iNFRADebate: Arbitragem regulatória e concessões portuárias – onde estamos e o que pode ser feito?

Denis Austin*

A arbitragem regulatória no setor aquaviário tornou-se foco de atenção no mês de maio por ocasião da Audiência Pública da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) para disciplinar procedimentos de resolução de conflitos entre agentes regulados.

O debate do tema é oportuno e deve ter em perspectiva também os processos de desestatização de portos públicos em curso no Brasil. De um lado, a Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo), que administra os portos de Vitória e de Barra do Riacho foi recém-leiloada, estando o procedimento licitatório em fase de ultimação.  De outro, o mercado tem aguardado a licitação do Porto de Santos, maior porto da América Latina, bem como a de outros portos (São Sebastião, Itajaí, Salvador, Aratu e Ilhéus, Rio de Janeiro, Itaguaí, Niterói e Angra dos Reis).

Embora a desestatização esteja assentada na atração de investimentos, na melhoria da eficiência operacional e na flexibilidade negocial da concessionária para fechar contratos, a mudança de gestão para o setor privado não deixa de suscitar desafios, a exemplo da transferência de titularidade de contratos da União para a concessionária (conjugada com a transmutação de regime jurídico do público para o privado); e, em alguns casos, da mitigação do risco de exercício de posição dominante pela concessionária nas negociações pré-contratuais ou de prorrogação.

Desse modo, estabelecer em sede de edital e contrato de concessão de portos organizados regras de transição e de contrapeso entre concessionária e arrendatários – ambos agentes regulados – torna-se indispensável. Alguns exemplos, conforme informações públicas, são a garantia de respeito aos termos originalmente pactuados, a perda de eficácia das cláusulas exorbitantes, a adoção de um Código de Conduta nas negociações e a regulação por ameaça (regulation by threat).

Porém, o ajuste fino de clausulado que será levado a efeito caso a caso, a interpretação e o cumprimento de cláusulas singulares, bem como aspectos da negociação pré-contratual entre as partes podem, potencialmente, ocasionar conflitos. Assim, é possível que procedimentos de arbitragem regulatória sejam instrumentais para a resolução de eventuais conflitos por ocasião das desestatizações de portos organizados.

A arbitragem regulatória pode ser definida como um método heterocompositivo de resolução de conflitos de natureza extrajudicial e administrativa no qual um agente regulado ou usuário demanda a solução de uma controvérsia com outro agente regulado ou usuário perante a agência reguladora dentro da esfera de competências desta.

Diferentemente de uma arbitragem tradicional regida pela Lei 9.307/1996, não é necessário o mútuo acordo entre as partes, seja em uma cláusula ou em uma convenção arbitral, para dar início ao procedimento (exceção feita para o caso da ANA, cf. Lei 9.984/2000, art. 4º-A, § 5º). Basta que uma parte suscite a controvérsia perante o regulador. 

Além disso, embora a agência decida o conflito, não é equiparada a juiz de fato e de direito. Portanto, sua decisão também não tem a mesma natureza das sentenças proferidas pelos órgãos judiciais como o tem as sentenças arbitrais. Isto é, as decisões da agência em sede de arbitragem regulatória são atos administrativos que podem ser revistos pelo Judiciário (cf. REsp 1.275.859/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, DJe 05/12/2012).

A competência da ANTAQ para arbitrar conflitos entre agentes regulados está prevista no art. 20, inc. II, ‘b’, da Lei 10.2033/2001 e refletida no art. 2º, inc. II, ‘c’, do Decreto 4.122/2002 e no art. 3º, incs. III e IV, do Decreto 8.033/2013. Essa competência anda pari passu com a de outras agências federais, dentre elas a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), sob o mesmo fundamento normativo da ANTAQ; a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), Lei 11.182/2005, art. 8º, inc. XX; a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), Lei 9.427/1996, art. 3º, inc. V; a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), Lei 9.478/1997, art. 20; a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), Lei 9.472/97, art. 19, inc. XVII; e a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), Lei 9.984/2000, art. 4º-A, § 5º.

