iNFRADebate: Malha aérea essencial – A proteção do sistema aéreo na pandemia da Covid-19

Alan de Oliveira Lopes*

Dentre as ações do governo federal para manutenção da mobilidade entre as unidades da federação durante a crise da pandemia da Covid-19 está a manutenção da denominada “malha aérea essencial”. Trata-se de um esforço conjunto de várias entidades públicas e privadas no intuito de impedir o colapso total do sistema aéreo brasileiro.

Esse esforço se iniciou ainda em janeiro de 2020 com a adoção dos protocolos de saúde determinados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pelo MS (Ministério da Saúde)1, que envolvem a obrigação de uso de Equipamentos de Proteção Individual específicos para os trabalhadores aeroportuários, intensificação da desinfecção das áreas operacionais e dentro das aeronaves, divulgação de áudios (speeches) com informações aos passageiros e triagem da Anvisa a partir de monitoramentos de tripulações, funcionários dos aeroportos e autodeclaração, em articulação com as secretárias de Saúde locais.

Com o agravamento da crise, a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), em 13 de março de 2020, realizou o Comunicado 57/20002, em que, devido ao impacto causado pela expansão da contaminação do coronavírus (Covid-19), a ANAC adotou medida (waiver) que abona o cancelamento de slots (horários de chegada e partida em aeroportos coordenados) do cálculo do índice de regularidade para a obtenção de direitos históricos pelas companhias aéreas. O waiver é válido até o final da temporada verão 2020 (S20), ou seja, 24 de outubro de 2020, e está alinhada com decisão semelhante adotada por outras organizações e autoridades de aviação civil, como a Comissão Europeia, a Euaca (European Airport Coordinators Association), da Europa, e a FAA (Federal Aviation Administration), dos Estados Unidos. No mesmo sentido, pela queda de demanda para voos internacionais, a agência também decidiu flexibilizar o monitoramento de frequências internacionais de 12 de março até 21 de outubro de 2020, de modo a não considerar a baixa utilização no período.

Ainda em março, verificando o grave risco ao fluxo de caixas das empresas aéreas regulares e aos aeroportos concedidos, foi publicada a MP (Medida Provisória) 9253, de 18 de março de 2020, que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da Covid-19. A MP 925 estabeleceu que as contribuições fixas e as variáveis com vencimento no ano de 2020 poderão ser pagas até o dia 18 de dezembro de 2020 previstas em contratos de concessão de aeroportos do governo federal. No que tange as empresas aéreas a medida focou nas relações com os consumidores (passageiros). Foi previsto que o prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente. Em contrapartida, os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.

No mesmo sentido foi publicado o Decreto 10.284, de 20 de março de 20204, que tratou da dilação do prazo de vencimento das tarifas de navegação aérea até o fim do ano fiscal corrente, durante o período de enfrentamento da pandemia da Covid-19, devidas pelas empresas aéreas ao Comando da Aeronáutica pelos serviços prestados pelo Decea (Departamento de Controle do Espaço Aéreo).

Em virtude da recente falência da empresa aérea Avianca, existe o temor de que os passageiros fiquem sem poder utilizar os seus créditos com novas falências. Ainda nesse sentido, o Ministério da Infraestrutura apoiou iniciativa da PGR (Procuradoria-Geral da República), por meio da 3ª Câmara de Coordenação e Revisão do Consumidor e Ordem Econômica – MPF, que, em 20 de março de 2020, celebrou TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) entre o MPF (Ministério Público Federal) e o MPDFT (Ministério Público do Distrito Federal e Territórios), a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) do Ministério da Justiça e Segurança Pública e a Abear (Associação Brasileira das Empresas Aéreas) – Latam, Azul, Gol e Passaredo5.

No TAC se previu que os passageiros que tiverem adquirido passagem até a data de assinatura do TAC e possuir bilhete de voo operado entre 1º de março e 30 de junho de 2020 poderão remarcar a sua viagem nacional ou internacional por uma única vez, sem qualquer custo, respeitada a mesma origem e destino. A exceção é para voos operados em “code-share”, “interline” (acordo de compartilhamentos de voos com outras companhias), por companhias que possuam parceria de plano de milhagem e voo “charter”. A remarcação poderá acontecer para qualquer período dentro do intervalo de validade da passagem, sem a cobrança de taxa de remarcação ou diferença tarifária. Os passageiros com passagens compradas para períodos de “alta temporada” (julho, dezembro, janeiro, feriados e vésperas de feriados) poderão remarcar a viagem para qualquer data compreendida pelo tempo de validade do bilhete. Já quem comprou passagens para baixa temporada poderá remarcá-las gratuitamente para voos a serem operados também em baixa temporada. Caso o consumidor queira remarcar para datas de alta temporada, deverá pagar diferença tarifária. Também é possível remarcar a viagem para outro destino, com eventual pagamento de diferença da tarifa.

