iNFRADebate: A privatização da Corsan – 2ª Parte

Douglas Estevam*

Desde nossa última publicação1, já foram prolatadas duas decisões judicias alterando a situação jurídica do leilão da Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento). Como era de se esperar, a insegurança jurídica paira sobre o projeto, com liminares seguindo direções diametralmente opostas, como se não houve coerência ou higidez no ordenamento jurídico.

No fim das contas, o Poder Judiciário está sendo levado a arbitrar questões que não foram satisfeitas politicamente, com decisões fragmentárias diante de aspectos parciais do problema. A quem não tenha memória curta, isso nos faz lembrar a quinzena que antecedeu a concessão dos serviços de abastecimento e esgotamento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

Faltando apenas quinze dias para o leilão, numa só canetada, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro reduziu o prazo de concessão de trinta e cinco para vinte e cinco anos2, num juízo açodado da legislação estadual. A decisão foi cassada pelo então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal)3, restabelecendo a plena eficácia do decreto que autorizara a concessão.

Contudo, já faltando cinco dias para a sessão, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região suspendeu o procedimento licitatório, até que fosse apresentado “estudo circunstanciado de impacto socioeconômico na relação com os trabalhadores”4. Portanto, no dia 27 de abril de 2021, o ministro Luiz Fux não só revogou a decisão da Justiça do Trabalho como determinou, a três dias do leilão, “a suspensão de toda e qualquer decisão da Justiça de Primeiro e de Segundo graus que obst[asse], parcial ou integralmente, o andamento do certame licitatório”5.

Mesmo assim, na véspera do leilão, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decidiu interditar a licitação por meio de um decreto legislativo6. Além de ser uma espécie normativa que prescindia da sanção do Poder Executivo, o decreto legislativo não podia ser alcançado pelos efeitos daquela decisão do Supremo Tribunal Federal, o que só pôde ser revogado, na manhã do leilão, por um mandado de segurança7

Apesar do drama, essa pequena anamnese nos mostra que o ambiente caótico é completamente normal entre as instituições brasileiras. No caso do Rio Grande do Sul, o próprio desembargador que havia suspendido o processo de desestatização decidiu reconsiderar sua decisão, vedando “apenas a realização dos atos finais do procedimento, quais sejam, a assinatura do contrato de compra e venda […] e a efetiva transferência de tais ações ao adquirente”8.

Em controle difuso de constitucionalidade, o julgador reconheceu a legalidade dos atos praticados pelo Estado do Rio Grande do Sul, ressaltando o dispositivo do novo Marco Legal do Saneamento Básico que trata da alienação do controle acionário de empresa estatal9. No entanto, logo no dia seguinte, faltando três dias úteis para a realização do leilão, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região determinou sua suspensão por noventa dias, até a apresentação de “estudo circunstanciado sobre o impacto socioeconômico trabalhista, previdenciário e social do processo de desestatização”10.

Somada a essa última decisão judicial, o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, na sexta-feira (16), também impôs medida cautelar contra o governo gaúcho, impedindo a assinatura do contrato de compra e venda das ações. Nesse processo parlamentar, pretende-se discutir a avaliação econômica da companhia e os pormenores dos contratos entre a Corsan e os municípios. Além das controversas questões legais desse projeto em particular, temos assistido a um cenário brasileiro de incerteza sobre a legislação do saneamento básico11, diante de uma realidade desafiadora à universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário em todo o território nacional12.

