Desafios para a universalização do saneamento básico no Brasil

*Fabio Sertori

Dada a sua importância para assegurar o direito à saúde e à moradia digna, nossa Constituição atribuiu expressamente à União, Estados e Municípios a competência comum para promoção de melhorias nas condições de saneamento básico. A opção constitucional pela inserção dos serviços de saneamento básico no âmbito de atuação das três esferas federativas bem ilustra a relevância atribuída pelo constituinte à regular prestação destes serviços e aos benefícios diretos e indiretos que a sua efetiva disponibilidade gera àqueles por eles alcançados.

Em verdade, à época da Assembleia Constituinte de 1988, a situação do atendimento à população quanto ao chamado ciclo de saneamento básico – que vai desde a captação e atribuição de potabilidade à água até a coleta e tratamento de esgotos sanitários – ainda era bastante precária, ao passo que os direitos sociais e de dignidade da pessoa humana consolidavam seu caráter constitucional e de fundamento do Estado Democrático.

De fato, sob a ótica constitucional da promoção do bem-estar social como dever estatal, os serviços de saneamento básico possuem notória relevância, tendo em vista que, quando efetivamente prestados e em níveis satisfatórios, possuem, comprovadamente, impacto direto na redução de doenças e das taxas de mortalidade. Aliás, a visível relação entre saneamento básico e saúde pública – nitidamente existente no plano fático-científico – também foi expressamente reconhecida pelo constituinte, haja vista à fixação da “participação na formulação da política e na execução das ações em saneamento básico” dentre as atribuições do Sistema Único de Saúde – SUS.

Pois bem. No que atine à questão da titularidade dos serviços, necessário mencionar que, não obstante a “promoção de melhorias” no sistema de saneamento básico consista em competência comum a todas as esferas da federação, não há, na Constituição, expressa designação do titular e responsável pela prestação desses serviços públicos – o que foi alvo, por muitos anos, de intensa divergência doutrinária e jurisprudencial, mormente em razão do aparelhamento, nas décadas de 1970 e 1980, de Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs em praticamente todos os Estados – derivada da política instituída pelo PLANASA, que condicionava o repasse de recursos da União para saneamento à existência de Companhia Estadual  – o que reforçava a tese da possível titularidade estadual destes serviços.

Pode-se afirmar que essa divergência quanto à titularidade dos serviços – dada a insegurança jurídica que implicava – consistiu em importante fator de atraso na realização dos necessários investimentos na universalização dos serviços, tendo persistido, inclusive, com a aprovação da Lei Federal nº 11.445/2007, que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, mas deixou de abordar categoricamente o tema da titularidade dos serviços.

Tal questão acabou finalmente dirimida quando da decisão, em fevereiro de 2013, pelo Supremo Tribunal Federal – STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.842/RJ. Na ocasião, decidiu-se que (i) a titularidade dos serviços de saneamento básico é municipal e (ii) nos casos de Regiões Metropolitanas é possível o compartilhamento da titularidade entre o Estado e os Municípios, conforme vier a ser definido em lei complementar estadual que discipline a questão.

Com isso, apenas a partir de 2013 tanto os Municípios quanto os Estados e suas respectivas CESBs passaram a ter clareza no que concerne à titularidade dos serviços de saneamento básico e seu exercício.

Não obstante, desde a edição da Lei Federal nº 11.445/2007, fixou-se claramente no titular dos serviços a obrigação de instituir a política pública de saneamento básico em seu território, alçando-se o Plano de Saneamento Básico no principal instrumento dessa política. A partir de 2013, tornou-se fora de dúvidas que o papel de planejar as ações de curto, médio e longo prazos com vistas à universalização da prestação dos serviços de saneamento básico é do Município.

Nesse sentido, a Lei Federal nº 11.445/2007 prevê que o Plano de Saneamento deve ser elaborado antes da concessão da prestação dos serviços a uma empresa privada ou CESB, com um amplo diagnóstico dos sistemas, objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização dos serviços, devendo prever programas, projetos e ações para o atingimento das metas, inclusive com a identificação de fontes de financiamento, e mecanismos de avaliação sistemática da eficácia das ações programadas.

