iNFRADebate: A Nova Lei de Licitações e as obras “envenenadas” – O atestado de capacidade técnica é do engenheiro, mas e a inidoneidade?

Rafael Moreira Mota* e Saulo Malcher Ávila**

O filósofo grego Sócrates foi condenado à morte sob a acusação de que estaria corrompendo a juventude e criando novos deuses. Em vez de se insurgir quanto à pena de tomar cicuta, usou a sua morte como uma lição aos seus discípulos. Com a publicação da Lei nº 14.133 de 1º de abril de 2021 (Nova Lei de Licitações) criou-se uma pena que merece ser analisada com cautela: a impossibilidade de se compor o acervo técnico dos engenheiros de obras com atestados de capacidade técnica em contratos nos quais tenha ocorrido a declaração de inidoneidade. 

O §12 do artigo 67 da citada Lei diz que “não serão admitidos atestados de responsabilidade técnica de profissionais que, na forma de regulamento, tenham dado causa à aplicação das sanções de previstas nos incisos III [impedimento de licitar e contratar] e IV [declaração de inidoneidade para licitar ou contratar] do caput do art. 156 desta Lei em decorrência de orientação proposta, de prescrição técnica ou de qualquer ato profissional de sua responsabilidade”.

Observa-se que a nova regra é imperativa ao estabelecer que a Administração não aceitará, para fins de comprovação de capacidade técnico-profissional, os atestados de profissionais que tenham alguma relação com episódios passados em que foi necessário o exercício do poder sancionador pelo poder público. 

A expressão “qualquer ato profissional de sua responsabilidade” no artigo 67, §12, da Lei nº 14.133/2021 demonstra a sua amplitude, não tendo a norma dito que a Administração deixará de aceitar atestado de profissional que foi pessoalmente impedido de licitar e contratar ou teve sua inidoneidade declarada, bastando que haja relação com a sanção aplicada. Assim, a mera emissão de uma anotação de responsabilidade técnica de uma obra ou seus sistemas pode trazer consequências imensuráveis a profissionais como engenheiros, cujo acervo de atestados é ponto central em suas atividades e carreiras.

As sanções de impedimento de licitar e contratar e a declaração de inidoneidade servem para punir tanto episódios graves de corrupção ou fraude, até outros que se permite dizer triviais, como a mera não entrega de documentação celebração do contrato ou durante sua execução, atraso na execução do objeto ou a inexecução parcial do contrato, o que, a experiência demonstra, pode ocorrer por diversos fatores, até por um dissenso entre fiscalização e empresa sobre um detalhe em uma obra pública.

A Lei nº 14.133/2021 inovou ao estabelecer de forma objetiva que o superfaturamento pode se caracterizar por uma medição de quantidades superiores às efetivamente executadas ou fornecidas, deficiência na execução de obras e de serviços de engenharia que resulte em diminuição da sua qualidade, vida útil ou segurança ou alterações no orçamento de obras e de serviços de engenharia que causem desequilíbrio econômico-financeiro do contrato em favor do contratado. 

Ressalvados os casos de corrupção e fraude, pode-se imputar superfaturamento – que é uma hipótese de declaração de inidoneidade – por uma falta de consenso entre fiscalização e contratado sobre uma medição, questionamento sobre a qualidade de uma obra, apesar de costumeiros erros de projeto e falta de manutenção pelo poder público etc.

Sem adentrar no mérito do poder sancionatório da administração, é importante reconhecer que, na busca de ampliar a proteção do interesse público, a lei pode ter colocado a pessoa do profissional engenheiro em situação de extrema insegurança, apesar de diversas hipóteses que justificam a aplicação das sanções de impedimento de licitar e contratar e declaração de inidoneidade se referirem a atos próprios da pessoa jurídica empregadora contratada pela administração ou, como visto, a episódios sem gravidade em uma obra, que são serviços complexos, em que intercorrências e dissensos são normais.

Nesse passo foram afetados profissionais atuantes em todos os portes de empresas, desde as grandes – protagonistas de casos emblemáticos de corrupção – às médias e pequenas, que compõem a maioria do mercado brasileiro e muitas vezes têm seu sócio como responsável técnico.

A regra no artigo 67, §12, da Lei nº 14.133/2021, como posta, parece conflitar com pontos basilares de nosso ordenamento jurídico, como o princípio da república do valor social do trabalho (art. 1º, IV, CF), da garantia fundamental da individualização da pena, que não passará da pessoa do condenado (art. 5º, XLV e XLVI, CF), bem como os postulados de que o risco do negócio não pode ser transferido para o empregado e até o da separação entre a pessoa jurídica e a física.

Também resta fragilizada a garantia fundamental de que não haverá penas de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b)”, CF), pois não foi estabelecido prazo máximo ou mínimo para que a administração não aceite atestados nos moldes do artigo 67, §12, da Lei nº 14.133/2021, apesar de essa possuir natureza restritiva, portanto de sanção. Isso se agrava quando se sabe que a sanção de impedimento de licitar e contratar está limitada ao prazo de três anos e da declaração de inidoneidade para licitar ou contratar até o máximo de seis anos.

A nova regra cria a ideia de obra “envenenada”, que, como fruto, dá atestados de capacidade técnica podres, imprestáveis e capazes de contaminar todo o acervo do profissional, pois o artigo 67, §12, da Lei nº 14.133/2021 diz que “não serão admitidos atestados de responsabilidade técnica de profissionais que … tenham dado causa à aplicação das sanções”, portanto, sequer foi especificado que os atestados inaceitáveis seriam aqueles advindos da obra ou serviço em que houve o sancionamento.

Fato é que a pessoa do profissional foi colocada em situação muito mais prejudicial do que a diretamente responsável pelo ato ilícito e que deve ser sancionada. Ao que parece, a intenção do Legislador foi beneficiar inclusive as empresas envolvidas em episódios como os da Lava Jato sob a premissa da função social da empresa, resguardando os postos de trabalho, mas trazendo prejuízo ao engenheiro que fica impossibilitado de compor o seu acervo técnico com as obras “envenenadas”. 

Apesar da boa intenção por trás do artigo 67, §12, da Lei nº 14.133/2021, as distorções ora trazidas demonstram que essa norma se desvia excessivamente do aspecto técnico, o qual justifica a própria existência da exigência legal de apresentação dos atestados prevista no seu artigo 62 e seguintes. A nova regra tem potencial de punir de forma indistinta, tendo como vítima principal o engenheiro. Cabe, assim, questioná-la ou aceitá-la e beber a cicuta.

*Rafael Moreira Mota é mestre em Direito Constitucional e sócio do escritório Mota, Kalume Advogados.
**Saulo Malcher Ávila é especialista em Direito Administrativo do escritório Mota, Kalume Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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