iNFRADebate: A indústria marítima e o meio ambiente

Rodrigo Cintra*

Recentemente temos visto a pauta da economia do mar ser levantada aos quatro cantos por vários profissionais, boa parte deles sem relação alguma com o mar, o que por si só já era preocupante. Agora vemos atores políticos se envolvendo na pauta repentinamente, sem também ter muita relação com ela.

Neste contexto não podemos deixar de elogiar a recente ação do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que há alguns dias iniciou finalmente a remoção de destroços de embarcações da Baía de Guanabara. Essa ação representa a concretização de planejamentos que vêm sendo alinhados há alguns anos, ouvindo especialistas, acadêmicos e entidades técnicas. Muita coisa foi produzida pelas equipes que cuidam da pauta desde 2018 e, para o bem do estado do Rio de Janeiro, foi dada continuidade ao trabalho pelas gestões que se seguiram, culminando no que começamos a ver. É bom demais ver o Poder Público atendendo ao interesse público.

Assim, é importante esclarecer alguns pontos que vêm sendo ventilados por atores políticos dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, e que não se sustentam em uma argumentação técnica minimamente adequada.

É correto afirmar que navios ou outras embarcações abandonadas na Baía de Guanabara “podem” ser uma fonte de poluição, uma vez que há a possibilidade de haver substâncias oleosas de todo tipo em alguns de seus tanques, porões e/ou outros compartimentos. Com o desgaste temporal imposto pela corrosão às superfícies metálicas, sem os efeitos da manutenção, em algum momento pode ocorrer a ruptura de sua integridade com ameaça não apenas de poluição do meio ambiente por substâncias oleosas, mas também a ruptura de seus meios de fixação ao fundo ou ao cais deixando a embarcação ao sabor do vento e da correnteza (como já ocorreu) ou até mesmo de um naufrágio que traria outros problemas.

Todavia, esta lógica não se aplica a embarcações em atividade regular, com certificação estatutária (emitida pelo país onde é registrada), certificação da Autoridade Marítima Brasileira, certificação de classe e apólices de seguro/proteção emitidas por seguradoras de renome internacional e clubes de P&I.

É preciso destacar o papel desempenhado brilhantemente pela Marinha do Brasil que, como Autoridade Marítima, regula e fiscaliza a atividade marítima através do Controle de Estado de Porto (Port State Control) nas águas jurisdicionais brasileiras. Por meio de inspeções regulares, a Marinha do Brasil verifica a qualificação dos profissionais marítimos, a integridade e operacionalidade dos diversos equipamentos, certificações de todo tipo e controle de substâncias oleosas a bordo, através do Livro de Óleo (Oil Record Book), dentre outros aspectos, sendo mundialmente reconhecida como uma das mais exigentes autoridades marítimas.

Há uma intenção hoje em se promover o cerco preventivo de todas as embarcações na Baía de Guanabara, o que abriria um enorme mercado para quem faz esse tipo de operação. 

Faz sentido promover o cerco de contenção ao redor de embarcações abandonadas, porém não faz sentido promover o cerco ao redor de embarcações que não estejam abandonadas, salvo quando estão em operação de recebimento de óleo combustível. Manter embarcações fundeadas ou atracadas com cerco preventivo gera uma condição insegura para a navegação, especialmente quando temos as viradas repentinas de tempo e fortes ventos locais – nestas ocasiões, é ação imediata do navio ligar as máquinas e até mesmo suspender o ferro (âncora), e, se preciso, navegar. A segurança da navegação e da vida humana no mar é prioridade. O problema operacional gerado em uma situação desse tipo abre perigosas brechas na segurança da navegação.

É importante trazer à luz que o fato de ainda não termos essas embarcações abandonadas destinadas ao corte e posterior reciclagem, ocorre pela falta de interesse do Poder Público pela matéria ao longo dos anos. Adicionalmente, são muitos imbróglios jurídicos, com recursos infindáveis, em ações sobre ativos marítimos em situação de arresto ou perdimento e que seguem há anos e anos na nossa Justiça sem uma definição clara, pela complicada legislação inerente, especialmente pelas interpretações equivocadas da Receita Federal sobre esses ativos. Há também o desinteresse dos estaleiros em realizar essa operação, uma vez que toda a legislação relacionada à destinação final da sucata atrapalha esses entes em monetizar esses ativos, gerando uma série de contrapartidas ambientais e sociais que não compensam o montante líquido que se pode auferir da operação.

Uma legislação mais restritiva agravaria esse cenário e qualquer movimento nesse sentido deveria primar pela técnica, gerando um interessante cenário microeconômico e entendendo que os benefícios diretos e imediatos seriam o emprego, a renda, os tributos e o meio ambiente já tocando em três importantes pilares da Economia Azul: a indústria naval, o meio ambiente e o turismo. 

