LEONARDO COELHO,
ADVOGADO E AUTOR DO LIVRO “REGULAÇÃO DE FERROVIAS”

A PRORROGAÇÃO ANTECIPADA É UM BOM MOMENTO
PARA SE REORDENAR A CASA”


Dimmi Amora, da Agência iNFRA

O advogado Leonardo Coelho passou os últimos quatro anos analisando modelos de regulação de ferrovias pelo mundo todo, do Japão aos EUA, da Austrália à Suécia.
A decisão foi tomada após o governo do Brasil iniciar um processo de mudança na regulação do setor, a partir de 2011. Para ele, o modelo escolhido pelo gestão anterior, e mudado no atual governo, de concorrência horizontalizada, parte de uma premissa ilusória de que trechos hoje abandonados podem voltar a operar se houver mais empresas concorrendo.
“É um pouco ilusório se pensar que a simples abertura do setor para novas concessionárias vai por si permitir a expansão da malha. As novas tendem a querer se concentrar nos trechos rentáveis, onde as atuais já operam”, disse o advogado carioca, mestre em Direito Público pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e professor da FGV, do IBMEC e da EMERJ.
As conclusões de Coelho estão no livro “Regulação das Ferrovias”, da Editora FGV, que será lançado no próximo dia 22, no Rio de Janeiro. Escrito em parceria com o economista Armando Castelar, a obra faz um passeio histórico sobre o sistema ferroviário no país, de seu início até os dias atuais, e discute medidas regulatórias para melhorar o transporte.
Sócio na LL Advogados, Coelho defende mudanças regulatórias no setor que, para ele, podem ser feitas na renovação antecipada dos contratos de concessão da década de 1990, que o advogado acredita ser “um bom momento para se reordenar a casa”. Mas o professor não acredita na retomada dos trens de passageiros no país de forma geral.
“Temos poucos centros urbanos que comportariam, em princípio, uma demanda suficiente para justificar esse tipo de transporte”, disse em entrevista à Agência iNFRAnesta semana.
Agência iNFRA – O que a concessão do setor de ferrovias trouxe para o país de ganhos e perdas em relação ao que se tinha antes?
Leonardo Coelho – A concessão veio como espécie de remédio para um cenário principalmente de déficit fiscal, de um alto índice de acidentes e de dificuldade muito grande de manutenção da malha e dos serviços. O primeiro grande ganho, do ponto de vista do poder público, foi estancar esse alto custo de manutenção. Do ponto de vista da participação do modal na economia, a concessão permitiu ampliar consideravelmente o volume de carga transportado dentro do período até agora e permitiu reduzir significativamente o número de acidentes. Há, no entanto, um outro lado, um questionamento em relação à expansão ou retração da malha. É uma questão que realmente precisa ser enfrentada, mas é uma questão que precisa ser olhada sob a ótica da competição entre diversos modais. É um pouco ilusório, e essa foi uma das conclusões a que chegamos ao fim do livro, se pensar que a simples abertura do setor para novas concessionárias vai por si permitir a expansão da malha. Não é exatamente isso. As novas tendem a querer se concentrar nos trechos rentáveis, onde as atuais já operam. A não ser que se criem canais para isso.
Todo mundo vai ficar onde tem carga?
Exato. Você pode fazer um planejamento, dirigir investimentos privados e públicos de forma conjugada, para fazer a malha avançar para esse ou aquele local, especialmente por conta de novos terminais portuários etc. Mas, pensar em novos entrantes, não necessariamente concessionários, pode ser o Operador Ferroviário Independente ou outras figuras, nas malhas existentes e que esses novos vão expandir para outros negócios é contrário à conclusão do interesse de negócio da concessionária atual. Ele não reduz a malha porque é menos vantajoso. Reduz porque é mais vantajoso, concentrando onde é mais rentável. E o novo entrante vai querer fazer a mesma coisa. Não vai fazer o que não dá lucro. Como você tem na infraestrutura ferroviária muitas vezes a figura do monopólio natural há, na verdade, um risco maior de inviabilizar os dois.
Há reclamações dos usuários de ferrovias dizendo que há uma concentração de tipos de cargas e que não há atendimento para todos, principalmente nessas malhas mais saturadas. Isso, de fato, ocorre no levantamento que fizeram?
