iNFRADebate: Governo, TCU, Cade e ANTAQ demandam preço-teto nos portos

Osvaldo Agripino*

As decisões recentes do Governo Federal, dentre as quais o veto do presidente Bolsonaro, a pedido do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e do secretário de Portos, Diogo Piloni, ao trecho do PLV 30/2020 (minirreforma portuária), convertido na Lei 14.047/2020, que retirava a “garantia da modicidade” nas tarifas dos terminais arrendados e nos preços dos TUPs (terminais de uso privado), que consta na Lei 12.815/2013 (Lei dos Portos); e as do TCU (Tribunal de Contas da União) e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), no julgamento da legalidade do SSE (Serviço de Segregação e Entrega), com menção à Resolução Normativa 34/2019, da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), apontam para a irreversibilidade da criação da metodologia price cap nos serviços portuários. 

No caso da minirreforma acima, ao acolher pedido da Logística Brasil e de outras entidades de defesa dos usuários, como a Usuport e o Cecafé, e de vários congressistas da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), o ministro Tarcísio opinou pelo veto ao dispositivo que modificava o art. 3º, II, da Lei dos Portos, retirando o jabuti exótico que havia sido incluído na MP (Medida Provisória) 945/2020, no Congresso Nacional, com as seguintes razões:

A proposição legislativa, ao alterar o dispositivo retirando a previsão de modicidade dos preços cobrados pelas instalações portuárias, passando a fazer alusão somente à modicidade para as tarifas praticadas no setor, efetua alteração perene à Lei nº 12.815, de 2013, não restrita ao momento de combate à pandemia, tendo potencial de causar uma oneração excessiva para aqueles que utilizam as instalações portuárias como meio logístico para a movimentação de suas cargas, sejam elas destinadas à cabotagem ou ao comércio exterior, principalmente àqueles que não detêm o controle da operação de terminais portuários, sujeitos às políticas de preços, o que tornaria sua logística não competitiva frente a outros mercados com o aumento dos custos.

Apesar da manutenção da garantia da modicidade no texto da lei, até hoje pouco aplicada, parcela dos usuários sabe que o papel aceita tudo, portanto, é preciso fazer com que a modicidade, efetivamente, “saia do papel”. Sem isso o usuário nunca terá o “serviço adequado” que se encontra on paper, na Constituição Federal e nos normativos da ANTAQ. Uma das formas é via preço-teto.

Obviamente que o preço-teto não é um tema de fácil digestão pelos prestadores de serviço, portanto, haverá forte reação e, eventualmente, a judicialização por parte daqueles que o consideram uma “pedra no caminho”. Afinal, ele pode colocar em risco as metas de remessas para as matrizes localizadas no exterior.

A ferramenta price cap é usada há cerca quarenta anos em países que tiveram a sua infraestrutura privatizada, mas, ironicamente, ainda não é aplicada no setor portuário regulado pela ANTAQ, embora várias decisões já apontem pela imprescindibilidade do seu uso, especialmente pela opção do regime de liberdade de preços, decisões do TCU e externalidades negativas de um modelo ex post, com poder dissuasório ineficaz, muita concorrência imperfeita e assimetrias de informação.  Recentemente, um operador portuário, depois de seis reincidências, foi condenado a pagar uma multa de R$ 820 mil porque se recusou a devolver R$ 3 mil cobrados ilegalmente de um usuário.

A urgência da criação do preço-teto decorre da falha de mercado decorrente da concentração e a verticalização no mercado de contêineres, da ausência de regulação econômica eficaz e da pouca (quase inexistente) participação social dos usuários, se comparada à dos prestadores de serviços, que possuem relações contratuais com a ANTAQ e maior proximidade. 

Por tais motivos, o indicador de qualidade dos portos do Banco Mundial, em pesquisa feita junto aos executivos de 133 países acerca dos portos no mundo, classificou o Brasil com nota 2,7, numa escala que vai de 1 até 7, sendo esta última uma nota para país com portos desenvolvidos e eficientes.

Outros países da América do Sul, como Paraguai (3,1), Argentina (3,8), Colômbia (3,6), Peru (3,6) e Chile (4,9), tiveram notas bem melhores. Na outra ponta, a Holanda, por exemplo, teve nota 6,8.  Em qualidade de infraestrutura portuária, o Global Competitiveness Report 2017-2018, do Fórum Econômico Mundial, coloca o Brasil em 106º lugar.

