iNFRADebate: A importância do fim da Emenda 54 da MP 1.154 para a independência regulatória no Brasil

Matheus Aquino* e Priscila Wilhelm**

O debate sobre a autonomia de agências reguladoras e autarquias ganhou destaque no ambiente público brasileiro. Tal discussão se dá não apenas pelas críticas que o Banco Central – independente desde fevereiro de 2021 – vem sofrendo na condução da política monetária, mas sobretudo pelas discussões a respeito da MP 1.154, medida que inicialmente incluiu a proposta de criação de uma comissão de representantes de ministérios para participar do processo de decisão regulatório das agências reguladoras.

A emenda 54 da MP 1.154 determinava que agências criadas para regulamentar, controlar e fiscalizar a execução de serviços e os preços em diversos setores fundamentais da economia – como o elétrico (ANEEL), o de telecomunicações (Anatel) e o rodoviário (ANTT) – passariam a contar com representantes de ministérios e outros agentes políticos no seu processo decisório. Embora tenha sido descartada, ao menos por enquanto, é importante discutir os efeitos esperados da participação desses agentes políticos na dinâmica regulatória, bem como a influência das preferências do governante da ocasião, com implicações econômicas importantes. Na prática, a proposta reduziria a independência formal das agências reguladoras brasileiras.

De acordo com a teoria econômica de regulação, os agentes políticos têm dificuldades para se comprometer com políticas de longo prazo, pois seus objetivos, via de regra, estão alinhados a um horizonte de curto prazo – a busca pela reeleição, por exemplo. Diante disso, decisões regulatórias sob a influência de interesses políticos podem não ser as mais eficientes para a sociedade, uma vez que podem atender a anseios eleitorais em detrimento da sociedade. 

Além disso, os agentes privados podem ser desencorajados a investir caso não acreditem que a política regulatória atual se manterá quando os investimentos forem concluídos. Esse fenômeno é conhecido como “inconsistência temporal”. Nesse sentido, o setor de infraestrutura, ainda tão carente de recursos no país, é particularmente afetado, pois demanda investimentos substanciais em longos horizontes de tempo.

Ao constatarem que os investimentos foram concluídos, os políticos podem optar, por exemplo, por diminuir a tarifa inicialmente acordada e, assim, se apropriar do lucro que o agente privado esperava receber pela obra após a sua conclusão. Como tais investimentos não podem ser desfeitos, a decisão política acaba inevitavelmente afetando sua rentabilidade. Assim, diante de uma alta probabilidade de expropriação, o setor privado prefere não aportar.

Witold J. Heinsz analisou os dados do setor de energia elétrica e telecomunicações de 129 países ao longo de 119 anos e encontrou evidências de que o contexto regulatório explicava o momento da chegada de novas tecnologias e a taxa de crescimento do investimento no tempo. Isto é, em contextos em que o ambiente regulatório era favorável, novas tecnologias eram implementadas e o investimento aumentava.

Assim, países com instituições capazes de se comprometer de forma crível com políticas regulatórias apresentaram taxas de investimento maiores no tempo, enquanto países com mais instabilidade política e histórico de intervenções populistas tiveram baixas taxas de investimento privado em setores regulados.

Para solucionar essas questões, foram criadas as agências reguladoras independentes. Elas buscam “isolar” as decisões regulatórias do interesse de políticos, que, em geral, têm foco no curto prazo. 

Diversas agências reguladoras independentes foram criadas em países da União Europeia na década de 1990, na esteira de medidas de liberalização econômica. Carlo Cambini e Laura Rondi avaliaram setores como telefonia e saneamento nesses locais e encontraram evidências de que o investimento privado aumentou nas regiões em que era observada mais independência regulatória.

No Brasil, as agências reguladoras também foram criadas no contexto da liberalização econômica e das privatizações, a partir da década de 1990. Desde então, o processo regulatório foi sendo aprimorado – a Lei das Agências Reguladoras (Lei 13.848/2019), por exemplo, trouxe uma uniformização procedimental e determinou a obrigatoriedade da realização de análises de impacto para avaliar as consequências de eventuais decisões.

Mesmo assim, ainda restam problemas e as agências reguladoras brasileiras invariavelmente sofrem com contestações de agentes públicos. Muitas decisões regulatórias são levadas inclusive para o arbitramento do Poder Judiciário, o que gera morosidade na aplicação de políticas regulatórias, ineficiências e insegurança jurídica.

Como apontam as evidências disponíveis e a teoria econômica, a criação de mecanismos que reduzam a independência das agências diminui a credibilidade das políticas regulatórias vigentes e reforça a percepção de incerteza política do país para potenciais investidores.

Portanto, medidas como a Emenda 54 da MP 1.154 representam um retrocesso significativo para o arcabouço regulatório brasileiro, que já possui fragilidades associadas ao quadro político de instabilidade. Felizmente, a redação final da medida provisória excluiu essa emenda, indo na direção correta para a melhora do ambiente regulatório do país e evitando os potenciais prejuízos para o desenvolvimento da infraestrutura nacional.

*Matheus Aquino é analista na Tendências Consultoria, onde atua com temas financeiros, análise de desequilíbrio em contratos de concessões e questões associadas a regulação. É mestrando em Economia Aplicada pela FEA-RP/USP e bacharel em Ciências Econômicas pela FEA/USP.
**Priscila Wilhelm é analista na Tendências Consultoria, onde trabalha com temas relacionados a tecnologia, especialmente no setor financeiro, e em projetos que tratam de concessões e finanças. Mestranda em Economia pela FGV-SP, é bacharel em Administração de Empresas pela FEA/USP e em Audiovisual pela ECA/USP.
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