Autores de estudo do Banco Mundial defendem mais concorrência para ferrovias no Brasil

Agência iNFRA 

Os autores do estudo do Banco Mundial sobre competitividade nas ferrovias brasileiras, Mariana Iootty e Guilherme de Aguiar Falco, responderam por e-mail a questionamentos da Agência iNFRA sobre o trabalho. 

As respostas apontam para a necessidade de uma regulação que possa considerar as características de cada ferrovia e atraiam maior concorrência para o setor. A entrevista completa, realizada por e-mail, segue abaixo: 

Agência iNFRA – O que motivou a realização do trabalho? 

Mariana Iootty e Guilherme de Aguiar Falco – O trabalho foi realizado no contexto de um amplo programa de cooperação técnica – iniciado ao fim de 2018 – entre Banco Mundial e a SEAE/SEPEC (Ministério de Economia) cujo objetivo é identificar políticas e regulações que estejam de alguma maneira dificultando dinâmicas de mercado e concorrência na economia. Transporte e comércio internacional foram selecionados como focos de análise tanto pela sua capacidade de impactar a competitividade de toda a economia quanto pela identificação preliminar da presença de políticas e regulações potencialmente restritivas. Nesse sentido, cabe destacar que as atividades desenvolvidas no âmbito desse programa não se restringiram ao setor ferroviário, incluindo também o setor de transporte rodoviário, portuário e aéreo, serviços profissionais, e defesa comercial (antidumping). 

No caso específico da nota técnica sobre o setor ferroviário, o objetivo principal era compreender de que maneira a atual governança do setor, incluindo legislação e modelos de contratação pública, atua para prevenir ou causar restrições à dinâmica de mercado, e quais alternativas poderiam ser criadas para melhor adaptar o arcabouço regulatório tanto em relação às características econômicas do setor quanto aos objetivos de política eventualmente traçados pelo governo. Assim a nota técnica não trata especificamente ou somente do PLS 261; mas destaca, do ponto de vista de dinâmica de mercados e eficiência, quais problemas regulatórios deveriam ser solucionados. Durante a elaboração da nota, nossa equipe conversou com inúmeros stakeholders, desde usuários, órgãos reguladores, departamentos do Ministério de Economia e Ministério de Infra, além de consultores especializados no tema no Brasil, de modo a delinear um documento amplo que esperamos seja útil para o debate que se desenrola no setor nesse momento. 

O país está preparando um grande investimento no setor ferroviário dentro de uma proposta de renovação antecipada de concessões existentes. No entanto, o trabalho aponta que a falta de concorrência intramodal se dá prioritariamente pela inadequação do marco regulatório. Essas renovações podem ampliar a falta de concorrência intramodal apontada? 

É importante diferenciar concessões específicas, que regulam diretrizes, investimentos, comportamentos de agentes específicos, do marco regulatório aplicado a todo o setor. O estudo indica que o atual marco regulatório apresenta sinais de desgaste, e nesse contexto a renovação antecipada pode trazer riscos. 

O marco atual serviu de forma eficaz ao seu propósito inicial de viabilizar a substituição do capital público pelo capital privado ao longo das últimas duas décadas. Possibilitou ao governo exercer o papel de regulador ao invés de prestador de serviços, gerou alívio fiscal ao mesmo tempo em que possibilitou aumento de capacidade, qualidade e segurança da malha por meio de investimentos privados. 

Entretanto, muita coisa mudou no setor desde que o modelo foi desenhado. A estrutura e a dinâmica de mercado se alteraram, com processos de concentração horizontal e vertical e aumento de demanda que acentuaram falhas de mercado e colocaram maior pressão sobre o marco regulatório – mais precisaria ser feito para criar os incentivos necessários para que os agentes se comportem de forma eficiente, como destaca a nota. 

Ao mesmo tempo, aumentaram as expectativas em torno do papel que o setor poderia desempenhar na economia, em especial aumentando sua participação na matriz de transportes não apenas em termos de volume, mas em termos de diversificação de produtos transportados, especialmente agrícolas. E mais importante, a preços mais competitivos dos que ofertados por outros modais, como o rodoviário. Afinal, não adianta ter ferrovia se o serviço não é mais eficiente que suas alternativas. Para isso, é preciso não apenas realização de investimento, mas que esse investimento se traduza em maior variedade de serviços e acesso a preços competitivos. 

Caso o setor fosse caracterizado por forte concorrência – inter ou intra modal, novos investimentos seriam direcionados a aumentos de eficiência. Na ausência de concorrência efetiva, seja intra ou inter modal, cabe à regulação criar incentivos mínimos. Se a regulação é insuficiente, existe o risco de que investimentos, mesmo que aconteçam, não realizem as expectativas em torno de aumento de eficiência, diversificação de pauta, acesso e preços. Esse desafio permanece com ou sem renovação antecipada de concessões. 

