iNFRADebate: Entre as faixas de domínio das rodovias e o entendimento das cortes superiores no Brasil – a racionalidade jurídica e econômica da questão

Marco Aurélio Barcelos* e Karina Lara Fera**

Em 3 de março de 2022, a Agência iNFRA veiculou instigante matéria intitulada “Para STF, o uso de faixas de domínio por concessionárias deve ser gratuito; STJ discorda”. De fato, a publicação tem por pano de fundo uma disputa crescente nos tribunais judiciais do país, a qual envolve, de um lado, múltiplas prestadoras privadas de serviços públicos (como as distribuidoras de energia elétrica, gás, operadoras de telecom e saneamento) e, de outro, as concessionárias de rodovias. É verdade que o assunto tem sido alçado à pauta das cortes superiores brasileiras, e, para melhor compreender a questão – e dialogar com os pontos levantados na matéria –, vale compartilhar alguns esclarecimentos essenciais.

Em primeiro lugar, é útil resgatar a racionalidade econômica subjacente à contenda: as empresas concessionárias mencionadas acima têm para si que não deveriam pagar pelo uso da faixa de domínio nas rodovias sob concessão, para instalarem os equipamentos relacionados aos serviços que elas exploram; alegam, em prol da gratuidade, que a cobrança oneraria os respectivos usuários, sendo certo que as atividades que prestam trariam algo de “essencial, transversal e isonômico”. Por isso, seria justo não remunerarem as concessionárias das rodovias pelo benefício que fruem, mesmo sendo as concessionárias de rodovias as responsáveis por investir e manter as faixas de domínio tão desejadas.

Pois bem, em outras oportunidades, a ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias) já havia mostrado, por meio de estudos técnicos, que sobre as suposições daquelas empresas a respeito da isenção da aludida cobrança pairam contundentes críticas. E isso porque (como reza o brocardo): “Não há, na verdade, almoço grátis”. Decerto, para que as companhias que exploram os outros serviços fruam livremente das faixas de domínio implantadas e mantidas pelas concessionárias de rodovias, alguém haverá de pagar a conta – no caso: os motoristas e transportadores que trafegam pelas vias concedidas em todo o território nacional.

E nem é difícil perceber a inevitável transferência de renda, por meio da qual os usuários de um serviço pagarão pelos demais: é que, no bojo da Lei Federal nº 8.987/95 (e, portanto, na engrenagem econômica das concessões de serviços públicos), está prevista, com todas as letras, a possibilidade de as concessionárias explorarem as denominadas receitas extraordinárias, “com vistas a favorecer a modicidade das tarifas”.

Essa regra, é claro, aplica-se às concessionárias de rodovias, para as quais, inclusive, a cobrança pelo uso da faixa de domínio por terceiros é uma das principais fontes de receitas acessórias. E, em relação a essas receitas, há hoje regulamentação que obriga que parte considerável delas reverta obrigatoriamente para a modicidade tarifária1 – a significar que: cada real arrecadado pela exploração da faixa de domínio conduz à redução da tarifa do pedágio paga pelos usuários na via.

É daí, então, que o imbróglio aparece: matematicamente, a gratuidade perquirida pelas demais empresas exploradoras de serviços públicos dá ensejo a uma espécie de subsídio cruzado entre distintas categorias de usuários – os da rodovia pagando pelos demais. Aliás, se é certo que as receitas obtidas pelas concessionárias de rodovias nas faixas de domínio beneficiam diretamente seus usuários, é difícil confirmar a reciprocidade dessa lógica quando a cobrança é impossibilitada, é dizer: os valores que as outras empresas deixam de pagar implicam a redução das tarifas que elas praticam (como em um sistema de vasos comunicantes), ou tais valores vertem para o caixa das companhias beneficiadas? Nesse caso, o subsídio impelido aos usuários de rodovias ganha contornos tanto mais problemáticos.

