iNFRADebate: A competência da ANAC sobre os aeródromos delegados

Fernando Villela de Andrade Vianna* e André Pessoa Ayres**

Em 2022, a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) instaurou a Consulta Pública nº 09/2022, com o objetivo, dentre outros, de submeter à participação social possíveis alterações na Resolução ANAC nº 302, de 5 de fevereiro de 2014, que estabelece critérios para a alocação e remuneração de áreas aeroportuárias nos aeródromos públicos. Este tema foi objeto de artigo1 de um dos coautores deste texto, publicado em julho de 2022.

Dentre as alterações visadas, destaca-se a intenção de reduzir a competência regulatória da agência reguladora na fiscalização de aeroportos delegados a outros entes federativos, especialmente na alocação e remuneração de áreas aeroportuárias nesses aeródromos objeto de delegação2.

Neste sentido, foi proposta a inclusão de um § 4º, no artigo 1º, da Resolução ANAC nº 302/2014, com o seguinte teor – “§ 4º A análise e a fiscalização dos critérios para a alocação e remuneração de áreas aeroportuárias nos aeródromos delegados são de responsabilidade dos entes delegatários”.

Para justificar a transferência da responsabilidade de fiscalização nos aeródromos delegados para estados e municípios, a ANAC afirmou inicialmente que o principal objetivo da mudança seria a eliminação de conflitos de entendimento entre a agência e os entes delegatários. Destacou a agência, na justificativa apresentada na consulta pública, que a imposição de regras pela agência poderia entrar em conflito com as políticas públicas de descentralização e desenvolvimento da aviação regional.

No entanto, fato é que essa proposta de alteração normativa suscitou questionamentos de distintas matizes, inclusive da própria diretoria colegiada da agência à época da aprovação da referida consulta pública3, em razão de sua aparente incompatibilidade jurídico-normativa com o disposto na Lei Federal nº 11.182/2005, que criou a própria ANAC, além da Lei Federal nº 13.848/2019, também conhecida como a Lei Geral das Agências Reguladoras. 

Quanto à Lei da ANAC, os artigos 2º e 8º, incisos X, XXI e XLVIII4, estabelecem como competência da agência a análise e fiscalização da alocação de áreas aeroportuárias. A Lei das Agências Reguladoras, por sua vez, em seu artigo 34, §7º, dispõe que, no caso de delegação, subsistirá sempre a competência da agência como instância superior e recursal de decisões tomadas no exercício da matéria delegada. É dizer, não seria legalmente possível a delegação completa e irrestrita dessa atribuição legalmente estabelecida pelo legislador ordinário.

O período de contribuições da sociedade no âmbito da Consulta Pública nº 09/2022 já se encerrou e as sugestões recebidas ainda estão em fase de análise por parte da agência reguladora.

Não obstante isso, é possível antecipar a conclusão jurídico-regulatória da ANAC nessa matéria, na medida em que a agência foi instada a se manifestar recentemente em um processo específico envolvendo justamente um aeródromo delegado e um aparente conflito envolvendo a prestação de serviços auxiliares ao transporte. Especificamente, trata-se de denúncia apresentada por uma empresa perante a ANAC contra uma concessionária de um aeródromo delegado a um município.

Em síntese, alegou a denunciante que a concessionária estaria impedindo a prestação dos serviços de revenda de combustível de aviação, sob a justificativa de que já existiria outra empresa contratada para tal função e que o sítio aeroportuário não comportaria outra revendedora. Diante da denúncia, o Poder Concedente (município) foi instado a prestar esclarecimentos, tendo se manifestado favoravelmente às ponderações da concessionária.