De fato, pode acontecer. Mas é preciso pensar o setor ferroviário do ponto de vista sistêmico, o que implica em se analisar qual a forma mais eficiente dele funcionar. Imaginando que você tem uma empresa hipotética que faz todas as coisas verticalizadas: manutenção, construção, trilhos, organização das escalas, segurança. Tudo isso internalizado te traz um ganho de eficiência para evitar possíveis litígios entre cada uma dessas etapas. Quando se quebra a cadeia e se separa cada uma das atividades, você passa a ter um risco maior porque precisa tratar por contratos coisas que resolvia internamente, por meio de hierarquia. Então, o setor de ferrovias, em que pese ser um setor de infraestrutura de rede, ele não tem a mesma forma de operar de um sistema de energia elétrica ou de telecomunicações que permite essa desverticalização mais intensa da rede. Isso porque ele gera esses riscos e custos quando se quebra a cadeia econômica de funcionamento. Pelo que mostra a experiência comparada, trouxe mais dificuldades e prejuízos do que ganhos de eficiência. Não há ganhos comprovados.
Mas e os usuários?
É preciso, sim, tutelar a situação dos usuários não atendidos, ou sub atendidos. Só que faz mais sentido, por conta da questão econômica que falei, tutelar essas questões por meio de questões regulatórias, judiciais, do que repensar o modelo como um todo. Essa discussão que trazemos para cá, tentando dar uma sistematizada maior, até por conta das reformas regulatórias, a partir de 2011, e das ideias de desverticalização e open access etc, essas questões já ocorreram em outras partes do mundo antes. Essa distância temporal do momento em que elas já aconteceram em outros lugares permita que a gente aprenda com essas experiências.
Sempre é usada a experiência europeia de desverticalização trouxe benefícios. Mas as concessionárias dizem que não é a comparação adequada, por causa do tamanho do país e o tipo de carga aqui. Como os senhoras analisaram esta questão?
Discutimos bastante isso, em dois capítulos inteiros, para falar só da experiência internacional, com Reino Unido, Suécia, Alemanha, Espanha, seja em outros lugares do mundo que também tiveram essa discussão como México, Austrália, Japão, Rússia, China. Trazemos bastante estudos comparados. De fato, a Europa tem questões geográficas e culturais muito diferentes das nossas. Uso do trem para transporte de passageiros, países de pequenas dimensões, possibilidade de se atentar para a questão ambiental para saber qual modal o governo quer incentivar ou não. Nosso caso é um pouco diferente. Porque mesmo nesses modelos da experiência europeia, num cenário distinto, você tem fatores extra eficiência que pautam a discussão, e outros arranjos do setor. Na Suécia, por exemplo, você tem um incentivo grande para ferrovias para mantê-las em pé de igualdade com as rodovias, por elas serem menos poluentes. O governo está disposto a gastar mais com subsídios ao setor. Não é nossa realidade, porque estamos falando de infraestrutura para criar desenvolvimento. Se pudermos agregar essas preocupações, seria importante. Mas, no nosso caso, precisamos de eficiência. Na experiência da Alemanha, temos uma espécie de desverticalização entre estatais. Tem uma holding e 11 subsidiárias, todas estatais, totalmente diferente do nosso modelo. Quando se fala desse caso, estamos afastados dessa lógica. E a questão do Reino Unido talvez seja o melhor retrato das dificuldades que a desverticalização traz. Você gera interesse mais forte nas áreas e atividades lucrativas e acaba muitas vezes se desguardando de coisas que não estão ligadas diretamente à lucratividade, essenciais para a segurança e a qualidade do serviço.
Como assim?
Por exemplo, quando desverticalizo, e quem é dono do trilho não é dono do trem e da prestação do serviço, há discussão a quem cabe a manutenção. Já que o dono do trem não é dono do trilho, para ele pouco importa se a passagem dele está desgastando mais ou menos o trilho. E, para quem tem o trilho, importa muito. Mas não importa o tempo que o outro leva. Você vai criando potenciais pontos de conflito que demandam a necessidade de harmonizar isso de novo, o que não acontece numa mesma empresa, por ser uma concessionária vertical. Se você não tiver a manutenção funcionando, não presta o serviço direito e no final não recebe. Gera prejuízo para si próprio. Esse desalinhamento de interesses e assimetria de informações se revelam muito prejudiciais, e você acaba enfrentando o que se chama em economia de tragédia dos comuns. Quando você tem um bem único usado por vários players e ele não é de responsabilidade específica de um usuário, cada um quer utilizar o bem ao máximo, ainda que desgaste, o que é ruim para o sistema.
