Democracia emparedada

Fábio Vasconcellos*

O governo militar do presidente Jair Bolsonaro tem produzido de forma sistemática um profundo estrago institucional na nossa democracia. Há inúmeras, incontáveis ações com esse claro objetivo, fruto de um modus operandi típico de grupos com baixíssima crença democrática. Todas as vezes em que se viram limitados por outros poderes, atribuição esperada do modelo de pesos e contrapesos, o presidente e seus liderados reagiram publicamente, procurando atacar a legitimidade dessas instituições. 

O alvo, a direção do conteúdo e o tom das reações, muitas delas oriundas do núcleo militar, demonstram, por outro lado, que o governo Bolsonaro tem constituído no Brasil uma espécie de democracia emparedada. Nessa perspectiva, o controle social e político da sociedade e suas instituições são corrompidos, limitados e enfraquecidos pelo uso constante da ameaça, no caso, da ameaça de ruptura. O perfil autocrático do chefe do Executivo e a ausência de uma cultura dos valores democráticos dentro do governo orientam esse método. 

Com quase dois anos de mandato, podemos afirmar que não se trata de um problema puramente de forma ou falta de trato. É uma estratégia com objetivo específico de poder e controle. O foco é construir e erguer espantalho, não importa realizar ou não o golpe, importa que a sociedade e as suas instituições tenham essa noção do “perigo”. É uma espécie de guerra psicológica, mas com dois efeitos concretos: limitar o papel das instituições, como no caso da não abertura de processo de impeachment, por exemplo; e ampliar os limites políticos de atuação do Executivo.    

Embora possamos identificar o marco da democracia emparedada em janeiro de 2019, quando Bolsonaro forma o seu gabinete, ocupando diversos cargos com militares, a noite do dia 3 de abril de 2018 pode ser considerada o ponto-chave nessa direção. Naquele dia, o comandante do Exército, general Villas Bôas, publicou um twitter em que mandava um recado claro para o STF (Supremo Tribunal Federal) que, no dia seguinte, julgaria o habeas-corpus que poderia livrar o ex-presidente Lula da prisão. Villas Bôas não apenas demarcava ali o nascedouro do tipo de relação institucional baseada na ameaça, com uma escancarada insinuação de risco democrático, mas, sobretudo, a ação desinibida da participação dos militares na arena pública da política. 

Após o início do governo, o emparedamento ganhou novo status. Agora ele passava a ser performado pelo presidente da República e seus aliados dentro e fora do governo. Ampliaram-se as vozes, as ações e a sistemática: a sociedade e suas instituições passaram a ser o alvo permanente, era preciso fazer circular e impregnar a noção do risco “sempre maior” de ruptura. É como num jogo, em que um sujeito blefa, na esperança de influenciar a atuação do adversário; que ele se contenha sob a possibilidade de algo que não existe concretamente, mas que está no horizonte do possível. Efeito danoso de limitação sobre o comportamento das instituições e que, curiosamente, parte do próprio governo.  

As manifestações de apoiadores pedindo o fechamento do Congresso e do STF e, o que é pior, com a participação do presidente da República, mostraram que a estratégia manteria o seu curso durante o mandato de Bolsonaro. Em maio de 2020, foi a vez do general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, entrar no jogo. Heleno publicou no Twitter uma nota endereçada à “Nação Brasileira”. O general estava irritado porque o STF cumpriu o protocolo de mandar para a Procuradoria-Geral avaliar um pedido de investigação do celular do presidente. No texto, Heleno afirmou que a nota era um “alerta” às autoridades, e por fim, acrescentou que a decisão do STF poderia “ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Não é preciso listar aqui as inúmeras intervenções públicas de Bolsonaro com o mesmo objetivo, basta lembrar que ele já declarou em vídeo “acabou, porra!”, ao se referir a decisões dos ministros do Supremo. A estratégia de exercício do poder e controle por meio do emparedamento aparece também quando lança dúvidas sobre a possibilidade de não haver eleições em 2022, caso não tenha voto impresso. Mas não só. Bolsonaro afirmou que o regime democrático depende das Forças Armadas, e declarou que existe “o seu” Exército. A troca do comando das três Forças, além do ministro da Defesa, em março, faz parte do enredo construído pelo presidente e seu grupo. A leitura que prevaleceu na imprensa e analistas era que Bolsonaro queria militares mais interessados em participar do debate público e demonstrar apoio ele, Jair Bolsonaro.

O que vimos meses depois? O novo ministro da Defesa, Braga Netto, e os chefes das três forças divulgaram nota no início de julho endereçada à CPI da Covid. Irritados com a CPI, que avança descobrindo as entranhas da compra de vacinas, a nota dos militares afirmava que “as Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às Instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”. A nota fez um contorcionismo que revelava muito do tipo de democracia presente no imaginário militar. Ao mesmo tempo em que ameaçava uma instituição da democracia, o Senado Federal, colocava os militares como aqueles que estão na defesa da democracia.

Braga Netto voltaria aos holofotes semanas depois, após a revelação feita pelo Estadão de que ele, por meio de interlocutores, teria enviado um recado para a lideranças do Congresso Nacional. Caso não houvesse o voto impresso, bandeira do presidente Bolsonaro, não haveria eleições em 2022. Braga Netto publicou nota em que não negou ter feito a ameaça. Afirmou apenas que “não se comunica com presidentes de outros Poderes por meio de interlocutores”. No mesmo comunicado, considerou ser seu papel institucional falar da legitimidade do debate sobre o voto impresso, que tramita com risco de derrota no Congresso. Sobre o conteúdo da suposta ameaça, nenhuma palavra.

O que temos visto, portanto, é uma estratégia permanente de emparedamento da sociedade e das suas instituições por meio da ameaça, e com efeitos profundos na nossa democracia. Bolsonaro nunca teve apreço pela democracia e essa noção orienta o seu governo e um certo grupo de militares. A desenvoltura com que passeiam em praça pública ameaçando a sociedade (imprensa, outros poderes e críticos), deixando-a refém do risco democrático, sem que isso tenha uma reação mais contundente das instituições, revela o tamanho do estrago precificado. Se sobrevivermos até 2022, o próximo governo terá um trabalho hercúleo de reorganizar as relações entre as instituições, livrando a sociedade do julgo da ameaça como forma de poder e controle.        

*Fábio Vasconcellos é cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da ESPM-RJ.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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