iNFRADebate: Infraestrutura em serviços essenciais – como compatibilizar competição hoje com investimento futuro?

Marcelo Araújo*

Compartilhar ativos de infraestrutura de forma voluntária ou mandatória é um tema cada vez mais relevante no Brasil, onde os investimentos atrofiados da última década trouxeram à tona gargalos em vários setores, comprometendo o crescimento econômico. O dilema que se põe é: provocar o compartilhamento para terceiros de uma infraestrutura existente forçando mais competição no curto prazo ou estimular que os agentes de mercado façam novos investimentos proporcionando crescimento e competição ainda mais eficiente a médio prazo?

Não tem resposta simples. A questão vem sendo discutida há décadas nos Estados Unidos e Europa, principalmente, mas também no Brasil, onde diferentes casos estão atualmente em avaliação nas agências reguladoras e no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Em recente artigo, Guilherme Resende, economista-chefe do Cade, traz importantes contribuições à discussão, alertando para o risco de decisões com viés de curto prazo afetarem o crescimento por muitos anos. Com ele concorda Michael Diathesopoulos, da Universidade de Cambridge, em seu paper seminal Essential Facilities Doctrine de 2010, onde conclui que o compartilhamento de acesso indiscriminado e sem segurança jurídica reduz os estímulos a investir em expansão, modernização e desenvolvimento. 

O primeiro e mais simples quesito a analisar é se a infraestrutura pode ser replicada por outros interessados. Se sim, nada mais eficiente que cada player desenvolver seu projeto, dimensionando-o de acordo com sua estratégia, ambição de mercado e capacidade financeira, ou mesmo se consorciando com outros atores de forma a tornar ainda mais eficiente e flexível a logística ou a cadeia produtiva, com benefícios diretos para os consumidores. 

Um segundo ponto, já não tão simples, ocorre quando uma relevante infraestrutura implantada dispõe de capacidade para atender a totalidade da demanda por muitos anos à frente, o que pressupõe certa ociosidade atual. Poderia ser argumentado facilmente que a construção de novas instalações seria uma má alocação de capital, não importa se público ou privado, já que não traria tantos retornos quanto recursos aplicados em locais de maior necessidade ou gargalos.

Nesse caso, se essa infraestrutura é dominada por um player monopolista, ele estaria destinado a abocanhar praticamente todo o mercado potencial futuro, com baixo estímulo para praticar preços e serviços mais competitivos a seus clientes. Deveria então o regulador obrigar o proprietário, que provavelmente planejou por anos e correu riscos de execução e de mercado para construir sua instalação e conquistar seus clientes, a permitir acesso a terceiros interessados? 

A resposta não parece tão óbvia, cabendo análise mais profunda não só dos aspectos do caso em si, como as particularidades de operadores logísticos independentes, investidores com carga própria ou ainda infraestruturas logísticas integradas a arranjos produtivos. Mas urge ainda observar o contexto mais amplo, não perdendo de vista o fato que a infraestrutura atual é deficitária em grande parte dos setores-chave da economia, em especial quando se trata de setores de elevadíssima escala física, como energia, telecomunicações, commodities agrícolas, minerais e combustíveis. 

Em recente e destacado trabalho sobre o impacto do ambiente regulatório na atração de investimentos, a pesquisadora Katia Rocha, do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), conclui que a infraestrutura inadequada é uma das principais barreiras ao crescimento e ao desenvolvimento econômico brasileiro, impactando na criação de empregos, acesso ao mercado, saúde, educação e redução da pobreza e desigualdade, e nos orienta que quanto melhor a qualidade regulatória do país, ou seja, quanto maior a clareza e a estabilidade, maior o volume de investimentos e o número de projetos com participação privada em infraestrutura.

Nossa regulação, ainda incipiente em vários aspectos, tem buscado evoluir, mas com dificuldades. Os marcos legais de energia, portos, ferrovias ou de petróleo por exemplo, não são explícitos quanto a quais e com que critérios ativos devem ser compartilhados, obrigando as agências reguladoras destes setores a interpretarem casos específicos ou publicar resoluções sobre o tema, muitas vezes divergentes e se sobrepondo a projetos que tramitam no Congresso ou discussões de caso no âmbito do Cade. 

Tome-se o caso recente da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), que, provocada principalmente por agentes desejosos de utilizar infraestrutura existentes, iniciou a revisão da antiga resolução 251/2000 em processo que se mostrou bastante complexo pela quantidade de contribuições com diferentes pontos de vista recebidas e mesmo pela dificuldade de análise de impacto regulatório mais conclusiva. Resultou daí a recém-publicada Resolução ANP 881/2022 que, ainda que focada em terminais marítimos e com um processo bem conduzido, suscitou dúvidas e pedidos de adiamento por parte da ABTP (Associação Brasileira dos Terminais Portuários) e do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás), o que tende a sobrecarregar o setor com novas demandas de informações e adaptações de contratos e risco de divergir da interpretação da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) em pontos específicos.

Diante de dificuldades como essa, e na tentativa de deixar o marco regulatório mais claro, o Ministério da Economia propôs então o Projeto de Lei 2.316/2022, que traz pontos positivos importantes, mas, talvez influenciado pelo momento inflacionário atual, é ainda claramente dirigido a estimular o compartilhamento da infraestrutura existente na tentativa de ampliar a competição. Esse aspecto do projeto é bom em tese, mas resulta omisso no que diz respeito a garantias legais que deem segurança a novos investimentos e não apresenta critérios claros para caracterizar ativos que devam de fato ser compartilhados, transferindo novamente o problema às agências.

Podemos aqui aprender com caso entre MCI Communications Corp. versus American Tel. & Tel de 1983, que simboliza para muitos autores a consolidação da doutrina de essential facility. Adaptando à realidade brasileira, para ativos pertencentes a único agente autorizado e localizado em ponto onde é inviável, técnica ou fisicamente, a instalação de outros ativos, poderíamos propor como requisitos de acesso: a existência de capacidade ociosa na infraestrutura, a viabilidade técnica do compartilhamento, a garantia da continuidade do abastecimento e o respeito aos contratos estabelecidos.

De todo modo, é clara a necessidade de um regramento legal amplo, transversal aos diferentes setores, que estabeleça critérios fundamentais para melhor caracterizar os eventuais ativos considerados essenciais para fins de análise de compartilhamento mandatório, sempre em caráter de excepcionalidade. Isso tornaria o desdobramento regulatório mais previsível, mitigando incertezas para novos investimentos e acelerando a retomada de nosso crescimento.

*Marcelo Araújo é diretor-executivo Corporativo e Participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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