Com relação à duração do procedimento arbitral na ANTAQ, procedimentos mais simples podem durar menos de um ano. Não raro, há autocomposição antes do término. Obviamente, a depender da complexidade e de outros fatores – como judicialização e pedidos cautelares – um procedimento pode durar mais, existindo casos de quase cinco anos de duração. Todavia, removendo outliers, o prazo médio de duração de um procedimento arbitral – desde a propositura até a decisão final – costuma ser de um ano e nove meses.

Os assuntos levados perante a ANTAQ são variados, podendo-se verificar controvérsias sobre aspectos de MMC (Movimentação Mínima Contratual), precificação de valores cobrados pela exploração de áreas, critérios e regras de reajuste, interpretação de cláusulas contratuais, cumprimento de obrigações e outras. 

Em procedimento envolvendo aspectos de MMC, paralelamente à arbitragem e enquanto esta tramitava, a controvérsia foi judicializada e decidida. A sentença foi contrária ao entendimento da área técnica da agência. Não obstante, a ANTAQ adotou a posição da área técnica no acórdão, alegando independência de instâncias, ausência de participação da agência no processo judicial e possibilidade de reversão da decisão judicial por ainda não ter transitado em julgado. É esperado que a divergência entre decisão judicial e decisão administrativa ocasione nova judicialização.

Em caso sobre o valor cobrado pela exploração da área, um arrendatário questionou a forma de reajuste sobre o valor de sítio padrão alegando que estaria havendo capitalização indevida e anatocismo. A ANTAQ considerou que a matéria seria de interpretação contratual e não regulatória, o que a levou a inadmitir a instauração da arbitragem. Não obstante, em outro caso que versava expressamente sobre a divergência de interpretação acerca de cláusula de reajuste de MMC, a agência não encontrou óbice para prosseguir com a decisão da controvérsia.

Desse modo, o que a prática da ANTAQ parece revelar é que, embora haja oportunidades para a resolução de conflitos envolvendo contratos de exploração de terminais em portos desestatizados, ainda não há completa maturidade no entendimento da agência acerca de seus próprios limites como árbitro administrativo. Consequentemente, cria-se incerteza naqueles que pretendem lançar mão do mecanismo de composição.

Nesse cenário de coisas, a proposta de instrução normativa da ANTAQ para regrar o procedimento de resolução de controvérsias – objeto da Audiência Pública 02/2022 – assume grande importância para reduzir incertezas.

Não obstante, observa-se que, na proposta de norma, não foi contemplada expressamente a admissibilidade de arbitragem para controvérsias envolvendo preços e condições exigidos como contrapartida da exploração de instalações portuárias em portos organizados concedidos à iniciativa privada. Ou seja, caso a proposta seja aprovada sem menção expressa a esse tipo de controvérsia, é possível que, no exame de admissibilidade, a agência venha a negar instauração de arbitragem.

Também se verifica que o art. 36 da proposta de norma tende a inviabilizar a arbitragem de conflitos envolvendo contratos entre concessionária e exploradores de terminais. A razão disso decorre de que os contratos entre concessionária e exploradores de terminais são contratos privados nos termos do art. 5º-A da Lei 12.815/2013, enquanto o art. 36 da minuta restringiu a aplicação da arbitragem regulatória aos conflitos “envolvendo a aplicação de leis, normas e contratos públicos”.

Nesse esteio, se a agência pretende manter a coerência do modelo de concessões portuárias – como sendo o de ampla liberdade contratual garantida a solução de conflitos e abusos pela agência – é fundamental que a proposta de norma seja ajustada, pois quaisquer medidas para reduzir incertezas tornam-se pontos positivos para transformar a arbitragem regulatória em um instrumento mais seguro, eficaz e confiável para os regulados.

*Denis Austin é advogado com atuação em diversos setores de infraestrutura, mestre em Direito pelo IDP e MBA em Finanças Corporativas pela FGV.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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