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iNFRADebate: A cláusula de retomada na nova Lei de Licitações

Alberto Sogayar, Tácito Ribeiro de Matos, Ana Beatriz Quintas Santiago de Alcantara e Fernando Guimarães*

A Nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), dentre outras inovações, regulamentou, em seus artigos 99 a 102, a prestação de seguro garantia nas contratações de obras e serviços de engenharia de grande vulto. A inovação é a cláusula de retomada, a qual prevê que, em caso de inadimplemento do contratado, a seguradora deverá assumir a execução dos serviços e obras e, diretamente ou por intermédio de uma empresa subcontratada, concluir o objeto do contrato. 

A cláusula de retomada há muito é objeto de discussões acadêmicas. Em que pese se tratar de um mecanismo eficiente e que tem correspondência na legislação estrangeira, infelizmente foi regulada de forma imprecisa, o que deve gerar discussões, inclusive judiciais, tanto no âmbito do direito administrativo quanto naquele regulatório de seguradoras em si.

Quando estávamos discutindo os projetos de lei que culminaram na promulgação da Lei 8.666/1993, decidimos pelo afastamento deste mecanismo, apesar de, já naquela oportunidade, haver forte movimentação a fim de incluir na legislação brasileira o seguro garantia com cláusula de retomada.

Como se sabe, a Lei 8.666/1993 não albergou esse instituto, sob o argumento de que estaria voltado aos interesses das grandes empresas do setor, vez que somente elas teriam capacidade econômica e financeira para contratar seguro com essas características, violando o caráter competitivo do procedimento licitatório.

Da letra da lei aprovada, neste mesmo sentido, depreendem-se controvérsias jurídicas que recaem justamente sobre a equalização entre o princípio da ampla concorrência e da valorização da isonomia, bem como a preservação do julgamento objetivo com a realidade econômica e fática do setor de infraestrutura.

De certo que é fundamental que as concorrências promovidas pela Administração Pública ofereçam a oportunidade para que o maior número de empresas interessadas possa participar do certame. Entretanto, também é correto sustentar que é do interesse público que as contratações tenham garantias efetivas de execução, o que pode ser propiciado pela cláusula ora em comento.

A inclusão legislativa do instituto, portanto, se mostrou oportuna para evitar que projetos contratados pelo Poder Público, mas que, por diversas razões – inclusive inadimplemento do contratado –, não sejam concluídos.

Vale lembrar que, com o advento da Lava Jato, houve o esgotamento financeiro de todas (ou quase todas) as empresas do setor de engenharia, alterando radicalmente a capacidade das empresas em contratar seguros garantia de performance e, pior, resultando em abandono de obras e serviços por absoluta falta de condições econômicas para honrar o seu compromisso.

Embora se reconheça que a regulação da cláusula de retomada é oportuna, não se desconhecem os desafios.

As empresas seguradoras precificam o valor do seguro garantia tomando por base critérios atuariais, avaliando o risco do negócio segurado e, por óbvio, o risco contratado. 

Assim, não se pode negar que essa inovação jurídica afetará o caráter competitivo dos procedimentos licitatórios se considerado o momento de instabilidade econômico-financeiro e de reestruturação vividos pelo setor de engenharia. Há inúmeras empresas que tentam se reerguer e, para tanto, necessitam de novos contratos e novos projetos promovidos pela Administração Pública. Resta dúvidas se o mercado segurador assumirá riscos dessas licitantes (ou a que custo assumiriam).

Para minimizar o problema a nova lei (acertadamente, diga-se), limitou o seguro garantia ao percentual de 30% do valor inicial do contrato. Ocorre que, desta limitação, surge outro impasse mal regulamentado pela nova Lei de Licitações: Se o seguro garantia está limitado a esse percentual, o risco da seguradora também deveria estar limitado a 30% do projeto.

Explicamos! 

Caso um contratado venha a falhar e paralise a obra com avanço físico financeiro de 70%, o acionamento do seguro garantia estaria (em tese) adequado, pois caberia à seguradora o dever de executar o percentual correspondente a 30% da obra remanescente.

Mas imaginemos que a empresa contratada venha a inadimplir o contrato de EPC quando tenha executado um percentual correspondente a 10% (dez por cento) do valor inicial do contrato. Neste caso, em tese, a seguradora teria o dever de executar o correspondente a 90% (noventa por cento) do EPC, quando o risco assumido deveria ser de apenas 30% do valor inicial do contrato.

