iNFRADebate: Limitação tarifada no transporte aéreo de cargas – decisão monocrática do STF usurpa competência exclusiva do STJ

Fernando Moromizato Jr.*

Em 1º de março de 2022, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, monocraticamente, deu provimento ao RE 1.368.069/SP para restabelecer o primeiro acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (1003761-23.2017.8.26.0003) que determinou o dever de reparação integral aos danos no transporte aéreo de cargas. A decisão transitou em julgado no dia 25 de março de 2022. 

A monocrática, data venia, por certo, é fruto de uma estratégia processual que vem sendo adotada insistentemente pelas seguradoras de cargas em geral, com o propósito específico de retirar o foco de atenção da Convenção de Montreal, direcionando seus esforços exclusivamente a um pronunciamento sobre o precedente paradigma RE 636.331/RG.

Não há nenhum óbice ao STF em reconhecer que o precedente paradigma RE 636.331/RG, por si só, não seja aplicado ao serviço de transporte aéreo de cargas. Mas seus poderes ficam restritos a isso. Nada além, sob pena de usurpar competência exclusiva do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

A decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes partiu da seguinte premissa: “[…] Em casos nos quais se debate vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria, e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro, é inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso decorrente de contrato de seguro”.

Não sendo aplicável o precedente paradigma ao transporte aéreo de cargas, disso deflui que esse serviço específico não se submete também à Convenção de Montreal? 

Negativo. Uma coisa é o precedente paradigma; outra, a Convenção de Montreal.

Ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) compete decidir se a Convenção de Montreal se aplica (ou não) ao vício na prestação de serviço de transporte aéreo de cargas, sobretudo porque o ministro Gilmar Mendes fundamentou que o STF pacificou a questão de fundo sobre a possibilidade da limitação da responsabilidade por legislação internacional especial incorporada à ordem jurídica nacional (Ag.Reg.Emb.Decl.RE 1.164.624/SP, 2ª Turma do STF, DJe 17.06.2020). 

A Convenção de Montreal é expressa ao estabelecer que se aplica “a todo transporte internacional de pessoas, bagagem ou CARGA” (art. 1º, item 1 do Decreto n. 5.910/06). 

O art. 22, item 3 da Convenção de Montreal estabelece que, “no transporte de CARGA, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago quantia suplementar, se for cabível”. O posicionamento do STJ é no sentido de que não há imposição forçosa de tarifação, mas uma faculdade ao expedidor da mercadoria que se submeta a ela, caso não opte por fazer declaração especial – o que envolve, em regra, pagamento de quantia suplementar (REsp 1.341.364/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 05/06/2018).

Mais adiante, ainda, no art. 22, item 5 da Convenção de Montreal, o dolo ou culpa grave para fins da condicionante da limitação é restrito às hipóteses de transporte de passageiros e bagagens, não de cargas (REsp 1.235.825/SP, rel. min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, DJe 01/06/2018).

Logo, inadmissível que um mesmo instituto estabeleça duas relações jurídicas distintas, ou seja, aplicabilidade da Convenção de Montreal para o transporte aéreo de passageiros e bagagens e NÃO aplicabilidade da mesma Convenção de Montreal para o transporte aéreo de cargas. 

A decisão monocrática proferida nos autos do RE 1.368.069/SP foi respaldada em três julgados do STF: (1) ARE 1.146.801, (2) AI 822.191 e (3) RE 1.242.964. Para o ministro Alexandre de Moraes, a alegação de violação ao art. 178 da CF/88 vinda da seguradora de cargas cuidou de “matéria eminentemente constitucional”.

De sua vez, o precedente que serviu de embasamento para a monocrática, i.e., ARE 1.146.801, sob alegação também de violação ao art. 178 da CF/88, o mesmo ministro fundamentou à época que “a controvérsia possui natureza infraconstitucional, de forma que as alegadas ofensas à Constituição seriam meramente indiretas (ou mediatas), o que inviabiliza o conhecimento do referido apelo” (sic). Idem quanto aos precedentes citados AI 822.191/SP e RE 1.242.964, ambos sob a relatoria do ministro Luiz Fux. 

O segundo acórdão do TJSP (1003761-23.2017.8.26.0003) aplicou a indenização tarifada prevista na Convenção de Montreal por ausência de declaração de valor da mercadoria no conhecimento de transporte aéreo. Inadmitido o REsp na origem, o STJ não conheceu do AREsp 2.009.265/SP por falta de impugnação específica de todos os fundamentos da decisão recorrida. Em momento algum, o segundo acórdão do TJSP – avalizado pelo STJ –, contrariou orientação firmada no precedente paradigma RE 636.331/RG, nem tampouco divergiu, de forma manifesta, a qualquer súmula, a ponto de respaldar a monocrática com base no art. 21, §1º e §2º do RISTF. 

O restabelecimento do primeiro acórdão do TJSP (1003761-23.2017.8.26.0003), com o dever de reparação integral aos danos no transporte aéreo de cargas, jamais poderia suceder monocraticamente. Com o devido acatamento, a decisão de uma caneta só usurpa a competência exclusiva do STJ para deliberar sobre a aplicação da limitação tarifada fundada no art. 22, item 3 do Decreto n. 5.910/2006.

*Fernando Moromizato Jr. é advogado na Ruy de Mello Miller, coordenador jurídico contencioso e consultivo, especialista em direito marítimo, portuário e aduaneiro.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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