Balanço estatístico da EPE mostra transformação do cenário energético nos últimos 10 anos

Roberto Rockmann*

A transformação da matriz elétrica brasileira nos últimos dez anos aponta os desafios que o setor terá para destravar a agenda regulatória de modernização e chegar a um novo rearranjo que reduza assimetrias presentes e os subsídios.

A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) lançou na última sexta-feira (2) o balanço energético 2023, um retrato dessas mudanças dos últimos dez anos, que mostra que o consumo per capita de energia elétrica no Brasil mantém-se estagnado: de 2.306 kWh (kilowatt-hora) por habitante em 2013 para 2.363 kWh por habitante ano passado.

Por outro lado, expõe como a matriz reforçou a presença de fontes renováveis variáveis, como eólicas e solares, além de ter ganho a participação de fonte descentralizada. Apenas de 2021 para 2022, por exemplo, o documento aponta que a geração pela fonte solar cresceu 80%.

Essas transformações, retratadas pelos dados da EPE, também mostram que há urgência nos aperfeiçoamentos regulatórios, explica o presidente da consultoria PSR, Luiz Barroso.

“O setor de 2023 é bem diferente do de 2004. Agora há novos desafios que precisam ser equacionados com urgência, como o empoderamento do consumidor com a geração distribuída, o crescimento da geração renovável a custo marginal zero e não despachável, o que muda a lógica das reformas dos anos 1990. O Brasil implementou com muito atraso elementos pensados há décadas. Temos que agora correr contra o atraso, mas precisamos também de uma direção”, disse Barroso à Agência iNFRA.

Solar com fôlego
A geração anual total de geração solar foi 30.000 GWh (gigawatt-hora) em 2022, segundo o documento. Há dez anos, quando foi editada a Resolução 482 da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), que permitiu a mini e microgeração solar, a geração total anual era de ínfimos 5 GWh.

Tudo indica que continuará a crescer. Dados de distribuidoras indicam que de outubro a janeiro, durante o auge dessa corrida solar, mais de 35 GW (gigawatts) de capacidade instalada em pedidos chegaram às concessionárias. Há incerteza em relação a quantos projetos sairão do papel, mesmo assim o avanço deverá ser considerável.

A consultoria PSR estima que a capacidade instalada da GD (Geração Distribuída) solar chegará a 41 GW em 2031, acima da estimativa da EPE, de 33 GW. Parte do crescimento se explica pela lei 14.300, que concedeu subsídios à conexão para os projetos com outorgas até 7 de janeiro desse ano.

Hoje, a GD solar já tem 20 GW instalados com pouco mais de dois milhões de consumidores, segundo a Absolar (Associação Brasileira da Indústria Solar) que também se tornam um fator de pressão extra sobre parlamentares, reguladores e o poder concedente. A GD solar representa uma abertura do mercado, mas apenas para os consumidores com maior poder aquisitivo. Estima-se que boa parte de quem investiu em telhados solares gasta mais de R$ 700 mensais. Isso já traz algumas discussões.

Segundo o documento da EPE, a geração solar pulou de 5 MW para 7,4 GW, mas contabiliza somente os parques centralizados. Os números não contemplam a revolução da geração descentralizada, permitida pela Resolução 482 da ANEEL. Tudo indica que a GD solar continuará a crescer.

O avanço das fontes renováveis variáveis não veio apenas do sol. A potência instalada das eólicas cresceu mais de dez vezes em dez anos: de 2,2 GW em 2013 para 23 GW ano passado. O número deverá aumentar, mas também sob incerteza. A lei 14.120 estabeleceu subsídios para a conexão de fontes renováveis, como eólicas e solares, que protocolassem outorgas até 2 de março de 2022.

Hidrelétricas perderam espaço
Se as eólicas e solares ganharam presença, as hidrelétricas perderam participação relevante, enquanto o setor só fala em modernização ou repotenciação. Novas grandes hidrelétricas não são mais debatidas em público. Houve perda relativa da participação dessas usinas, que responderam ano passado por 63% da eletricidade do país.