Em recente decisão unânime da diretoria colegiada da ANAC, que pode ser considerada um leading case, proferida no processo SEI ANAC nº 00058.013951/2022-05, a agência concluiu que: (i) apesar de relativa autonomia dos delegatários para definição dos termos das concessões por estes realizadas, a delegação não afasta o poder-dever de fiscalização da ANAC sobre os aeroportos no território nacional; (ii) mesmo com a delegação para o município, a ANAC detém a integralidade do seu poder-dever de polícia sobre a atuação do aeródromo no exercício das suas atividades como operador aeroportuário; e (iii) a ANAC possui a obrigação de analisar, no caso concreto, o cumprimento do disposto na Resolução ANAC nº 302/2014, ainda que considere que o ente delegatário já o tenha feito. Com isso, a diretoria colegiada da ANAC decidiu pela adoção das medidas administrativas cabíveis para que outros interessados possam prestar seus serviços no sítio aeroportuário em igualdade de condições, preservando a concorrência e o interesse público, nos termos do contrato de concessão, do termo de delegação e da Resolução ANAC nº 302/2014.

Trata-se, sem dúvida, de louvável decisão que merece ser comemorada. Como um dos autores deste artigo já teve a oportunidade de sustentar, a participação da ANAC no processo fiscalizatório e decisório relacionado às áreas aeroportuárias nos aeródromos delegados é fundamental para assegurar a aplicação equânime e coerente das normas regulatórias e das diretrizes legislativas estabelecidas pelo legislador ordinário que tratam de políticas públicas setoriais de maior relevância, a exemplo da concorrência na prestação dos serviços auxiliares ao transporte. Ao fim e ao cabo, os aeródromos delegados continuam sendo de titularidade originária da União Federal e eventuais decisões dos entes federativos podem impactar a previsibilidade regulatória, com efeitos substanciais nos incentivos econômicos de agentes econômicos de toda a cadeia.

1 A Consulta Pública ANAC Nº 09/22 e o risco do esvaziamento do oversight (airconnected.com.br)
2 Apenas para fins de esclarecimento, cumpre observar quais áreas são consideradas áreas aeroportuárias. A questão é disciplinada pelo artigo 2º da Resolução ANAC nº 302/2014:
Art. 2º Para os efeitos desta Resolução, são consideradas como áreas aeroportuárias aquelas situadas no aeroportos e destinadas:
I – aos órgãos públicos que, por disposição legal, devam funcionar nos aeroportos brasileiros;
II – ao atendimento e movimentação de passageiros, bagagens e cargas;
III – aos concessionários, permissionários ou autorizatários dos serviços aéreos;
IV – aos serviços auxiliares ao transporte aéreo e de abastecimento de aeronaves;
V – ao abrigo e manutenção de aeronaves;
VI – à indústria aeronáutica; e
VII – às demais atividades desenvolvidas no aeroporto, tais como lojas de varejo, salas destinadas ao atendimento de clientes exclusivos (áreas VIP), aluguel de carro, estacionamento de veículos, serviços de lazer, bancos, restaurantes, lanchonetes, bares, hotéis e outros.
3 V. processo nº 00058.029624/2019-61.
4 Art. 2º Compete à União, por intermédio da ANAC e nos termos das políticas estabelecidas pelos Poderes Executivo e Legislativo, regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária.
(…)
Art. 8º Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe:
(…)
X – regular e fiscalizar os serviços aéreos, os produtos e processos aeronáuticos, a formação e o treinamento de pessoal especializado, os serviços auxiliares, a segurança da aviação civil, a facilitação do transporte aéreo, a habilitação de tripulantes, as emissões de poluentes e o ruído aeronáutico, os sistemas de reservas, a movimentação de passageiros e carga e as demais atividades de aviação civil;
(…)
XXI – regular e fiscalizar a infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária, com exceção das atividades e procedimentos relacionados com o sistema de controle de espaço e com o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos;
(…)
XLVIII – firmar convênios de cooperação técnica e administrativa com órgãos e entidades governamentais, nacionais ou estrangeiros, tendo em vista a descentralização e fiscalização eficiente dos setores de aviação civil e infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária.
*Fernando Villela de Andrade Vianna é sócio-fundador do VAK Advogados. Mestre em Regulação do Comércio pela NYU (New York University). Coordenador do Comitê de Regulação de Infraestrutura Aeroportuária da FGV Direito Rio. Árbitro e vice-presidente de Direito Aeroportuário do CBMA (Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem).
**André Pessoa Ayres é advogado sênior do VAK Advogados. Especialista em Direito Administrativo pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Mestre em Direito Político e Econômico pela UPM (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Certified PPP professional (CP3P-F).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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