Não é correto atribuir a navios e embarcações em geral a responsabilidade pelo estado deplorável em que se encontra a Baía de Guanabara. A poluição da Baía de Guanabara é quase que em sua totalidade oriunda de esgoto residencial e principalmente esgoto industrial não tratado ou tratado inadequadamente e lançados in natura nos rios que nela desembocam ou até diretamente em suas águas. Não precisamos entrar em detalhes sobre os lançamentos vindos do Complexo da Maré, do Canal do Cunha, Canal do Fundão, Canal de São Lourenço, Ilha da Conceição, Ilha do Governador e parte mais interior da Baía de Guanabara, envolvendo municípios como Duque de Caxias, Magé e São Gonçalo, antes navegável, com terminais de passageiros inclusive, e agora em alto estágio de assoreamento em face da ocupação urbana desordenada com uma infraestrutura incompatível.

Faço aqui um parêntese especial sobre o esgoto industrial, esse sim, sem fiscalização adequada: foi notório quando, durante o lockdown no período pandêmico da Covid-19, a Baía de Guanabara simplesmente ficou com um aspecto bem melhor, pois o próprio regime de marés, com a preamar (maré enchente – água entrando na Baía) e a baixa-mar (maré vazante – água saindo da Baía) promoveu uma considerável limpeza do local, a ponto de praias como Urca, Flamengo e Botafogo voltarem a ser balneáveis recebendo até mesmo a visita de golfinhos. Ora, as pessoas estavam em casa, gerando o esgoto residencial não normalmente, mas em volume muito maior. O que estava fechado, sem gerar esgoto, pois os trabalhadores e trabalhadoras estavam em suas casas, eram as indústrias. Os navios seguiram operando regularmente. Foi mera coincidência? Deixo para a reflexão de todos.

É fundamental desmistificar a teoria de que “Petrobras é responsável pela maioria das operações na Baía de Guanabara”, ou que “tudo o que a Petrobras faz tem relação direta com o mar”. A indústria marítima é muito maior que a indústria petrolífera. Elas se cruzam por três fatores: embarcações que fazem a logística de combustíveis e outros bens de consumo para campos petrolíferos e locais onde dutos não fornecem o devido abastecimento, embarcações que realizam serviços especializados na indústria petrolífera e pelo óbvio fato de que as embarcações consomem combustível fóssil e outros derivados do petróleo. Porém, a maioria das embarcações que operam circulando, entrando e saindo de nossas águas é de navios cargueiros transportando bens que pouco ou nada têm a ver com a indústria petrolífera. Navios conteineros, graneleiros, de carga geral, ro-ro, carga viva, cruzeiros e tantos outros que não prestam serviço ou mantêm relação alguma com a Petrobras. Navios estrangeiros evitam abastecer em portos brasileiros pelo altíssimo preço do bunker nacional, nada competitivo.

A indústria marítima é hoje a mais regulada do mundo, não há compliance mais robusto. Quando não se falava muito em questões ambientais, no já longínquo ano de 1973, ou seja, há 50 anos atrás, a indústria era presenteada com o Código MARPOL, que é a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios, da qual o Brasil é signatário e cumpre à risca, sem restrições.

A Convenção inclui regulamentos que visam prevenir e minimizar a poluição de navios – poluição acidental e de operações de rotina – e atualmente inclui anexos técnicos que incluem, inclusive, áreas especiais com controles rígidos sobre descargas operacionais.

Ela vem sendo atualizada ao longo do tempo e hoje já conta com seis anexos que versam sobre as diversas formas de poluição no mar, a saber: óleo, substâncias líquidas nocivas transportadas a granel, substâncias prejudiciais transportadas em forma empacotada, esgoto, lixo sólido e poluição do ar. 

Acidentes e incidentes podem acontecer e devem ser investigados para atribuição de responsabilidades, compensações e para que se gere uma curva de aprendizado na indústria de forma a evitar a recorrência, porém são a exceção, não a regra, sendo, desta forma, de responsabilidade de partes pontuais, e não de todo o setor.

A fiscalização sobre abertura de válvulas de descarga de sistemas de esgotos de porão de embarcações é rigorosamente controlada por meios de lacres cuja violação leva a multas de enorme monta, implicações relacionadas a seguradoras também extremamente impactantes, e a ocorrência deste fato, mais uma vez, é a exceção, não a regra. Há 12 milhas da costa todas as descargas de resíduos, que só são lançados ao mar após tratados, já são bloqueadas nos navios. 

