iNFRADebate: Free flow vai dividir conta do pedágio de forma muito mais justa e reduzir custo de tarifas

João Cumerlato* e Carlo Andrey**

A recente sanção da lei 14.157/2021, instituindo a cobrança de pedágio em regime de free flow no Brasil, ou, em sua tradução legislativa, de “livre passagem”, é o motor legal de uma revolução na cadeia de transportes e nas rodovias do país. A lei que viabiliza a cobrança de pedágio por trecho percorrido com o uso do pagamento eletrônico vai torná-lo muito mais justo para todo mundo e permitir a médio e longo prazos uma diminuição de 20 % a 30% no valor das tarifas, a redução do custo Brasil e o aumento da competividade do setor produtivo.  

O novo modelo já vai valer para as novas concessões federais e estaduais, mas deve chegar às atuais concessões na medida em que os contratos em vigor sejam repactuados caso a caso, de maneira a remunerar adequadamente os investimentos exigidos para substituir as praças de pedágio existentes por pórticos com sensores para ler os tags eletrônicos instalados nos veículos. Na prática, o pedágio que banca a qualidade das melhores rodovias brasileiras não vai ficar apenas nas costas dos usuários de longa distância, passando a ser repartido com o tráfego urbano e intermunicipal de curta distância, que hoje nada paga pelas razões erradas. 

O free flow permite a instalação de muitos pórticos de cobrança a poucos quilômetros entre si (ou pórticos nas entradas e saídas das rodovias), de forma que o pedágio pode ser cobrado por trecho percorrido. Quem percorre a estrada inteira paga o correspondente à extensão da rodovia, mas quem se desloca de uma cidade para outra por 30 km paga só por esse percurso. Isso é inviável com as atuais praças de pedágio e, na prática, a cobrança é desproporcional, feita por lotes maiores de rodovia, mesmo que o veículo saia poucos quilômetros adiante.  

A rodovia de maior movimento do país é um caso exemplar de impossibilidade de cobrança justa. Na via Dutra só 10% dos usuários pagam 100% dos custos e bancam os 90% que trafegam sem pagar entre as praças de pedágio, que, por sua vez, representam cerca de 30% do custo de operação das rodovias (construção e manutenção, pessoal, sistemas de cobrança e transporte de valores). Os pontos críticos são os centros urbanos conurbados que usam a estrada como ligação entre bairros, como São Paulo e Guarulhos, o Vale do Paraíba ou as cidades na ponta do Rio de Janeiro. O fluxo intraurbano exige a construção e manutenção de centenas de quilômetros de marginais e o provimento de serviços ao usuário. Não é barato, não sai de graça e nem do orçamento das cidades beneficiadas pelas rodovias. Sai do bolso de quem cruza por uma praça de pedágio. 

A verdade é que boa parte da conta recai sobre o transporte de carga, usuário frequente de longos trechos, e isso é um gigantesco custo Brasil. Todos nós perdemos, porque o custo de logística está no preço de cada item na gôndola de um varejista e nos insumos para fabricá-lo. Quem ganha é o dono de veículos que trafega sempre por trechos curtos sem cobrança.  

Para que a cobrança do pedágio seja justa, é preciso ter mais pontos de cobrança, e não menos, mas com valores bem menores, e ampliar dramaticamente o número de pagantes. O free flow é como uma “reforma fiscal” nas rodovias brasileiras, de forma a garantir que a cobrança seja proporcional ao trecho trafegado e que a repartição da conta do pedágio tenha valor menor e justo. Se todos pagam, todos pagam menos.  

Uma vantagem notável do Brasil é que temos um modelo de pagamento eletrônico de pedágio que é estado da arte no mundo. Ele tem investimento totalmente privado e forte regulação do governo, garantindo que um motorista com um único tag, de qualquer operadora, possa cruzar o país sem nem mesmo saber qual a concessionária da rodovia, graças a um sistema de leitura padronizado e altíssima segurança nas transações. 