Ainda em março foram necessárias ações articuladas no sentido de manter o sistema logístico do país em funcionamento. Em 20 de março de 2020 foram publicadas a Medida Provisória 9266 e o Decreto 10.282, de 20 de março de 2020, que alteraram e regulamentaram, respectivamente, a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 20207, para a definição dos serviços essenciais durante o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Nesse conjunto, a sustentação de rotas aéreas regulares se mostra fundamental para o transporte de insumos e equipes médicas. Para a sustentação dessa rede logística tanto aérea quanto rodoviária e fluvial foi a criação do Consetrans (Conselho Nacional de Secretários de Transportes), por meio do Decreto 10.298, de 30 de março de 2020, em que, por meio de reuniões virtuais e grupo de comunicação digital, conseguiu-se estabelecer dinâmica interlocução entre o Ministério da Infraestrutura e as unidades equivalentes nos demais estados e Distrito Federal quanto formulação, da implementação e da avaliação das políticas públicas do setor de transportes durante a fase inicial da pandemia da Covid-19.

O apoio do Consetrans também colaborou com o entendimento da necessidade de manutenção de voos humanitários internacionais no esforço do Grupo Consular de Crise  do MRE (Ministério das Relações Exteriores), da ANAC e da SAC (Secretária Nacional de Aviação Civil) para assistência a viajantes brasileiros afetados pela pandemia do novo coronavírus no exterior a repatriação de milhares de brasileiros. A magnitude dessa ação é expressa pelo montante de 11,7 mil brasileiros espalhados em 90 países que já tinham sido repatriados até o dia 11 de abril de 20208. Devido a dificuldades de comunicação, a ANAC disponibilizou formulário no sítio eletrônico <http://www.anac.gov.br/brasileironoexterior> como forma de organizar as demandas ainda remanescentes.

Toda essa articulação para a manutenção de malha aérea essencial foi baseada nas políticas de liberdade tarifária e de rotas vigentes no Brasil. Esse regime de liberdade tarifária adotado para a regulação do setor aéreo nacional busca a existência de mercados com livre entrada e saída, nos quais o preço é definido por meio da interação entre oferta e demanda, sem intervenção estatal. Portanto, a prestação de serviços aéreos não pode ser vista como uma concessão comum. Esse entendimento foi consagrado pelo Acórdão 346/2008 do plenário do TCU (Tribunal de Contas da União) e ratificado em ocasiões posteriores, pelos Acórdãos 1241/2018 e 2955/2019, ambos do plenário do TCU. Existem dois pilares no setor aéreo: a liberdade de oferta e a liberdade tarifária, que passou a vigorar com a publicação da Portaria do Ministério da Fazenda 248, de 10 de agosto de 2001. Esses mesmos princípios foram ratificados nos artigos 48 e 49 da Lei Federal 11.182/05, que criou a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil).

Esse ambiente de liberdade concorrencial permitiu que diante da violenta queda de demanda as principais empresas aéreas nacionais apresentassem proposta de diminuição de suas atuais rotas onde as capitais dos 26 estados e o Distrito Federal, outras 18 cidades do país – Guarulhos, São José do Rio Preto, Uberlândia, Campinas, Montes Claros, Porto Seguro, Ilhéus, Imperatriz, Fernando de Noronha, Juazeiro do Norte, Petrolina, Navegantes, Chapecó, Londrina, Foz do Iguaçu, Santarém, Tabatinga e Tefé – permaneceriam atendidas, em procedimento de acordo com a Resolução 440 da ANAC9, que estabelece as regras para o processo de registro dos serviços de transporte aéreo.

Essa nova malha com centros de distribuição nos Aeroportos de Guarulhos (Gol e Latam) e de Viracopos (Azul) teve início em 28 de março de 2020, tinham como meta até o final de abril, distribuídos em frequências semanais com: 723 voos no Sudeste, 153 na região Nordeste, 155 voos no Sul, 135 no Centro-oeste e 75 voos para a região Norte. A dimensão do choque no sistema aéreo é evidenciada pelo fato de que a malha essencial remanescente é 91,61% menor do que a originalmente prevista pelas empresas para o período. Considerando a programação de Gol, Azul e Latam, a queda é de 56,06% das localidades atendidas, passando de 106 para 46. O número de voos semanais passou de 14.781 para 1.241. Esse processo envolveu além da ANAC também participam da ação o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), do Ministério da Economia, e o Ministério da Infraestrutura, que tem buscado junto aos governos estaduais apoio para a iniciativa.