Importante demais destacar que muitas vezes um leigo vê água sendo descarregada por um navio e afirma ser uma descarga irregular quando, geralmente, é o funcionamento de seus sistemas de resfriamento de máquinas e equipamentos ou de lastro e deslastro, este último devidamente monitorado pelo equipamento conhecido como Monitor de Lastro, obrigatório para boa parte das embarcações, segundo a Convenção Internacional para o Controle e Gerenciamento de Água de Lastro dos Navios, da qual o Brasil é signatário.

Em caso de poluição comprovada, mesmo os navios de bandeira estrangeira cujo responsável não seja localizado no Brasil ou no exterior, têm a figura do agente marítimo no Brasil, que é acionada como responsável solidário, cabendo à Justiça avaliar, julgar e definir as devidas compensações.

Assim, sobre a pauta “meio Ambiente”, parece ser bem mais efetivo exercer a fiscalização sobre os atores da região metropolitana do Rio de Janeiro, que lançam esgoto não tratado direta ou indiretamente na Baía de Guanabara e Baía de Sepetiba sem esquecer da atribuição legal do Estado do Rio de Janeiro (agora delegada a uma concessionária) em tratar o esgoto produzido.

As instalações portuárias devem ser fiscalizadas, e de fato são, porém, sua interação com os navios é muito síncrona, sem falar na própria fiscalização do porto em cima das embarcações que nele estão operando.

Não parece que Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Inea (Instituto Estadual do Ambiente) possuam meios, pessoal e rotina adequados para tal, dadas as conhecidas limitações impostas a esses órgãos.

A realidade operacional de quando ocorre um vazamento é que Inea ou Ibama, que são tratados na Legislação como OAC (Órgão Ambiental Competente), e até mesmo a Marinha do Brasil, aplicam multas baseadas no Decreto Lei 8.127/2013, que define não apenas quem aplica, mas até mesmo as classifica por grupos determinando faixas de valores. Importante também analisar a Lei 9.966/2000 e o Decreto 4.136/2002. O que vemos no cotidiano operacional é que entre Inea e Ibama, toma a frente quem chega primeiro ao local, e geralmente este ente é o Ibama, por possuir meios mais adequados para se fazer presente.

Poderia aqui citar todo um arcabouço legal que rege a atividade marítima, entre resoluções da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), leis federais, convenções internacionais, normas da Autoridade Marítima, entre outras, mas teria que me estender. Além disso, creio que o exposto neste artigo já dê uma ideia do cuidado que a atividade marítima como um todo tem com o Meio Ambiente, em uma relação quase que simbiótica. O que foge desse padrão, repito, é exceção, não regra.

Finalizando, é importante conhecer o setor, esclarecer alguns pontos e, especialmente, interagir com as partes envolvidas antes de se mexer em qualquer tipo de legislação, sob o risco de não se produzir um texto que, de fato, possa dar conta das demandas locais da indústria marítima. As consequências da falta de responsabilidade com esses aspectos freiam o desenvolvimento do setor, prejudicam a geração de trabalho, emprego e renda e, com a redução das atividades, impactam o erário público com a baixa na arrecadação tributária.

Não há problema algum em ser leigo, não conhecer o setor e até mesmo munir-se de boas intenções, quiçá colocar-se como um representante político de um determinado setor. Conhecemos bem o jogo. O problema reside quando a realidade é exposta por especialistas do setor e alguma parte tenta literalmente adaptar a realidade aos seus interesses, ignorando não apenas uma série de órgãos nacionais e internacionais, mas principalmente profissionais marítimos que seguem à risca um nível altíssimo de compliance e têm um compromisso quase que religioso com o meio ambiente.

É também necessária uma postura séria, sem imaturidades e histerismos que visam apenas objetivos políticos que em nada beneficiam o setor marítimo, comportamento facilmente identificável quando se tenta, em três assembleias legislativas diferentes, de estados que possuem grandes portos, passar uma ideia que não se sustenta minimamente em argumentos técnicos, ainda que rasos. Essas partes não querem somar, mas sim se aproveitar.

Os efeitos são sentidos diretamente pela sociedade que precisa ver na marinha mercante uma atividade segura e relevante, afinal, quase tudo que está ao seu redor neste momento, onde quer que você esteja lendo este artigo, passou por um navio mercante.

*Rodrigo Cintra é bacharel em Ciências Náuticas, oficial da Marinha Mercante graduado pelo Centro de Instrução Almirante Graça Aranha e especialista em Engenharia da Manutenção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ocupou o cargo de coordenador da Indústria Naval do Governo do Estado do Rio de Janeiro e atualmente é o presidente da Sociedade Brasileira de Marinha Mercante e embaixador do Chirp UK e do Mars/Instituto Náutico de Londres para o Brasil.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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