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iNFRADebate: Licitações no Brasil e teoria dos leilões – oportunidades e riscos

Thiago Cardoso Araújo*, Vinícius Klein** e Lucas Thevenard***

O Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, além de premiar grandes pesquisadores, coloca as teorias por eles desenvolvidas em evidência. No momento atual, em que a aproximação entre direito e economia no Brasil é cada vez mais relevante, os impactos jurídicos também acabam por ser destacados. A premiação neste ano dos professores Paul R. Milgrom e Robert B. Wilson traz para o debate público a teoria dos leilões.  No plano teórico um impacto possível é a abertura de novos horizontes para a aplicação da AED (Análise Econômica do Direito) ao direito público. Em termos práticos pode catalisar mudanças nas compras públicas1, que vivem um momento de influxo de tecnologia e de harmonização por meio do GPA (Acordo de Compras Governamentais, na sigla em inglês) promovido pela Organização Mundial do Comércio.

Mas, antes de tratarmos do horizonte que se apresenta para as compras públicas com a aplicação da teoria dos leilões, vamos apresentar rapidamente algumas contribuições dos premiados deste ano.

A evolução da teoria dos leilões
Os leilões têm uma longa história, sendo utilizados como ferramenta de intermediação econômica há séculos. Mas foi na década de 1970 que Robert B. Wilson avançou em modelos mais realistas que os até então existentes2, incorporando um tratamento mais sofisticado do papel da informação nos leilões3. Para melhor compreensão dos avanços produzidos por Wilson pode-se pensar em um exemplo: a licitação para a concessão do serviço público de transporte coletivo intermunicipal. A publicidade dos instrumentos convocatórios produz uma informação pública sobre o valor do bem (investimentos necessários, receitas estimadas etc…), mas o valor que será gerado de receita para cada um dos contratantes não depende apenas do valor do bem em sim, mas do uso e do modelo de negócio a ser adotado, portanto trata-se de uma informação privada de cada um. Ora, se se cada bem possui um valor diverso para cada licitante tem-se uma informação privada, que é relevante para garantir que o serviço seja prestado de forma eficiente e com menor custo para o usuário. A incorporação adequada desta informação privada é importante para a eficiência do leilão, podendo, por exemplo, permitir mais investimentos com menor receita tarifária. Esse modelo seria adaptado em seguida por Paul R. Milgrom, que acabou por sistematizar e ampliar os achados de mais de duas décadas de pesquisa. 

Um outro ponto a ser destacado quanto aos trabalhos de Wilson e Milgrom é o desenvolvimento de novas modalidades de leilões aplicáveis aos casos de alocação simultânea de mais de um bem, direito ou serviço: os chamados leilões multiunitários. Essas modalidades são relevantes para casos em que há relações relevantes de substituição ou complementariedade entre os bens transacionados. Os estudos não foram puramente teóricos, já que, em 1994, Wilson e Milgrom desenvolveriam para a FCC (Federal Communications Commission) norte-americana o modelo do leilão aberto e simultâneo, no qual todos os lotes são postos a leilão de forma conjunta e o certame só se encerra quando não há mais lances em nenhum lote. Esse modelo se consagraria como o principal modelo em leilões de espectro, em diversos países do mundo. Apesar disso, novas modalidades continuam a ser estudadas e propostas por Wilson e Milgrom. 

A teoria dos leilões e as compras públicas
A Lei 8.666/1993, que disciplina as compras públicas no Brasil, é objeto de diversas críticas, sobretudo porque estabelece um conjunto excessivamente extenso de regras imperativas. Nesse ponto, juristas e economistas convergem para o entendimento de que um regramento mais flexível, mais aberto a escolhas discricionárias dos agentes públicos envolvidos, permitiria formatos mais eficientes e soluções inovadoras. As críticas são amplas, mas vamos aqui nos ater aos pontos de debate que podem ser iluminados pela teoria dos leilões e pela incorporação das questões informacionais desenvolvidas por Milgrom e Wilson.