Os usuários só começaram a “acordar” e a se mobilizar a partir de 2013, em face das expectativas frustradas de redução de custos da retórica do investidor privado no pós-reforma portuária, que editou a Lei 12.815. Ao contrário, tem-se verificado aumentos abusivos, com terminais cobrando Gris (Gerenciamento de Risco) de 0,5% sobre o valor CIF da carga, e armazenagem ad valorem, em alguns casos em quantia superior a duas vezes o valor CIF da mercadoria, tal como um terminal que cobrou R$ 5,6 milhões para cerca de  250 dias para cada um dos 12 contêineres, com valor total CIF da carga de R$ 2,8 milhões.

Sobre esse fenômeno e problema de concentração e verticalização, que vem chamando a atenção dos especialistas, recomendo a leitura do artigo Defesa da concorrência e verticalização portuária, publicado em 17 de junho de 2020, em coautoria com Maicon Rodrigues na Revista de Defesa Concorrência, v. 8, n. 1, 2020, com 205 downloads. Disponível no site do Cade

Voltando ao sistema “preço máximo” ou simplesmente price cap,  trata-se de uma forma de regulação desenvolvida na década de 80, no Reino Unido,  criada pelo economista Stephen Littlechild. Desde então, ela vem sendo aplicada em todos os serviços essenciais (“utilities”) britânicos privados e em vários países do mundo. Ela se contrapõe à regulação de taxa de retorno, na qual as empresas determinam uma taxa de retorno sobre o capital, bem como a regulação com base no Custo Marginal – onde o lucro é totalmente regulado. 

Sobre o tema recomendo: KESSIDES, Ioannis. Reforming Infrastructure Privatization, Regulation, and Competition – A World Bank Policy Research Report. Oxford University Press, 2004.

Em sistema com liberdade de preços, de um lado, como o adotado pela ANTAQ no setor portuário, é imprescindível o preço-teto, do outro lado, sob pena de excesso de judicialização e prejuízo do usuário desse setor, em face de inexistência de ferramenta eficaz para o regulador combater o abuso.

No caso brasileiro, isso se dá porque, apesar da retórica de “que há forte concorrência” ou que “esse é um mercado competitivo, portanto, é melhor deixar o próprio mercado regular” (tema sobre o qual já me manifestei) por parte de algumas entidades prestadoras de serviços, esse argumento não se sustenta diante dos fatos e dos números adiante apresentados. 

Quando analisamos os números da ANTAQ e o IHH (Índice de Concentração Horizontal), adotado pela Divisão Antitruste dos EUA, superior a 3.500 em vários mercados relevantes de contêineres, como os de SP, SC, RS, BA e PE, quando o ideal é 1.500, verifica-se que não há política de defesa da concorrência por parte da ANTAQ, que tem se recusado, inclusive, a enviar para o Cade casos onde há evidências de condutas antitruste, conforme exige o art. 31 da Lei da ANTAQ.

Além disso, apesar do aumento de investimentos no setor portuário e das operações de contêineres nos terminais de uso privado, desde a edição da Lei dos Portos, a concentração e a verticalização, assim como o rent-seeking (conduta oportunista) e as assimetrias de informação, como o THC “rachadinha”, “legalizado” pela Resolução 2.389/2012 e mantido na RN 34/2019, apesar dos alertas da Usuport-RJ, atual Logística Brasil, não reduziram os custos logísticos dos usuários. 

As externalidades negativas continuam, afetando sobremaneira as pequenas e médias empresas que possuem participação irrisória no comércio exterior, ao contrário de outros países, assim como o enriquecimento sem causa e as evidências de sonegação fiscal de ISS e de IRPJ por parte do armador e do seu agente intermediário na cobrança do THC, tendo a Prefeitura do Rio de Janeiro já autuado um grande armador.

Por tais motivos, a ANTAQ, criou o preço-teto na RN 34, no artigo 9º, parágrafo único, que assim dispõe:

(…) 

Parágrafo único. No caso em que restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal na cobrança do SSE, a ANTAQ poderá estabelecer o preço máximo a ser cobrado a esse título, mediante prévio estabelecimento e publicidade dos critérios a serem utilizados para sua definição.

