iNFRADebate: Lei nº 14.230/2021 – uma tentativa de se colocar o instituto da improbidade administrativa no seu devido lugar

Diogo Albaneze Gomes Ribeiro*

Entrou em vigor no dia 26/10/2021 a Lei nº 14.230/2021, que altera diversos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa (“Lei nº 8.429/92” ou “Lei de Improbidade”). Trata-se de alterações que buscam, em última análise, trazer mais racionalidade ao instituto da improbidade administrativa e, consequentemente, conferir maior segurança jurídica às pessoas que se relacionam com a Administração Pública.

Como se sabe, o instituto da improbidade administrativa se caracteriza como sendo uma infração extrema ao ordenamento jurídico, não se configurando pela mera atuação defeituosa do agente1. Trata-se de premissa importante, pois o instituto não nasceu para punir o agente público inábil, mas sim aquele que atua de forma consciente e orientada a incorrer em alguma violação da ordem jurídica com falta grave, ocasionando (i) um enriquecimento ilícito, (ii) um prejuízo ao erário ou (iii) um atentado contra princípios2. Isso não significa dizer que os agentes públicos que atuem de forma defeituosa não possam ser punidos, mas apenas que tais condutas não se confundem, necessariamente, com improbidade administrativa. 

No entanto, essa premissa vinha sendo deixada de lado. Muitos agentes públicos e empresas contratadas pela Administração Pública figuraram ou ainda figuram como réus em ações de improbidade por conta de fatos e/ou atos que efetivamente não deveriam configurar improbidade administrativa. Muitas foram as empresas privadas que se defenderam em ações de improbidade pelo simples fato de terem se sagrado vencedoras em licitações que, posteriormente, entendeu-se haver vícios na fase interna da licitação – fase essa em que os particulares não possuem qualquer ingerência.  

A verdade é que se relacionar com a Administração Pública, por conta dessa deturpação do instituto da improbidade administrativa, tornou-se uma atividade de risco – o que, lamentavelmente, serviu apenas para aumentar a insegurança jurídica e afastar da Administração Pública empresas e profissionais sérios.

Diante dessa realidade, não podemos deixar de enaltecer as recentes alterações incorporadas pela Lei nº 14.230/2021 que, longe de dificultar a punição ou a investigação dos atos de improbidade, trazem muito mais racionalidade e razoabilidade ao instituto. 

Dentre essas alterações, destacamos a exclusão das condutas culposas como caracterizadoras de ato de improbidade, alteração essa que vai ao encontro da premissa de que a improbidade administrativa não nasceu para punir o agente público inábil, mas sim aquele que atua de forma consciente e orientada a incorrer em alguma violação da ordem jurídica. 

Pela atual sistemática, consideram-se atos de improbidade administrativa apenas as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade, conceituando-se o dolo como sendo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado.

A partir dessa premissa, o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

Como decorrência, a Lei de Improbidade passa a exigir que a petição inicial, além de individualizar a conduta dos réus, seja instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado. Passou-se, portanto, a exigir um esforço adicional na instrução da petição inicial (nada mais adequado, considerando a gravidade das penas previstas na Lei de Improbidade).

Outra importante inovação se refere ao ressarcimento dos danos efetivamente causados à Administração Pública. Já havia na Lei de Improbidade uma sistemática prevendo que a lesão ao patrimônio público e o enriquecimento ilícito ensejariam a condenação do agente ao ressarcimento dos danos ou a reversão dos bens e valores ilicitamente adquiridos, conforme o caso. 

No entanto, a nova Lei traz um esclarecimento de extrema importância: destaca que deverão ser descontados do valor do ressarcimento o montante correspondente aos serviços efetivamente prestados (art. 18, § 3º, da Lei de Improbidade). Essa regra decorre de premissas já consolidadas no nosso ordenamento jurídico, previstas na Lei de Licitações3 e no princípio da vedação ao enriquecimento sem causa4.