1 ESTEVAM, Douglas. A privatização da CORSAN. iNFRADebate, 13 dez. 2022. Disponível em: <https://agenciainfra.com/blog/infradebate-a-privatizacao-da-corsan/>. Acesso em 16 dez. 2022.
2 ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Representação por Inconstitucionalidade n.º 0001674-76.2021.8.19.0000, Órgão Especial, des. Adolpho Andrade Mello, decisão liminar em 15 abr. 2021. Disponível em: <http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000411A8F3FE4401CF4D9A20A61CBB8FF025C50E4056032D&USER=>. Acesso em 16 dez. 2022.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Suspensão de Liminar n.º 1.446/RJ, Relator Min. Luiz Fux, medida cautelar de 22 abr. 2021. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6160174>. Acesso em 16 dez. 2022.
4 ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal Regional do Trabalho da 1.ª Região, Mandado de Segurança Cível 0101354-84.2021.5.01.0000, des. Claudia Regina Vianna Marques Barrozo, decisão liminar em 15 abr. 2021. Disponível em: <https://pje.trt1.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0101354-84.2021.5.01.0000/2#b5a90f9>. Acesso em 16 dez. 2022.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Suspensão de Liminar n.º 1.446/RJ, Min. Luiz Fux, incidente de contracautela em 27 abr. 2021. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6160174>. Acesso em 16 dez. 2022.
6 ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Decreto Legislativo n.º 16, de 2021. Susta os efeitos do Decreto n.º 47.422, de 23 de dezembro de 2020. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/01017f90ba503d61032564fe0066ea5b/eb38771bdc3b0f97032586c600574966?OpenDocument>. Acesso em 16 dez. 2022.
7 ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Mandado de Segurança n.º 0029592-55.2021.8.19.0000, Órgão Especial, des. Benedicto Abicair, decisão liminar prolatada às 10h11 de 30 abr. 2021. Disponível em: <http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=202100401804>. Acesso em 16 dez. 2022.
8 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Agravo de Instrumento n.º 5235809-06.2022.8.21.7000/RS, 4.ª Câmara Cível, des. Alexandre Mussoi Moreira, decisão de 14 dez. 2022. Disponível em: <https://eproc2g.tjrs.jus.br/eproc/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=11671022868695937161502627427&evento=82100011&key=f724c42b00851ad6c700127b46df4531653660236bbbdac4b861655c1effc9b0&hash=cb42cc0d08b2abbbe9390016c2869887>. Acesso em 16 dez. 2022.
9 ESTEVAM, Douglas; SANTORO, Bernardo. A alienação do controle acionário de empresas estatais de saneamento básico. In: FROTA, Leandro; PEIXINHO, Manoel (Coord.). Marco regulatório do saneamento básico: estudos em homenagem ao Ministro Luiz Fux. Brasília: OAB Editora, 2021. pp. 127-145. Disponível em: <https://www.oab.org.br/publicacoes/pesquisa?termoPesquisa=fux>. Acesso em 16 dez. 2022.
10 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região, Mandado de Segurança Cível n.º 0037752-04.2022.5.04.0000, des. Marcos Fagundes Salomão, decisão liminar de 15 dez. 2022. Disponível em: <https://www.trt4.jus.br/portais/media-noticia/537716/dc%20MSCiv%200037752-04.2022.5.04.0000%20%281%29.pdf>. Acesso em 16 dez. 2022.
11 PUPO, Amanda. Proposta de equipe desfigura o Marco Legal do Saneamento: Grupo da transição quer rever incentivo a empresas privadas. Jornal Correio do Povo de Alagoas, 16 dez. 2022. Disponível em: <https://correiodopovo-al.com.br/geral/proposta-de-equipe-desfigura-o-marco-legal-do-saneamento>. Acesso em 18 dez. 2022.
12 ESTEVAM, Douglas. O que esperar do saneamento básico em 2023? Investimentos só serão possíveis se mantida a segurança jurídica sobre o setor. Jota, 6 dez. 2022. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-esperar-do-saneamento-basico-em-2023-06122022>. Acesso em 18 dez. 2022.
*Douglas Estevam é advogado. Mestrando em Direito da Cidade (PPGD/UERJ). Secretário-geral da Comissão Especial de Saneamento, Recursos Hídricos e Gás Encanado da OAB/RJ. Assessor jurídico da Secretaria de Estado de Infraestrutura e Obras (Seinfra/RJ). Membro da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro (Ujucarj).
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