Atenta às decisões do TCU e do Cade, especialmente do seu superintendente-geral, e à decisão recente por seis votos a favor da competência do Cade para combater os abusos da SSE, apesar da edição da RN 34, contra um voto, e crescente judicialização do problema, vez que os abusos continuam, apesar da edição da citada norma em agosto de 2019, o voto da ex-diretora da ANTAQ, Gabriela Costa, no processo que trata de regular o preço-teto da RN 34, fez uma opção regulatória adequada, a fim de incluir o preço-teto não somente para a SSE, mas a todas as rubricas portuárias de terminais de contêineres. Vejamos:

52. Conforme se depreende do Relatório de AIR, pretende-se criar uma metodologia geral de  análise de abusividade (preços excessivos e preços excludentes) voltada para todas as rubricas de terminais de contêineres, em especial para aqueles fornecimentos inerentes e complementares relacionados ao THC e aqueles não cobertos pelo THC, complementando a proposta contida no Processo nº 50300.002175/2018-82.

53. Infere-se também que todos os serviços prestados pela instalação portuária poderão ser objeto de análise de abusividade e de estipulação de preço-teto a posteriori. (…)

Isso se dá, porque os abusos nesse mercado, que vão muito além da cobrança do SSE  por terminais de contêineres, prejudicam não somente os usuários, mas os terminais retroportuários (zona secundária), especialmente em Santa Catarina. Dentre tais abusos, podemos citar a cobrança do scanner ou INI (inspeção não invasiva), uma jabuticaba brasileira, pois no mundo desenvolvido, conforme constatada pelo próprio Minfra (Ministério da Infraestrutura), essa cobrança é feita pela Autoridade Aduaneira, e armazenagem portuária por terminais verticalizados, com casos de aumentos de cerca de 750% nos seus preços, em dez anos, dez vezes a inflação acumulada, dentre várias outras.

Nesse cenário, cabe destacar que o voto acima está alinhado com os temas 3.1. e 3.5. da Agenda Regulatória da ANTAQ para o biênio 2020-2021, adiante transcrito, e que demandarão a participação dos usuários para que haja equilíbrio na regulação das matérias:

Tema 3.1 – Padronização das rubricas dos serviços básicos prestados pelos terminais de contêineres e definição de diretrizes acerca dos serviços inerentes, acessórios ou complementares. Processo: 50300.006552/2018-52. Status: Finalizada a consultoria externa. A minuta de Resolução Normativa está em fase final de elaboração, devendo ser em breve apreciada pela Diretoria Colegiada e submeta aos mecanismos de participação social.

(…)

Tema 3.5 – Definição de conceitos e indicadores de prestação de serviço adequado nos portos organizados e instalações portuárias. Processo: 50300.002578/2015-89. Status: Na subdivisão dos trabalhos, as definições e os conceitos já foram concluídos. Em desenvolvimento a construção pela SDS da sistemática de apuração de indicadores. (…)

Por fim, como se estivessem prevendo o futuro, diante dos abusos permitidos pela ANTAQ ao longo desses sete anos de vigência da Lei dos Portos, por respeito ao marco regulatório ou temor de criar um precedente com a denúncia de algum usuário à ANTAQ, ao Cade ou ao TCU, verifica-se que alguns terminais molhados “estão cedendo” e buscando acordo após exaustiva negociação.

De qualquer forma, é relevante que os usuários e os terminais retroportuários, assim como os aqueles terminais não verticalizados, participem ativamente das inovações regulatórias que envolvem o preço-teto.

O uso dessa ferramenta é uma condição necessária, mas não suficiente, per se, para que haja serviço adequado, especialmente pela condição da modicidade, ainda “letra morta” no setor portuário, apesar dos esforços da ANTAQ, que insiste no modelo ex post. Trata-se de um direito que vem sendo sonegado pelo Estado brasileiro, com exceção dos órgãos de controle e Autoridade Antitruste, desde muito antes da edição da Lei dos Portos.

*Osvaldo Agripino é advogado, sócio do Agripino & Ferreira,  Senior Fellow, Kennedy School of Government, Harvard University.
Nota da redação – O Ministério da Infraestrutura enviou uma nota à Agência iNFRA respondendo a este artigo e negando que “defenda ou trabalhe em prol de uma fixação de preços-tetos a todo o setor portuário”. A íntegra da nota pode ser lida neste link.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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