Ademais, a mesma lei prevê que o Plano de Saneamento em vigor quando da concessão deve ser cumprido na íntegra pela empresa privada ou CESB, bem como que os planos de investimentos e projetos integrantes do contrato de concessão (ou contrato de programa, no caso das CESBs) devem ser compatíveis com o Plano de Saneamento.

Do exposto até aqui é possível concluir que – ao menos desde 2013 – há instrumentos claros que permitem ao titular dos serviços planejar a universalização dos serviços em seu território e exigir do prestador dos serviços – seja ele uma CESB ou empresa privada – o cumprimento das metas de curto, médio e longo prazos necessárias ao atingimento desse objetivo.

Todavia, para que seja efetivamente possível não só acompanhar como assegurar que as metas sejam atingidas pelo prestador dos serviços, avulta em importância a atividade de regulação e fiscalização, que nos termos da lei pode ser exercida diretamente pelo município ou delegado por este a entidade regional. Isto porque cabe à entidade de regulação a verificação do cumprimento do Plano de Saneamento pela empresa concessionária, seja ela privada ou pública, bem como editar normas complementares com metas progressivas de expansão e de qualidade dos serviços e os respectivos prazos. É igualmente objetivo da regulação garantir o cumprimento do contrato de concessão (ou programa) e das metas estabelecidas.

É justamente no planejamento e na efetiva regulação e fiscalização dos serviços com vistas ao atingimento progressivo das metas de cobertura e atendimento que está, atualmente, o maior desafio à universalização os serviços de saneamento básico no Brasil.

Como visto acima, não falta fundamento legal para as ações de planejamento, regulação e fiscalização das concessionárias privadas ou públicas de saneamento. E, ao menos desde 2013, não há que se falar que divergências acerca de quem é o efetivo responsável originário por essas atividades.

No entanto, falta efetividade e equidade na aplicação da lei. As normas que exigem o prévio planejamento, a fixação de metas de curto, médio e longo prazos para a universalização dos serviços, previstas tanto no Plano de Saneamento quanto nos contratos de concessão (ou de programa); as normas que obrigam as entidades reguladoras a exigir o cumprimento do Plano de Saneamento e das metas nele fixadas, bem como nos contratos de concessão (ou de programa); todas essas normas são muitas vezes ignoradas tanto pelo titular dos serviços (o Município) quanto pelas entidades reguladoras (sejam elas municipais ou regionais), mormente nos casos em que as CESBs são as concessionárias dos serviços.

Com efeito, para que se possa efetivamente progredir no que concerne à prestação regular e universal dos serviços de saneamento básico, não basta apenas que o Plano de Saneamento e os contratos de concessão (ou de programa, no caso das CESBs) prevejam com clareza as metas de curto, médio e longo prazo a serem alcançadas; é indispensável que as entidades responsáveis pela regulação e fiscalização dos serviços atuem efetivamente para exigir que o combinado será efetivamente honrado pelos prestadores dos serviços, sejam eles privados ou públicos, bem como que o descumprimento reiterado das condições acordadas leve efetivamente à intervenção e até mesmo à caducidade dos contratos.

Sem aplicar a lei indistintamente a todos os prestadores dos serviços públicos de saneamento básico, com a prévia fixação de metas claras de regularidade no fornecimento de água, tempo de atendimento, qualidade do efluente tratado, redução de perdas físicas e comerciais, incremento progressivo do atendimento e cobertura, dentre outras, com vistas a uma prestação universal e integral dos serviços, e sem uma fiscalização rigorosa do efetivo cumprimento das metas por concessionárias privadas ou públicas, não haverá incentivos reais para a superação dos enormes desafios enfrentados em escala nacional para que a população brasileira tenha acesso universal e integral a serviços de qualidade e eficientes, consideradas as peculiaridades locais e regionais de um país continental como o Brasil.

*Fabio Sertori é advogado, sócio da equipe de infraestrutura do Cascione, Pulino, Boulos & Santos Advogados e vice-presidente jurídico do Instituto Smart City Business America (ISCBA) e co-fundador da Startup 4 Cities.
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