A redução drástica da oferta de voos levou a ANAC a publicar a Portaria 880, de 27 de março de 2020, que autoriza, em caráter excepcional, transporte de carga por operador certificado sob o RBAC (Regulamento Brasileiro de Aviação Civil) 13510. Essa ação levou a permissão de que empresas de táxi-aéreo pudessem suprir demandas de transportes, especialmente de artigos hospitalares, amostras laboratoriais, carga de álcool gel e líquido, entre outros.

A necessidade de pátios de aeronaves foi consequência imediata da suspensão de centenas de voos. Para enfrentar essa necessidade foi editado o Decreto 10.308, de 2 de abril de 2020, que permitiu requisição de bens e serviços prestados por empresas públicas vinculadas ao Ministério da Infraestrutura durante o período do estado de calamidade pública decorrente da pandemia de coronavírus, objetivando o uso da rede de aeroportos da Infraero. De forma complementar, foi publicada a Medida Provisória 945, de 4 de abril de 2020, que tratou entre outras temas da cessão de pátios sob administração militar, resguardado o fato de que a manutenção e a utilização das aeronaves correrão às contas da cessionária das áreas.

O uso de aeródromos na Amazônia também foi objeto das medidas excepcionais durante a pandemia da Covid-19. Por meio de alteração dos anexos da Portaria 3.352/2018, publicada na Portaria 94511, de 2 de abril de 2020, que simplifica as regras para a regularização de pistas privadas de pouso e decolagem existentes na região da Amazônia Legal, sem a necessidade de elas passarem pelo processo de autorização de construção da agência. Com a decisão, a Fundação Nacional do Índio e a Sesai/MS (Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde) preveem o cadastro de mais de 200 aeródromos naquela região para atendimento de saúde indígena12. A medida aplicada aos aeródromos da Amazônia Legal garante uma série de benefícios aos moradores e pessoas que precisam acessar a região. Além disso, contribui para o fomento da aviação na região, o atendimento de comunidades isoladas – que têm o modal aéreo como uma das poucas formas de locomoção –, permite o acesso à saúde, o apoio a operações de segurança, e está em linha com o Código Brasileiro de Aeronáutica, que permite que seja dado um tratamento diferenciado àquela região. A alteração realizada pela ANAC dispensa a exigência de autorização prévia de construção de aeródromos privados já construídos e que estejam dentro da Amazônia Legal, desde que não estejam situadas em área de faixa de fronteira. Com este processo foi substituída a anotação de responsabilidade técnica de projeto e execução por uma única de regularização.

Essas ações iniciais ilustram o impacto que a pandemia da Covid-19 atingiu o setor aéreo no Brasil. Elas garantiram meios para a distribuição de elevadas quantidades de insumos médicos e equipes de saúde. Todavia, a continuidade dessa disponibilidade depende de outras ações, tanto por parte do poder público quanto da própria reorganização do setor privado. Essas novas medidas estão sendo estudadas e precisaram ser implementadas ao longo dos próximos meses visando garantir a travessia desse período e a retomada do setor aéreo como um todo.

*Alan de Oliveira Lopes é engenheiro civil e mestre em Transportes pela Universidade de Brasília. Exerceu o cargo de engenheiro civil na Infraero, perito criminal federal da Polícia Federal e assessor especial do ministro da Infraestrutura. Atua como professor de Engenharia Legal na Academia Nacional de Polícia e palestrante. É autor do livro “Superfaturamento de Obras Públicas”.
1 https://www.segs.com.br/mais/turismo-viagens/226737-servico-infraero-esclarece-duvidas-sobre-operacao-de-aeroportos-e-acoes-contra-o-covid-19
2 https://www.anac.gov.br/assuntos/setor-regulado/empresas/slot/comunicados/Comunicado57WaiverCOVID19.pdf
3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv925.htm
4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10284.htm
5 http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-e-senacon-firmam-acordo-com-empresas-aereas-para-garantir-direitos-do-consumidor-afetados-pela-pandemia
6 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv926.htm
7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm
8 https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/04/itamaraty-atua-no-retorno-de-brasileiros-retidos-no-exterior
9 https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/2017/resolucao-no-440-09-08-2017/@@display-file/arquivo_norma/RA2017-0440.pdf
10 https://www.anac.gov.br/noticias/2020/anac-publica-lista-das-empresas-de-taxi-aereo-autorizadas-a-operar-carga
11 http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-945-de-2-de-abril-de-2020-251702863
12 https://www.anac.gov.br/noticias/2020/anac-simplifica-regularizacao-de-pistas-de-pouso-na-regiao-da-amazonia-legal
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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