Tratando-se do subsídio cruzado, porém, é inevitável constatar que ele pressupõe um tratamento discriminatório melindroso entre os usuários envolvidos. Que se argumente, de um lado, que os serviços como energia e gás, por exemplo, sejam importantes. Mas não se esqueça, de outro lado, que os equipamentos necessários ao próprio provimento desses serviços, além de tantas outras mercadorias que abastecem os supermercados, farmácias, postos de gasolina etc. também transitam pelas rodovias concedidas. A parcela da modicidade tarifária que não for aproveitada, hoje, por conta da gratuidade conferida a alguns setores, estará no preço dos itens transportados nas rodovias amanhã. É tortuoso, em face disso, pretender colocar os usuários das concessões de rodovias em uma hierarquia de importância inferior à de quaisquer outras utilidades.

De mais a mais, e sob o prisma estritamente dogmático: está lá, escrito na lei. A cobrança das receitas acessórias é medida admitida no âmbito dos contratos de concessão. E, quando tal previsão constar desses instrumentos, a cobrança será juridicamente válida e admissível. É esse, pois, o entendimento – mais do que razoável – que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) vem sedimentando em seus julgados. Como reconhece o Superior Tribunal de Justiça, a Lei de Concessões, publicada posteriormente ao Decreto nº 84.398/1980 (Código de Águas), autoriza a cobrança das receitas alternativas – dentre as quais a contraprestação pelo uso de faixa de domínio –, vinculando tais verbas em favor da modicidade tarifária e beneficiando os usuários.

Desse posicionamento, a propósito, não discorda o STF (Supremo Tribunal Federal). O que ocorre é que, nos casos submetidos à Corte Suprema, as abordagens (e os paradigmas adotados na análise dos ministros) têm sido outras. O Tema nº 261, por exemplo, vinculado ao RE 581.947, diz respeito à inconstitucionalidade de leis locais que instituem a cobrança de taxa (que é espécie de tributo) sobre o uso das faixas de domínio de rodovias sob a gestão pública (isto é, não concedidas). E, especialmente para o setor de energia, os recentes precedentes nas ADIs 3763 e 3798 estão amparados em ratio decidendi semelhante: a incompetência dos estados para legislar sobre matéria de energia elétrica, de competência da União.

Em nenhum processo está se avaliando a questão das receitas acessórias em um contrato de concessão, tampouco a validade da Lei Federal nº 8.987/95, muito menos se está emitindo qualquer juízo de valor quanto à suposta ordenação hierárquica proeminente que, por exemplo, os usuários do serviço de distribuição de energia elétrica teriam em face dos utentes das rodovias. O que o Supremo fez, sempre, foi afastar as cobranças criadas nas rodovias por força das regras constitucionais de competência legislativa interfederativa (e não discutir sobre a possibilidade, ou não, da cobrança propriamente dita em contratos concessórios).

É claro, todavia, que um pronunciamento tout court do Supremo Tribunal Federal quanto à plena aplicabilidade do art. 11 da Lei de Concessões2 (que, de resto, nunca teve a sua constitucionalidade questionada), e o reconhecimento dos efeitos econômicos deletérios que o subsídio cruzado perseguido pelas demais empresas prestadoras de serviços públicos (com a consequente discriminação distorcida de usuários) acarreta, não faria mal a ninguém. Basta, para isso, que a questão, em si, seja devidamente colocada e apreciada pela Excelsa Corte, com os recortes processuais adequados. Em tempos de farinha pouca, meu pirão primeiro, não há dúvidas de que a costumeira racionalidade dos ministros do Supremo viria muito bem a calhar.

1 Veja-se, nesse sentido, a Resolução ANTT nº 2.552, de 14/02/2008, em especial o seu art. 4º, que contempla um regime bem rigoroso a respeito da questão, inclusive. O dispositivo prescreve que 85% das receitas extraordinárias líquidas arrecadadas pelas concessionárias de rodovias têm de reverter para a modicidade tarifária.
2 Relembre-se o que diz o art. 11 da Lei de Concessões: “Art. 11. No atendimento às peculiaridades de cada serviço público, poderá o poder concedente prever, em favor da concessionária, no edital de licitação, a possibilidade de outras fontes provenientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, com ou sem exclusividade, com vistas a favorecer a modicidade das tarifas, observado o disposto no art. 17 desta Lei”.
*Marco Aurélio Barcelos é diretor-presidente da ABCR (Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias) e doutor em Direito pela USP.
**Karina Lara Fera é diretora-jurídica da ABCR.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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