boards ou comitês de resolução de disputas também podem funcionar como mecanismos adequados de solução e prevenção de controvérsias em contratos públicos. Trata-se de comitês normalmente formados por três membros dotados de notório conhecimento técnico em áreas diversas (direito, engenharia, economia etc.) e indicados na forma do contrato ou, caso exista, da lei ou regulamento específico. Em regra, cada uma das partes indica um membro e o terceiro é escolhido pelos indicados.

Os DBs podem assumir as mais variadas formas e serem dotados das mais variadas competências e poderes. Podem, por exemplo, ser instituídos para funcionar durante toda a vigência do contrato, acompanhando de perto as relações entre as partes, ou podem ser criados de forma ad hoc para resolver ou contribuir com a resolução de um conflito específico e concreto que as partes não pretendem levar diretamente para arbitragem ou para o Judiciário. Podem, ainda, receber o poder de emitir juízos vinculantes para ambas as partes ou podem apenas funcionar como órgãos de emissão de pareceres, opinativos estes que poderão guiar as partes em processos negociais, arbitrais ou judiciais.

Embora a ausência de um regramento legal geral sobre estes mecanismos possa desestimular os gestores a prevê-los em contratos de concessão durante a sua modelagem – ausência esta parcialmente sanada com o art. 151 da NLLC, como acima indicado –, essa lacuna também cria espaços para a criatividade e adaptabilidade. Ou seja, pode-se estruturar – sempre de forma motivada e transparente – os DBs em contratos complexos utilizando como referencial boas experiências passadas, nacionais ou internacionais, assim como modelos e manuais de boas práticas em gestão de concessões. 

Por fim, a arbitragem é o mecanismo “alternativo” de solução de controvérsia marcadamente heterocompositivo. Trata-se de forma de jurisdição privada em que os árbitros tomam a decisão definitiva em lugar das partes ligadas pelo contrato de concessão. O mais comum é que a arbitragem seja conduzida por comitê arbitral composto por três membros, dois dos quais são indicados por cada uma das partes e o terceiro é escolhido pelos indicados. O processo de instrução é regrado pelo próprio contrato ou por normas externas expressamente indicadas no contrato.

A arbitragem vem sendo amplamente prevista nos contratos de concessão e efetivamente utilizada como substituto ao Poder Judiciário. Apesar do maior custo que envolve, a arbitragem tem uma tendência a ser mais célere e mais especializada do que o processo adjudicatório judicial. Dada a complexidade dos módulos convencionais concessórios, as partes tendem a preferir arcar com um custo econômico direto maior do que submeter a controvérsia a um juízo que, possivelmente, não detenha a expertise técnica (jurídica, econômico-financeira ou mesmo de engenharia etc.) necessária nem possua aparato de apoio adequado, e cuja decisão definitiva seja muito demorada.

Os mecanismos “alternativos” de resolução de controvérsias são, portanto, não só bem-vindos aos contratos de concessão, mas, pode-se afirmar, absolutamente necessários, dada a complexidade que estas formas de ajustes possuem, além de estarem em plena consonância com o sistema jurídico brasileiro. Por fim, são instrumentos que podem estar mais aptos a resguardar os interesses públicos perseguidos pelos módulos concessórios.

*Vitor Soliano é mestre em Direito Público (UFBA), MBA em Parcerias Público-Privadas e Concessões (FESPSP), membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA, professor da Faculdade Baiana de Direito e advogado.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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