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iNFRADebate: Contabilidade regulatória no setor de saneamento básico – a que será que se destina?

Mauricio Portugal Ribeiro*1

Foi publicada em julho de 2020 para consulta pública a minuta do documento “Procedimentos Contábeis Regulatórios do Saneamento Básico para Agências Reguladoras Intermunicipais e Municipais” (vou chamá-lo de agora em diante de “PCR”), assinado pelas seguintes agências reguladoras municipais e intermunicipais: Aris (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento), Agir (Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Vale do Itajaí), Ares-PCJ (Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), Agesan-RS (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento do Rio Grande do Sul) e Arisb-MG (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento Básico de Minas Gerais).

O documento é uma compilação de conceitos e considerações sobre temas em torno da contabilidade societária, pública e regulatória, sem deixar claro seus objetivos e impactos normativos. Reúne uma série de generalidades sobre o tema sem ao final definir claramente qualquer exigência contábil para os seus regulados. Parece mais uma apostila para um curso introdutório sobre o tema do que um documento com fins normativos. Enfim, um profissional de infraestrutura que recorra ao PCR buscando entender que exigências contábeis – adicionais às legais ou às já existentes nos seus contratos – os regulados das aludidas agências devem cumprir termina a leitura do documento sem saber muito bem a que ele se destina. Definitivamente, o PCR não estabelece qualquer procedimento contábil regulatório como o título faria supor.

Claramente, não se seguiu na elaboração do PCR as exigências mínimas de racionalidade para a geração de documentos desse tipo, que seriam as seguintes:

(1) estabelecer os objetivos da regulação que as agências pretendem fazer, considerando os limites aos seus poderes impostos por lei e por cada contrato (isso por si só talvez já inviabilize que diversas agências produzam um único documento sobre contabilidade regulatória, pois é possível que existam diferenças importantes nos contratos que cada uma regula2). Os objetivos da regulação estão intrinsecamente relacionados ao modelo regulatório adotado. Por exemplo, os objetivos em uma regulação discricionária a posteriori, nos moldes do que se faz no Brasil sobre as empresas estatais de saneamento (nas quais o valor dos investimentos efetivamente realizados é usado como um dos principais insumos para cálculo da tarifa nas revisões ordinárias do contrato seguintes à sua realização) são completamente diferentes dos objetivos da regulação por contrato de uma concessão privada de saneamento cujo equilíbrio econômico-financeiro seja definido por um fluxo de caixa descontado, anexado ao contrato de concessão e para qual o valor efetivo dos investimentos em regra não é relevante, uma vez que a variação entre o valor estimado dos investimentos e o efetivo é em regra risco assumido pelo concessionário.

(2) definir se serão necessárias informações adicionais às já providas pelos regulados que poderiam contribuir para atingir os objetivos regulatórios estabelecidos pelo regulador. Os contratos de concessão e PPP no Brasil geralmente exigem que a concessionária seja uma SPE (Sociedade de Propósito Específico), que siga regras contábeis aplicáveis a empresas listadas em bolsa, que seja auditada por auditores habilitados pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para auditar empresas abertas e que disponibilizem periodicamente seus balanços e demonstrações financeiras auditadas para os reguladores. Isso em muitos casos é considerado suficiente para acompanhamento pelo regulador da saúde econômico-financeira do ente regulado;

(3) ponderar se é razoável exigir a produção pelo ente regulado de informações contábeis adicionais considerando os custos de sua produção; 

Superadas essas considerações, seria preciso definir:

(4) quais as informações adicionais às já exigidas pela legislação contábil e pelos contratos devem ser produzidas pelos regulados;

(5) em que formato;

(6) com que periodicidade. 

Sobre os objetivos da regulação mencionados no item 1 acima, a título de exemplo, segue uma lista de objetivos, que, a depender do modelo regulatório adotado e dos limites do poder regulatório da agência previstos em lei e no contrato, poderiam ser legítimos para lastrear o pedido de informações contábeis adicionais aos entes regulados:

a) No caso de regulação discricionária sobre empresas estatais de saneamento, (i) definir forma de provimento de informações sobre custos efetivos da empresa, que reduzam o trabalho necessário para realizar as revisões ordinárias do contrato, facilitando a definição da base de ativos; ou (ii) exigir a contabilização individualizada de receitas e custos por cada contrato de programa, a fim de permitir compreensão da origem e destinação de eventuais subsídios cruzados;

b) O estabelecimento de critérios para provimento de informações sobre custos de investimentos para serem utilizadas para precificação de novos investimentos (não previstos originalmente no contrato) a serem incluídos nos contratos em curso ou para modelagem de novos contratos de concessão, com o objetivo de substituir o uso para esse fim de sistemas de preço público, como o Sicro ou o Sinapi (esse objetivo faz certamente sentido em setores como o de infraestrutura rodoviária, mas tenho dúvidas que faça sentido no setor de saneamento básico);

c) Controle patrimonial dos bens reversíveis;

d) Acompanhamento do valor devido de indenização por investimentos não amortizados ao concessionário para a hipótese de extinção antecipada ou no termo do contrato.

Note-se que é possível que novas exigências de provimento de informação criadas pelo regulador gerem novos custos para o regulado e isso pode fazer surgir direito ao reequilíbrio do contrato.

Em tempos em que as agências reguladoras do mundo estão buscando reduzir o fardo regulatório, e revendo para isso periodicamente o seu acervo regulatório, o mínimo que se espera dos nossos reguladores é clareza sobre as obrigações (nesse caso de provimento de informações) que pretendem impor aos seus regulados e sobre os objetivos dessas imposições.

*Mauricio Portugal Ribeiro é especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, professor de Modelos Regulatórios da FGV, mestre em Direito pela Harvard Law School, autor de vários livros e artigos sobre concessões, PPPs e outros temas dos setores de infraestrutura.
1 Eu queria agradecer a Marcelo Rangel Lennerz a discussão das ideias que levaram à elaboração do presente texto e a Marcelo, Luis Felipe Graziano e Pedro Dutra pela leitura atenta e comentários críticos ao texto. Os erros evidentemente são de minha exclusiva responsabilidade.
2 Situação diferente é a da ANA (Agência Nacional de Águas), agora responsável, em vista do Novo Marco Legal do Saneamento, por emitir regras de referência sobre contabilidade regulatória. Isso porque a ANA emitirá essas regras considerando os novos modelos de contrato que a própria ANA deverá desenvolver. Se resolver emitir regras sobre contabilidade regulatória aplicável aos contratos em curso, essas regras terão que ser diferentes para cada tipo de modelo regulatório adotado e sua aplicação prática terá que respeitar os limites do poder regulatório do ente regulador em cada caso.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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