iNFRADebate: Como está, PLS 261 traz assimetria regulatória

Fernando Paes*

O transporte de cargas está passando por um momento de transformação e desenvolvimento no Brasil. O amplo programa das renovações antecipadas das concessões de transporte ferroviário de cargas, de enorme sucesso, está assegurando a injeção de investimentos extremamente vultosos, capazes de ampliar a participação deste modal, dos atuais 15% para 31% da matriz logística do país. Além da ampliação da capacidade da malha ferroviária existente, as renovações antecipadas estão viabilizando a realização de investimentos públicos em novos projetos, como a construção da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e a Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste). A esses investimentos deve-se somar a recente concessão do Tramo Central da Ferrovia Norte-Sul, que já estará em plena operação ainda neste mês, uma vez que as obras estão bastante adiantadas.

O momento, portanto, é mais do que virtuoso. Poder público e iniciativa privada conseguiram assegurar a implementação (já em andamento) de um amplo programa de investimentos capazes de balancear a matriz de transportes, reduzir custos logísticos e ampliar a competitividade de nossos produtos. 

Uma vez assegurados os investimentos, é mais do que natural que busquemos agora estabelecer um ambiente regulatório mais moderno e inteligente, com a redução de custos e obrigações que, muitas vezes, não contribuem para melhorar a prestação dos serviços — muito pelo contrário, uma vez que acabam comprometendo a competitividade do setor. 

Foi justamente nesse contexto de modernizar a regulação da atividade de transporte ferroviário que o senador José Serra (PSDB-SP) submeteu o PLS 261/2018 à apreciação do Senado Federal. O objetivo do projeto de lei, claramente legítimo, era de permitir a exploração do transporte ferroviário de cargas, que hoje ocorre somente por concessão, por meio do regime de autorização. Trata-se de uma modalidade de regulação de serviços públicos em que os encargos burocráticos são muito menores do que os encargos incidentes sobre as concessões. A ideia, portanto, é permitir que a prestação de serviços públicos ocorra em um ambiente que se assemelhe ao setor privado, no qual a carga regulatória é significativamente menor. 

Não se trata de uma novidade propriamente dita, uma vez que o regime de autorização já é utilizado em telecomunicações, energia elétrica e portos, por exemplo. Cada setor, evidentemente, apresenta especificidades, tanto em relação à modelagem do regime de autorização quanto em relação aos resultados alcançados. A utilização do regime de autorização no setor ferroviário não pode prescindir da análise dos impactos, positivos e negativos, que a implementação deste regime provocou em outros setores. O caso portuário pode nos ajudar, logo no início, a evitar os problemas decorrentes da assimetria regulatória causada pelo convívio, neste caso indesejável, entre os dois regimes: de concessão e de autorização. 

O TCU (Tribunal de Contas da União) reconheceu, por unanimidade, diversos efeitos adversos decorrentes das assimetrias legais e regulatórias impostas aos terminais portuários (Acórdão TCU 2711/2020 – Plenário). Em linhas gerais, verificou-se que a concorrência desigual entre portos públicos e privados, em razão do enorme desequilíbrio regulatório, trouxe diversos prejuízos aos portos públicos organizados e, consequentemente, danos ao erário. O TCU determinou, em outubro de 2020, que o Ministério da Infraestrutura e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários adotassem medidas normativas e administrativas para reduzir a assimetria legal e regulatória existente entre os arrendamentos portuários e as autorizações para terminais de uso privado. 

Parece-nos que o mesmo cenário de assimetria regulatória indesejada e danosa será instalado no setor ferroviário de cargas caso o PLS 261/2018 seja aprovado como está, isto é, sem eliminar ou mitigar significativamente as discrepâncias entre os regimes de concessão e autorização. A competição entre ferrovias é mais do que bem-vinda quando há demanda. Mas essa competição precisa ocorrer em bases iguais.

Nesse sentido, temas como a migração entre regimes (de concessão para autorização) e a garantia expressa e inequívoca de prévio reequilíbrio econômico-financeiro (caso uma concessão seja prejudicada pela competição desigual e assimétrica) certamente devem fazer parte dos debates acerca do PLS 261/2018. E foi justamente isto o que ocorreu. O relator do projeto na Comissão de Infraestrutura, senador Jean Paul Prates (PT-RN), já se manifestou sobre a migração de regimes e mencionou que não incluiu essa possibilidade do texto por não haver consenso no momento da elaboração do relatório. Nada mais oportuno que buscar, com parcimônia, esse e outros consensos a respeito de temas atinentes ao transporte ferroviário. O próprio senador mencionou, em entrevista a esta Agência iNFRA, que o tema pode ser debatido se for apresentada emenda aditiva regulamentando a migração de regimes. 

É justamente em razão da complexidade do tema — e das consequências negativas que podem advir da assimetria regulatória que seria imposta ao setor com a aprovação do PLS 261/2018 tal como está — que temos nos manifestado para que o projeto não seja deliberado diretamente pelos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

Entendemos que o tema é relevante e oportuno, certamente, mas carece de debates mais aprofundados entre as muitas partes interessadas, inclusive por meio da realização de novas audiências públicas. É crucial que se promova essa discussão, e com maior prazo para uma reflexão técnica, voltada para a diluição indispensável de riscos futuros.

Além de evitar os efeitos mencionados acima, o debate mais amplo se revelará, sem dúvida alguma, numa oportunidade para aperfeiçoar o marco regulatório do setor sob outros aspectos, como, por exemplo, o da regulamentação dos seguros obrigatórios (que poderia ser mais simples e menos onerosa), a legislação sobre acidentes ferroviários (que hoje imputa às concessionárias fatos pelos quais elas não deveriam responder) e do transporte de combustíveis, praticamente inviável diante das normas e resoluções ora em vigor. A maior flexibilização do uso da faixa de domínio, e para outros fins, com a implementação de projetos associados, de forma a criar valor para o negócio, que é a concessão, revela-se outro tema de evidente interesse para todo o setor. 

Há outras questões igualmente importantes que poderiam ser tratadas com mais clareza no projeto de lei, como é o caso da devolução de trechos antieconômicos e da efetivação das chamadas shortlines, que são ferrovias que operam em menor escala, com faturamento reduzido, e que dependem de uma regulação muito mais leve para que sejam viáveis economicamente. Ambos os temas, por sua extrema relevância e complexidade, também carecem de uma reflexão mais acurada.

Eventual deliberação diretamente pelos plenários, em detrimento do rito ordinário, reduzirá significativamente o espaço e o tempo necessários para a maturação deste projeto, que pode ser efetivamente um marco histórico e positivo para o setor. Sem essa maturação, o PLS 261/2018 pode trazer prejuízos ainda incalculáveis para o serviço público de transporte ferroviário de cargas.

*Fernando Paes é advogado e diretor executivo da ANTF (Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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