A primeira é o foco excessivo no critério do melhor preço. Equiparar o benefício final de um certame licitatório à obtenção do melhor preço é problemático pois nem sempre o preço é um sinal adequado da alocação que maximiza o benefício social no longo prazo. Podemos imaginar pelo menos dois critérios alternativos para o desenho de um leilão: a promoção da eficiência produtiva do setor e o aumento da concorrência. Esse problema é particularmente relevante nos leilões multiunitários estudados por Wilson e Milgrom, pois essas modalidades são utilizadas justamente quando há complementariedades relevantes entre os bens, serviços ou direitos transacionados. 

Um segundo ponto é a caracterização dos certames licitatórios como eventos estáticos e isolados. A teoria contemporânea de leilões aponta para a necessidade de se pensar os processos nos quais os agentes interagem múltiplas vezes com a Administração e adaptam suas estratégias ao longo do tempo. Assim, a teoria dos leilões estuda fenômenos como a maldição do vencedor, processo pelo qual, em cenários de incerteza em que os participantes atuam sem conhecer os comportamentos dos demais, como é o caso dos leilões fechados, o vencedor sempre sai do leilão acreditando que ofereceu um lance excessivamente alto, o que induz comportamentos cada vez mais conservadores dos participantes4. Assim, pode ser do interesse da Administração obter um valor menor e mitigar os efeitos da maldição do vencedor em um determinado contrato, para estimular a competição e a eficiência de mercado, de forma a gerar valores maiores em contratos futuros. 

Acredita-se que com a adoção do GPA deverá haver uma pressão para adaptação às boas práticas internacionais, que já incorporaram alguns insights da teoria dos leilões. Uma nova legislação que prestigiasse um maior grau de liberdade de escolha por parte dos gestores públicos possibilitaria a adaptação mais eficiente para cada contratação com modelagens específicas, o que é um caminhado particularmente útil em contratos vultosos, como os de concessão e PPPs. Os requisitos da qualificação nesse tipo de licitação vêm sendo investigados como uma maneira de fomentar maior competição, abrindo o mercado para novos entrantes sem experiência prévia, mas capazes, a partir de subcontratações e outros arranjos, prestar serviços públicos com eficiência. Como exemplo, cita-se a concessão rodoviária PiPa (Piracicaba-Panorama), cuja principal preocupação foi viabilizar investimento, obtendo, como resultado, um elevado ágio na proposta de outorga.

No horizonte, leilões desafiadores como a futura concessão de 5G no país poderão se beneficiar de inovações da teoria dos leilões5, em certames feitos sob medida por uma equipe interdisciplinar altamente qualificada. Nesse sentido, a Consip, empresa pública italiana responsável pela racionalização das compras públicas nacionais, constitui o paradigma de uma abordagem que não limita a visão do tema a um enfoque estritamente jurídico.

Contudo, é pouco crível pensar que tais avanços podem ser satisfatoriamente adotados por mais de 5.000 entes federativos (e um múltiplo desse número de unidades de gestão), com as mais diversas estruturas e capacidades institucionais.  Em realidade, ter-se-ia um exercício de experimentalismo ingênuo, com resultados talvez piores que os obtidos pela camisa de força da lei geral de licitações e contratos

Entretanto, se nem todo jurista – o profissional que, na nossa realidade, estuda o tema – pode ser o novo Paul Milgrom, isso não significa que esteja preso a um eterno figurino de Hely Lopes Meirelles.

Avanços são possíveis. Sugere-se, por ora, duas estratégias para tal. A primeira, já comentada, é a formação de equipes multidisciplinares e um gradual relaxamento de um determinismo legal6. E o segundo caminho, que pode ser fortalecido com a adoção simultânea da primeira opção, passa pelo reconhecimento do papel da tecnologia como vetor de modificação do atual cenário de compras públicas.

 Nesse sentido, recomenda-se que devem sair de cena a disciplina exauriente das modalidades de licitação, verdadeiros algoritmos legais, para o emprego crescente de algoritmos e sistemas eletrônicos, adaptáveis e abertos ao aprimoramento por meio de processos de machine learning, permitindo ganhos significativos de eficiência. Aqui, a teoria econômica tem muito a contribuir para fundamentar a definição dos parâmetros a serem seguidos, beneficiando-se enormemente dos avanços experimentados pela teoria dos leilões.  

