iNFRADebate: Ferrovias privadas – O que esperar do novo marco regulatório?

Diogo Uehbe Lima*

Nas últimas semanas, o setor de ferrovias vem ocupando o noticiário. O tema do momento é a disciplina das autorizações para exploração de infraestrutura ferroviária sob regime de direito privado.

Se de um lado destacam-se as recentes iniciativas dos estados de Minas Gerais e Mato Grosso1, que estabeleceram regramentos próprios para esse modelo de outorga em seus territórios, de outro cresce a expectativa sobre a edição, neste mês de agosto, de medida provisória cujo texto venha a estabelecer o chamado “Novo Marco Regulatório das Ferrovias”.

O tema e os desafios envolvidos não são exatamente novos. A histórica deficiência e o sucateamento da malha ferroviária nacional já compunham o contexto que, em 2018, ensejou a apresentação do PLS (Projeto de Lei do Senado) nº 261, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP).

Embora sua tramitação não tenha avançado no Congresso Nacional, é nítida a influência do texto do PLS nº 261/2018 no regramento das outorgas via autorização, sob regime de direito privado, tanto em Minas Gerais (Lei nº 23.748/2020 e Decreto nº 48.202/2021), quanto no Mato Grosso (Lei Complementar nº 685/2021 e Decreto nº 881/2021). Do mesmo modo, especula-se que o texto da futura medida provisória também reproduza, no plano federal, boa parte do texto do referido projeto ou pelo menos seus conceitos. Para a compreensão desse modelo, convém resgatar alguns aspectos importantes do PLS nº 261/2018.

O PLS nº 261/2018: objetivos e referências 
Inspirado na experiência dos EUA nos anos 80 com o Staggers Rail Act, o projeto foi apresentado com o propósito de promover a flexibilização da regulação do setor, viabilizando o aumento da competição e a entrada de novos players, em benefício dos usuários. 

No modelo concebido no PLS, há redução do protagonismo do Estado no direcionamento do mercado ferroviário, permitindo que o setor privado se organize e impulsione os investimentos conforme suas próprias demandas – o que tende a mitigar os riscos associados à implantação de trechos que, em um curto prazo, possam se mostrar economicamente inviáveis.

Nesse sentido, em adição às já conhecidas concessões e permissões, regidas pelo direito público, e que são tradicionalmente utilizadas nas modelagens relacionadas a modais logísticos, o projeto, com fundamento nos artigos 170 e 21, XII, d, da Constituição Federal, trouxe a possibilidade de outorga do direito à exploração de infraestrutura ferroviária via autorização, sob regime de direito privado. Trata-se de regramento que em linhas gerais se assemelha àquele estabelecido, com considerável sucesso, no setor de telecomunicações (Lei nº 9.472/1997, artigos 126 a 144).

Alguns aspectos adicionais relativos ao modelo de autorização proposto merecem atenção:

(i) processo de contratação mais simples e célere, com possibilidade de iniciativa do setor privado: o interessado pode obter a autorização a qualquer tempo, desde que formule requerimento para tanto;

(ii) possibilidade de abertura de processo de chamamento público para identificação de interessados na obtenção de autorização para exploração de trechos ferroviários ociosos;

(iii) operação em regime de liberdade tarifária, sem prejuízo à atuação dos órgãos de defesa da concorrência;

(iv) hipóteses restritivas de extinção da autorização por iniciativa do poder público, garantidos o contraditório e a ampla defesa em favor do autorizatário (ausência de precariedade);

O PLS nº 261/2018 traz ainda em seu texto original a possibilidade de criação de uma entidade privada de autorregulação, a atuar sob a supervisão da ANTT.

Os modelos de MG/MT e a expectativa com a edição da MP
Como dito, mesmo sem ter sido aprovado, o modelo do PLS nº 261/2018 terminou por influenciar consideravelmente os estados que buscaram regular a autorização para exploração, sob regime de direito privado, de infraestruturas ferroviárias estabelecidas em seus territórios. As legislações estaduais chegam a reproduzir literalmente algumas passagens do texto do projeto.

Em adição aos destaques já citados acima, elencamos abaixo os principais aspectos comuns aos textos normativos de Minas Gerais e Mato Grosso e ao projeto de lei federal:

(i) investimentos por conta e risco da autorizatária, que terá a propriedade sobre a infraestrutura implantada – bens não reversíveis;

(ii) possibilidade de transferência da autorização e alienação dos ativos a terceiros sem a necessidade de nova chamada pública/processo seletivo;

(iii) formalização da autorização por meio de contrato de adesão, que deve indicar investimentos que serão realizados;

(iv) a desativação ou a erradicação de ramais ferroviários privados que se mostrem antieconômicos não será motivo para sanção da autorizatária.

Embora parecidos, os regramentos estabelecidos pelos dois estados, para a autorização, apresentam algumas nuances.

Destaque-se que, no caso de Minas Gerais, a lei estadual foi bastante sucinta, limitando-se a prever a autorização em regime de direito privado (Lei Complementar nº 685/2021, art. 8º), sem, no entanto, discipliná-la – o que é feito no Decreto nº 881/2021. 

Se, por um lado, essa opção pode dar margem a questionamentos, por outro, facilita a eventual adaptação do regramento estadual à futura lei federal – lembre-se que o PLS nº 261/2018 apresenta uma série de normas gerais, aplicáveis, em tese, a todas as esferas da federação, sendo provável que regras semelhantes apareçam na medida provisória a ser editada.

Abaixo traçamos um breve quadro comparativo para evidenciar as principais distinções entre a disciplina estabelecida pelos estados mencionados e o regramento proposto no texto do PLS nº 261/2018:

Conclusões
É de suma importância, tanto para o mercado, quanto para o processo de evolução da infraestrutura logística do país, que haja uma regulação uniforme e segura para o modelo de exploração de ferrovias sob regime de direito privado, daí porque são grandes as expectativas em torno da edição de uma medida provisória que discipline o regime jurídico do setor.

Um dos principais desafios é justamente a consolidação de uma governança interfederativa que assegure, juridicamente e na prática, a efetiva integração entre as iniciativas dos estados e da União, tornando factível o planejamento do SNV (Sistema Nacional de Viação). Todos os textos normativos citados, em alguma medida, trazem essa questão em suas diretrizes. O PLS nº 261/2018 chega a prever que a autorização deve ser precedida de consulta ao Poder Executivo alcançado pela linha férrea projetada: a União consultaria o(s) estado(s) e, no caso das ferrovias estaduais, o estado consultaria o(s) município(s) afetado(s).

Fato é que, enquanto não se preenche a lacuna da norma federal sobre a matéria, as iniciativas dos estados vão se concretizando, a exemplo do que ocorre no Mato Grosso, que já aguarda as propostas para sua primeira chamada pública (Chamada Pública nº 001/2021), cujo objetivo é identificar os interessados na construção e exploração da ferrovia que conectará o Terminal Rodoferroviário de Rondonópolis a Cuiabá e a Lucas do Rio Verde.

Aguardemos, então, a prometida medida provisória.

1 Destaque-se que já em 2019 o estado do Pará promulgou a Lei Ordinária nº 8.909, que trata da exploração de infraestrutura ferroviária sob regime de direito privado, com a outorga formalizada por meio de autorização. Aquele modelo, no entanto, difere essencialmente daqueles que serão abordados neste artigo, pois indica expressamente o caráter precário da autorização e a possibilidade de extinção unilateral pela Administração Pública Estadual (art. 18, VII).
*Diogo Uehbe Lima é sócio de Batista, Uchida, Uehbe, Machado – Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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