Há ainda um ganho despercebido importante com a generalização do pagamento eletrônico associado ao free flow. Num caminhão grande, o tag economiza em combustível para o caminhoneiro algo como um 13º salário no ano, pelo simples fato de o veículo pesado não precisar parar para pagar e reacelerar do zero, bem como dois dias no ano numa rota como Ribeirão Preto-Santos (nove pedágios). Individualmente, os motoristas de carros de passeio peso-pluma ganham tempo e uma pequena economia de combustível, mas o tamanho da oportunidade fica claro se projetarmos as duas vantagens para o conjunto de 1 bilhão de veículos leves que cruzam os pedágios anualmente. Vai haver também uma redução consistente na emissão de poluentes causada pela circulação de pessoas e mercadorias nas estradas, diminuindo a pegada de carbono da nossa cadeia de transporte rodoviário. 

Daqui até que o free flow vire realidade, o pedágio vai continuar um pagamento feito frequentemente com a sensação de que deveria ser mais barato. Além do mais, quem usa pouco estradas historicamente acha caro o conforto da pista automática e prefere a cancela manual. Estes formam um contingente de uns 50 milhões de motoristas, cerca de sete vezes maior que o dos usuários de tags. Não se engane ao ler que metade das transações são feitas eletronicamente: estas refletem as passagens de 4 a 5 milhões de usuários frequentes, os heavy users, que já há muitos anos têm um tag colado no para-brisa, aos quais uns 2 a 3 milhões de novos usuários se juntaram recentemente, atraídos por planos muito mais baratos ou totalmente gratuitos lançados por bancos ou meios de pagamentos que, via operadores de pedágio white label, passaram a atuar nos dois últimos anos ao lado das operadoras tradicionais como ofertantes de planos de pagamento eletrônico.  

Essa redução agressiva de preços do serviço para o usuário final acontece em conjunção com uma extraordinária oportunidade regulatória: milhares de quilômetros de rodovias vão trocar de mãos nos próximos anos, já em regime de free flow, com o fim dos contratos da primeira onda de concessões rodoviárias. Isso vai acelerar a generalização de uma vantagem evidente do uso do pagamento automático: o desconto de 5% no pedágio para veículos com tag eletrônico, já praticado em SP, e o novo desconto para usuários frequentes, uma solução intermediária até a implantação do free flow para reduzir o custo mensal de pedágio para quem circula entre cidades vizinhas. 

A futura regulamentação da Lei 14.157 terá de detalhar como o pagamento do pedágio vai ser feito pelos motoristas que não aderirem ao tag eletrônico. Estes serão identificados por câmeras com leitura de placas e sensores de número de eixos, devendo haver a possibilidade de pagamentos antecipados online ou num período curto posterior à viagem, com envio de fatura ao endereço registrado no IPVA, aplicando-se multa por evasão de pedágio se o pagamento não for efetuado – vale notar: a viabilidade do free flow baseia-se no “enforcement”, a aplicação de medidas coercitivas, contra maus pagadores previsto na nova lei. Dito isso, é claro que essas duas possibilidades não serão incentivadas e terão, logicamente, tarifa maior: o custo desse sistema de adquirência (e o risco de não pagamento) recai no concessionário e é muito mais caro que o do tag eletrônico. 

Hoje a grande maioria dos motoristas paga pedágio no Brasil como no tempo em que se discutia a expansão da rede de orelhões e as pessoas tinham fichas no bolso. Com o passar dos anos e a naturalização do free flow, ficará óbvio que um regime sem praças de pedágio é incomparavelmente melhor e que não faz sentido, na segunda década do século 21, parar em pedágio e pagar exatamente do mesmo jeito que se fazia em 1996, na primeira concessão da Dutra, ou em 2000, quando o pagamento eletrônico começou.

*João Cumerlato é graduado em Processamento de Dados, com pós-graduação em Marketing e MBA pelo MIT Sloan School of Management. Sócio-fundador da Greenpass, foi responsável pela criação da ConectCar.
**Carlo Andrey é formado em Informática e Administração, e MBA pela FGV. Sócio-fundador da Greenpass, foi responsável pela criação da ConectCar.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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