No entanto, a participação delas e de térmicas não é desprezível. Por quê? No fim da tarde e início da noite, quando já não há mais geração de energia solar, por exemplo, há um aumento da carga demandada das usinas movidas a força da água ou de combustíveis fósseis.

Quem está na sala de operações do ONS (Operador Nacional do Sistema) nota esse efeito: se vê uma rampa em que se observa um aumento da demanda de energia e a perda do fator de geração da GD solar. É como se todos os aparelhos de ar-condicionado e chuveiros fossem ligados a todo o tempo. “Nesse momento, quando os reservatórios estão cheios, se podem usar as hidrelétricas; caso não, seria preciso térmica”, disse à Agência iNFRA o diretor geral do Operador Nacional do Sistema (ONS), Luiz Carlos Ciocchi.

“Quanto mais GD solar, maior essa rampa”, também explicou à iNFRA o presidente da Isa Cteep, Rui Chammas. Não à toa isso tem feito a transmissora estudar novas tecnologias, como armazenamento de energia via bateria. Esse avanço das renováveis na geração de energia cria inequações. Primeiro, podem-se criar problemas de qualidade de frequência e variação de voltagem. Em alguns momentos, pode haver excesso de oferta de carga, o que dificulta a regulagem, não se consegue baixar uma térmica ou modular uma hidrelétrica.

“O uso de bateria, de armazenamento passa a ser essencial. Isso será a realidade, não tenho a menor dúvida”, diz Chammas, que espera que o leilão de reserva de potência do fim do ano possa considerar a neutralidade tecnológica.

Além de ter de avançar na regulação desse leilão, que poderia ocorrer no segundo semestre, o governo precisará debater mecanismos de resposta à demanda e sistemas de precificação que possam valorizar atributos diversos das fontes. Não é um ponto pacífico. As geradoras térmicas veem isso como um potencial problema

Emissões
Nos últimos dez anos, o setor avançou mantendo suas emissões de efeito estufa sob controle. Os dados da EPE apontam que em 2013 chegaram a 53 milhões de toneladas de dióxido de carbono, atingiram o pico em 2014 – 71 milhões – e caíram para 22 milhões de toneladas ano passado, sendo que em 2021, quando na crise hídrica as térmicas a gás natural chegaram a responder por 30% da geração de eletricidade do país, ficaram em 55 milhões de toneladas.

Há dúvidas sobre o futuro desses números, por duas razões. Primeiro, a lei 14.182, que autorizou a capitalização da Eletrobras, prevê a contratação de 8 GW de térmicas com 70% de inflexibilidade, o que pode aumentar as emissões. Segundo: em 2025 devem expirar contratos de cerca de 10 GW de térmicas mais poluentes e eficientes. Serão substituídas por empreendimentos mais eficientes? Serão substituídas por fontes renováveis? Serão perguntas a serem respondidas pelo governo.

Quando o Novo Modelo foi desenhado em 2003 e 2004, a multiplicidade de atores era muito menor, e a diversificação, idem. A GD solar trouxe milhões de novos consumidores e a potencial abertura do mercado atraiu diversos nos players, de operadoras de telefonia, que já começam a lançar produtos de assinatura de energia solar, a grandes grupos de energia, como Raízen, Vibra e Ultra.

Em janeiro de 2013, o setor assistiu à sanção da lei 12.738, criada a partir da MP 579, que iniciou uma espiral de judicialização, que tem se intensificado. Dez anos depois, a modernização, o fim dos subsídios e a racionalidade são cada vez mais defendidos, mas a dificuldade é transpor o discurso para a prática.

“Tudo indica que no futuro teremos energia a preços muito baixos, que não viabilizam nova oferta que forneceria os serviços que esse sistema precisa. Essa oferta possivelmente viria remunerada por encargos, que torna a tarifa muito cara para o consumidor. A permanecer assim, só se salvará arranjos capazes de evitar o pagamento dos custos desse legado de ineficiências. Isso aponta na direção de mudanças regulatórias urgentes, incluindo trabalhar nas consequências da possível inviabilidade do modelo atual”, diz Barroso, que em 2016 capitaneou a CP (Consulta Pública) 33, que reforçou o debate da modernização.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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