Dessa forma, seria possível aproveitar vários mecanismos sofisticados advindos da teoria econômica para seu emprego mesmo nas hipóteses de licitação mais corriqueiras. Nessa linha, um exemplo de solução particularmente desejável é a implementação de um marketplace eletrônico para compras governamentais, com sistemas eletrônicos que incluam um grande leque de mecanismos de leilão.

A partir do esforço inicial para a criação do sistema, seria possível sua replicação, dispensando que cada órgão que promovesse compras públicas tivesse que contar em seu quadro com profissionais altamente capacitados. A disseminação do Comprasnet, a partir da edição do Decreto 10.024/19, demonstra que esse prognóstico é altamente provável.

Conclusão
Em síntese, o prêmio conferido a Paul Milgrom e Robert Wilson confirma o acerto em avançarmos com novas pesquisas interdisciplinares de direito e economia, mas vai além. Novos horizontes pedem em geral uma abordagem não restrita ao direito e à economia, mas também capazes de abordar questões tecnológicas, em um olhar de Law, Economics and Technology , o que pode abrir uma ampla agenda de pesquisa, apta a fomentar maior eficiência e minimizar os custos envolvidos nas compras públicas, permitindo a modernização do direito administrativo e da gestão pública. Acreditamos que o Prêmio Nobel de Economia pode ser visto como o lance inicial deste processo.

*Thiago Cardoso Araújo é sócio de Bocater Advogados. Mestre em Direito Público e doutor em Teoria do Direito pela UERJ. Pós-graduado em MBA em PPP e Concessões pela London School of Economics em parceria com a FESPSP. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Economia da Fundação Getulio Vargas (EPGE).
**Vinícius Klein é doutor em Direito Civil pela UERJ e doutor em Economia pela UFPR. Visiting scholar na Universidade de Columbia. Procurador do Estado do Paraná e professor adjunto de Economia e Direito no Departamento de Economia da UFPR.
***Lucas Thevenard é pesquisador na Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (Direito Rio/FGV).
1 Como no Brasil praticamente todas as aquisições de bens e serviços devem seguir obrigatoriamente o procedimento licitatório, as expressões para este artigo podem ser vistas como equivalentes.
2 Apesar de existirem diversos trabalhos anteriores a década de 1970, pode-se destacar a aplicação do ferramental da teoria dos jogos aos leilões feita pelo economista e também premiado com o Nobel em Economia Willian Vickery em um artigo seminal na década de 1960 (VICKERY, W. (1961). Counterspeculation, auctions, and competitive sealed tenders. The Journal of Finance, 16(1), pp. 8–37), que iniciou o caminho que seria aprofundado pelos trabalhos dos professores Paul R. Milgrom e Robert B. Wilson.
3 Para alguns autores como Joseph Stiglitz trata-se de um fator que promoveu uma mudança de paradigma na teoria econômica. Nesse sentido ver: STIGLITZ, Joseph E. (2002). Information and the Change in the paradigma in Economics. The American Economic Review, 92 (3), pp. 460-501.
4 Para uma análise da maldição do vencedor sobre a lógica da racionalidade econômica, ver: THALER, Richard (1988). Anomalies: the winner’s course. Journal of Economic Perspectives, 2 (1), pp. 191-202.
5 https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2020/10/4882968-governo-avalia-teoria-vencedora-do-nobel-para-aprimorar-ppi.html
6 A exemplo do que fez a Itália, com a criação da Consip, e como, entre nós, sugerido por Eduardo Fiúza e Bernardo Medeiros, a partir da criação de espécie de agência reguladora responsável pela normatização do tema com uma maior pluralidade de modelos. FIUZA, Eduardo e MEDEIROS, Bernardo de Abreu. ‘A agenda perdida de compras públicas: rumo a uma reforma abrangente da lei de licitações e do arcabouço institucional.’ Texto para discussão no 1990; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2014.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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