Tem solução para esses trechos pouco lucrativos dentro do sistema, em geral abandonados?
Olha, tem. Mas o primeiro ponto que tem que pensar é: os trechos estão abandonados por quê? Não tem carga? Não é economicamente viável? A concorrência com outros modais está desregulada em favor de outros? E aí analisar até que ponto o governo tem interesse que esses trechos sejam reativados. A questão da viabilidade econômica dos trechos depende de uma política pública de expansão de malha, com o governo firme nesse sentido. O setor ferroviário raramente, inclusive em experiências internacionais, sobrevive sem qualquer tipo de atuação governamental.
Isso é sempre subsídio?
Não necessariamente. Posso pensar em um modelo societário de participação do estado, regulação por incentivo que premie se expandir a malha. Ao longo da história, tivemos vários tipos de mecanismos de incentivos para a expansão da malha, como pagamento por quilômetro construído, o que foi benéfico para a expansão.  Mas por falta de fiscalização e por empreendedores que se aproveitaram desse sistema, gerou-se a construção de malhas muito sinuosas para gerar maior quilometragem e receber mais. Você tem vários mecanismos para incentivar, e é preciso pensar o arranjo de incentivos e ter isso em mente, se é um dos objetivos. O que não dá é para imaginar que uma concessão já existente, que é a lógica da divisão da malha ferroviária pautada em produtividade e segurança, tenham também que abarcar expansão sem que isso impacte no contrato. Esse é o grande ponto de inflexão na nossa opinião.
Temos então a tentativa do governo de renovar o contrato das malhas do país, colocando investimentos em contratos que não tinham essa obrigatoriedade, inclusive com investimentos fora da malha. É possível colocar tudo nesse contrato?
Sim, é possível. O contrato de concessão de serviço público é tipicamente mutável. Eu contrato algo por 30, 40, 90 anos. É impossível prever tudo o que vai acontecer nesse período. Desde que eu consiga respeitar aquela moldura que deve pautar a execução e as transformações, é possível incluir. Mas, como são alterações que chamamos de regulamentares, de como vai ser prestado o serviço, de novas obrigações para o concessionário e o concedente, isso tudo demanda concordância das duas partes. O poder público não pode impor isso porque tem repercussões econômicas que dependem da concordância das duas. Então, esse momento de prorrogação antecipada, é um bom momento para se reordenar a casa. Se, passados 20 anos das concessões analiso se tem um ponto ou outro que mudou a perspectiva -agora a produtividade é importante, mas quero expandir; ou não consigo incentivar a investir em gargalo-, esse é um bom ponto para o governo delimitar de novo as obrigações e fazer um rearranjo de meio de caminho para corrigir os rumos. É importante fazer isso e é, em princípio, muito interessante para todo mundo que está envolvido na questão.
Por quê?
O concessionário, nesse cenário de incertezas que está o país, ele tem a possiblidade de transformar em patrimônio jurídico algo que era mera expectativa, esse novo bloco de prazo contratual. Ele pode investir mais recursos em algo que é dele, que ele conhece como ninguém. É diferente de participar de uma nova licitação que não sabe se os estudos são fidedignos, se vai ter interferências. E, para o governo, poder fazer a economia retomar mais rápido, atrair mais investimentos em infraestrutura e irradiar isso para vários setores econômicos. É uma solução bastante interessante.
Mas tem a questão da licitação.
É obvio que tem o contraponto da questão da licitação. Essa é uma preocupação nossa no livro. Nos pautamos pela discussão dos pontos. Não tomamos partido para dizer que uma coisa é certa ou errada. Apresentamos discussões, opinamos sobre, mas colocamos as coisas para que criticamente as pessoas possam desenvolver seus entendimentos. Sempre há esta discussão sobre licitação, mas ela não é um fim em si mesmo. É quase um mantra do direito administrativo. Ela tem papel instrumental, que é escolher um bom operador para um serviço ou fornecedor. Se ela tem esse papel instrumental, toda vez que você prorroga um contrato, há uma análise do gestor público contratante para avaliar se é mais relevante para o serviço público seguir com o atual ou fazer uma nova licitação. Posso fazer uma nova e, eventualmente, se as condições do edital permitirem, contratar com alguém que não seja tão experiente, ou não conheça bem o negócio. E, por outro lado, posso, num momento de prorrogação, melhorar as vantagens do contrato para o poder público e a coletividade. É mais ou menos o que traz agora.