Executar 90% do EPC é totalmente diferente de cobrar um prêmio para assumir riscos equivalentes a 30% do valor do contrato! Executar o EPC significará auferir lucro ou assumir prejuízo de uma atividade fora do escopo de uma seguradora. As empresas de seguros deixarão de garantir riscos certo para assumir ônus ou bônus de uma atividade de empreitada?

De fato, o art. 102 da nova lei dispõe que a seguradora deverá assumir a execução e concluir o objeto do contrato. Ora, ao prestar o seguro garantia, o risco para a seguradora está limitado a 30% do valor do contrato. Ao assumir a execução das obras, não há mais de se falar em risco garantido, mas em lucro ou prejuízo na execução contratual.

Não obstante, no texto sancionado, temos grande indefinição jurídica sobre o instituto a ser implementado pela seguradora, se, de a par da possibilidade de uma subcontratação, estamos diante de uma sub-rogação indireta do contrato administrativo, o que por si só, aportaria diversas discussões correlatas. Há ainda, grande impropriedade ao definir que a seguradora deverá ou não assumir a execução contratual, o que gera insegurança sobre a discricionariedade atrelada à composição da matriz de risco dos contratos e se a matéria se trata ou não de discricionariedade do ente licitante.  

Outro ponto que também merece muita reflexão é a aferição do limite de responsabilidade técnica (e garantia) das obras executadas pela contratada inadimplente e das obras que caberiam à segurada (ou sua subcontratada).

Dada a complexidade de execução das obras públicas, pode não ser possível realizar um corte técnico preciso de quais obras foram executadas pela contratada e quais seriam de responsabilidade da seguradora. A nova lei nada dispõe sobre essa repartição de obrigações e garantias.

O Código Civil vigente, no seu Livro I, Título VI, Capítulo VIII, regula o contrato de empreitada. A norma versa sobre a garantia legal derivada da responsabilidade do empreiteiro/construtor na construção de edifícios e outras obras de considerável porte, pontuando um prazo de cinco anos em relação à solidez e segurança da obra. 

Suponhamos que, após o término das obras, a Administração Pública detecta haver necessidade de refazimento da empreitada em decorrência de deterioração, vício ou defeito das obras paralisadas para discussão da inadimplência do contratado.

Neste caso quem deverá responder pelos problemas detectados? O contratado original, visto que o vício se deu por conta de reflexos indiretos da parcela de obras por ela executado? Ou caberia exclusivamente à seguradora que assumiu a obra e seria responsável pela garantia integral perante a administração pública? Seriam o contratado e a seguradora solidariamente responsáveis pela solidez e segurança da obra? Deveriam as partes elaborar uma matriz de risco para delimitar a responsabilidade técnica da contratada e da seguradora por ocasião do acionamento do seguro? 

E a contagem do prazo de cinco anos previsto no art. 618 do Código Civil? Deveria ser suspensa em desfavor da contratada enquanto pendente a discussão da inadimplência e a retomada das obras pela seguradora?

Mas não é tudo. Salvo melhor juízo, as normas reguladoras do mercado de seguros estabelecem que as empresas seguradoras devem ter objeto social (significa atividade operacional) único – ou seja, prestar seguros. Como compatibilizar tal regra com a sub-rogação em contratos de EPC ou outros de execução de obras? Uma seguradora pode desenvolver uma atividade de construção civil?

Os técnicos da Susep (Superintendência de Seguros Privados) terão muito trabalho pela frente. Ou teremos que concluir que a sub-rogação dos contratos pelas seguradoras não é lícita, sendo necessário ajuste legislativo ou uma interpretação muito casuística e criativa para tentar “adequar” os artigos 99 a 102 às normas reguladoras do mercado de seguros.

Não será surpresa se tais incertezas e controvérsias aumentarem o valor dos seguros e, por conseguinte, das obras públicas. E esta conta será custeada, por óbvio, com recursos públicos, encarecendo ainda mais o “custo brasil”, fato que agravaria ainda o ciclo de liquidez dos empreendimentos

Todas essas questões ainda pendem de definição mais clara e, na nossa opinião, deverão ser objeto de enfrentamento pelos métodos de solução de conflitos dos contratos a serem firmado com base na nova Lei de Licitações.

*Alberto Sogayar, Tácito Ribeiro de Matos, Ana Beatriz Quintas Santiago de Alcantara e Fernando Guimarães são, respectivamente, sócio, advogados e estagiário da MAMG Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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