Outro aspecto importante se refere ao pedido de indisponibilidade de bens, a fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito. Pela sistemática que vigorava até então, bastaria a existência de indícios de responsabilidade para que o Poder Judiciário estivesse autorizado a adotar medida extrema, consistente na decretação de indisponibilidade de bens das pessoas envolvidas – já que a urgência (ou o perigo de dano) era presumida.

Pela atual sistemática, acrescentou-se a necessidade de demonstração de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo para o deferimento da medida de indisponibilidade de bens. Nada mais adequado. Afinal, se o processo ainda não se encerrou (de modo que o seu resultado se mostra incerto) e se não há indícios de que o resultado útil do processo poderá ser comprometido, a decretação da indisponibilidade de bens dos réus, além de desproporcional, fere o princípio da presunção de inocência. A aplicação do princípio in dubio pro societate apenas se justifica, na nossa visão, quando se configura o risco ao resultado útil do processo.

A Lei nº 14.230/2021 ainda inovou em aspectos processuais, acabando com a chamada defesa prévia – apresentada antes do recebimento da petição inicial. Pela nova sistemática, se a petição inicial estiver em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará de imediato a citação dos requeridos para que apresentem contestação no prazo comum de 30 dias.

A nova legislação também buscou dar efetividade ao princípio da razoável duração dos processos, ao impor que o inquérito civil instaurado para apuração de atos de improbidade seja concluído no prazo de 365 dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período, mediante ato fundamentado. Encerrado o prazo para a conclusão do inquérito civil, a ação deverá ser proposta no prazo de 30 dias, se não for caso de arquivamento do inquérito civil. Deu-se, portanto, um mínimo de previsibilidade temporal ao andamento dos inquéritos civis instaurados. 

No que tange à prescrição das sanções, o prazo passou a ser de oito anos, contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência, sendo que a instauração de inquérito civil suspende o prazo prescricional por até 180 dias corridos até a conclusão das investigações. Além disso, consignou-se as seguintes hipóteses de interrupção da prescrição: (i) pelo ajuizamento da ação; (ii) publicação da sentença condenatória; (iii) publicação do acórdão que confirme a sentença condenatória; e (iv) pela publicação de acórdão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e/ou STF (Supremo Tribunal Federal) que confirme a condenação ou reforme a improcedência. Também a prescrição intercorrente passou a ser expressamente prevista na Lei de Improbidade, que poderá ser decretada de ofício caso transcorridos quatro anos de cada marco interruptivo da prescrição. 

Veja-se que a nova legislação procurou, em diversos momentos, prestigiar não apenas a razoável duração dos processos, mas também a previsibilidade temporal de cada etapa processual – o que é digno de nota.

Outro aspecto relevante da Lei nº 14.230/2021 se refere à previsão expressa de condenação em honorários sucumbenciais em caso de improcedência da ação de improbidade se comprovada má-fé – sendo que, pela atual sistemática, a legitimidade para o ajuizamento da ação de improbidade passou a ser exclusiva do Ministério Público (art. 17 da Lei de Improbidade). 

Para além de outras alterações relevantes, não tratadas neste artigo, verifica-se que as alterações incorporadas na Lei de Improbidade são importantes e certamente contribuirão para aumentar a segurança jurídica nas relações firmadas com a Administração Pública.

1 Curso de Direito Administrativo.11ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 1.125-1.126, 2015.

2 Elenco de atos configuradores de improbidade administrativa previstas nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa.

3 Art. 59 da Lei 8.666/1993: “A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos. Parágrafo único.  A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa”. / Art. 149 da Lei 14.133/2021: “A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa”.

4 Tratou-se de esclarecimento necessário. Afinal, tornou-se comum pessoas contratadas pela Administração Pública tendo de se defender em ações por improbidade administrativa dos mais variados pedidos, inclusive de devolução da integralidade da remuneração recebida por conta de serviços efetivamente prestados. O art. 18, § 3º, da Lei de Improbidade tenciona, portanto, compelir esse tipo de pretensão comumente identificada nas ações por improbidade administrativa.
*Diogo Albaneze Gomes Ribeiro é advogado, doutorando e mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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