O modelo colocado em audiência pública, o da Malha Paulista, chegou a ser analisado?
Não está contemplado no livro por causa do timing editorial.
Mas o senhor acompanha isso?
Os modelos acompanham um pouco o que se vem tentando fazer com os editais que estão feitos para a prorrogação antecipada. Mas confesso que não acompanho no detalhe e não estou vendo todos os desdobramentos desse negócio.  Parece que vai se fazer o modelo vertical, tentando acumular a experiência do período com as melhores práticas.
Outra crítica, voltando aos usuários, é que as ferrovias acabaram concedidas a grupos empresariais que têm interesse em transportar a própria carga. Isso ocorre em outros lugares? São impostas restrições, seja na concorrência ou no período de gestão?
Isso acontece. Como o nível de investimento no setor ferroviário é muito grande, é comum que se tenha o interesse primário na obtenção dos meios de infraestrutura. Quem tem a carga, precisa escoar. Isso gera potencialmente um uso da infraestrutura contra concorrente. Daí você ter diversos estudos sobre compartilhamento da infraestrutura, formas, do ponto de vista concorrencial e regulatório, que você deve equacionar a questão. Pode acontecer, mas retomamos ao ponto das soluções concretas de intervenção regulatória e concorrencial. Porque do ponto de vista sistêmico é menos custoso para a eficiência do sistema todo tratar assim. E, segundo, porque quando falamos de concorrência, não podemos olhar apenas para dentro do próprio setor, e nas ferrovias isso é especialmente sensível. Há três concorrências. Pelo serviço, que é a que acontece na licitação, pessoas concorrendo para ter o serviço. No serviço, que é a intramodal, entre malhas, o que é raro de ocorrer na ferrovia porque as malhas são estruturantes e é difícil ter duas que concorrem entre si, especialmente num país grande como o nosso. E entre os serviços, que é a intermodal, que no setor de ferrovias é muito significativa. A ferrovia sofre concorrência da rodovia, eventualmente até do avião para coisas pontuais. Em alguns lugares do país, do hidroviário. Então, você tem uma tutela do avanço do setor de concorrência intermodal e tem uma tutela regulatória dentro do próprio modal. O que precisa é aprimorar os mecanismos de usuário investidor, usuário dependente, e aprimorar a forma de tutela regulatória da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) sobre esses casos para evitar que a infraestrutura seja utilizada como barreira de entrada, para praticar preços abusivos e etc.
Isso é mais barato e eficiente?
Sem dúvida.
Você acha possível voltarmos a ter transporte de passageiros em longa distância por trens no Brasil?
Possível acho, mas é pouco provável. A não ser em casos muito específicos em que isso se mostre viável. Depende de inversão de recursos muito grandes, lembrando das discussões do trem de alta velocidade. Mas, eventualmente, um polo ou outro pode permitir isso.
Por causa do modelo ou por falta de passageiro?
Não é o modelo. É a viabilidade econômica mesmo. Temos poucos centros urbanos que comportariam, em princípio, uma demanda suficiente para justificar esse tipo de transporte. Mas não tratamos isso a fundo no livro, que ficou mais no transporte de carga.
É possível, então, dentro do nosso sistema, ter uma ferrovia que não seja tão concentrada em heavy haul como é hoje?
Sim. Esse momento de prorrogação antecipada permite dispor e pensar o modelo para conseguir usar a malha para mais coisas. Há projetos mais específicos que incorporam mais tecnologia no transporte, saindo um pouco do granel, passando por contêiner, cargas mais valiosas. É preciso pensar soluções ferroviárias não só para esses casos em que tem um sistema mais ou menos montado com mina-ferrovia-porto, ou coisa parecida, para ramais que se viabilizem em trechos secundários das próprias ferrovias, que possam ligar setores de distribuição de produtos em regiões metropolitanas. Há um espaço para se explorar.

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