Ao mesmo tempo, a depender de como a renovação é desenhada, esses riscos podem ser mais ou menos exacerbados. Alguns dos riscos que deveriam ser considerados incluem: (i) ausência de leilão reduz a possibilidade de o governo alocar ativos e direitos aos prestadores mais eficientes, ao mesmo tempo em que reduz a possibilidade de que eventuais retornos supra- competitivos sejam partilhados com o governo (por meio de outorgas) ou com consumidores (por meio de tarifas mais baixas) – esses custos deveriam ser levados em conta; (ii) a renovação da concessão pode tornar mais complexa a revisão do marco regulatório, em especial a flexibilização de investimentos privados e a regulação de variáveis controladas pelo contrato – eventual renovação deveria ser desenhada de modo a facilitar ao invés de opor ou dificultar a evolução regulatória projetada para o setor. 

Em um momento, o trabalho aponta que pode ser mais eficiente trazer soluções regulatórias regionalizadas ou por malha e que dificilmente um modelo único funcionará para todas. Há em nosso arcabouço legal atual permissão para esse tipo de separação? O que deveria ser feito para permitir o avanço dessa proposta? 

Do ponto de vista macro, o arcabouço atual apresenta um regramento uniforme para todas as regiões – concessão, regras de compartilhamento de de ativos, tarifas teto, metas de capacidade, acesso a terceiros etc. Essa realidade pode gerar distorções uma vez que alguns trechos ou malhas podem apresentar dinâmicas competitivas complementarmente diversas e, assim, demandar intervenções regulatórias diferentes. Algumas malhas têm perfil privado – se justifica pela demanda exclusiva de um agente, e não do público em geral –, e poderiam ser geridas de forma complementarmente privada, o que o marco atual não permite. 

Outros trechos são viabilizados pela demanda do público em geral, mas o ofertante possui características de monopólio natural ou poder significativo de mercado que justifiquem regulações mais incisivas, desde tarifas teto a regras de acesso e mediação de conflitos. Outros trechos podem apresentar dinâmica de mercado mais intensa, e a regulação de variáveis econômicas poderia ser mais flexível, tanto em tarifas quanto em acesso, por exemplo. Uma regulação capaz de se adaptar a características de diferentes mercados poderia viabilizar de forma mais eficaz a entrada e a expansão de ofertantes assim como incentivar eficiência. Para tanto, seria preciso alterações legais e regulatórias, estudos detalhados para identificar as necessidades regulatórias de diferentes malhas assim como alinhamento com a visão de governo para o setor. 

O PLS 261 é criticado em parte das suas diretrizes, especialmente a migração das atuais concessionárias para o regime de autorização e sua pouca capacidade de promover concorrência intramodal. É possível aproveitar algo desse PLS para o desenvolvimento do setor? 

O PLS tem pontos positivos que devem ser enaltecidos. De forma geral, a diretriz do projeto está correta. É preciso desenhar soluções que revitalizem a participação sustentável e de longo prazo do setor privado. Nesse contexto, a proposta de substituir o modelo de concessões, ligado à propriedade pública de ativos e seus consequentes custos de transação, por um modelo de autorizações é bem-vindo. A questão é como desenhar um regime privado que mantenha as características necessárias de regulação econômica sem restringir de forma desnecessária estratégias privadas de negócio. 

Como o setor no Brasil é bastante multifacetado, e em geral não competitivo, o papel da regulação ainda é crucial e o PLS precisa aprimorar os mecanismos de transição entre concessão e autorização assim como do marco regulatório que irá controlar a atividade de autorizatários. Dito isso, o PLS já prevê algumas regras específicas bastante alinhadas com promoção efetiva do setor privado em outros países, como a exploração de ativos imobiliários ao longo da malha, regulação da possibilidade de usuários investidores, assim como a iniciativa de se regular a alienação de trechos ociosos de malhas sob concessão, o que é essencial para o uso eficiente dos ativos já existentes. 

Todavia, todos esses pontos anteriormente elencados devem ser contrastados com os riscos à promoção da concorrência também trazidos pelo PLS. Também são três os principais riscos. 

O primeiro deles está associado a discriminação regulatória entre agentes concorrentes, no caso concessionários e autorizatários. Nesse sentido, é importante ressaltar que o regime de autorizações proposto pelo PLS provocaria alterações regulatórias que não se restringem a desnecessidade de licitação. As alterações propostas abarcam também o fim de tarifa teto, o fim de compromissos de investimento, de prestação de contas ao poder concedente, de regras de oferta a terceiros, acesso à infraestrutura, exploração e compartilhamento da malha. 

Na prática, isso significaria que empresas concorrentes teriam suas variáveis estratégicas afetadas de forma completamente diferente pelo Estado, com impacto direto na sua capacidade competitiva. Os critérios considerados para migração de regimes, nesse contexto, se torna essencial – a migração pode significar a viabilidade econômica de malhas e empresas específicas. Ao mesmo tempo, a depender dos critérios, a possibilidade de migrar para autorização pode ser uma vantagem competitiva significativa comparada a agentes entrando no mercado e tendo que investir do zero em sua infraestrutura. 

Além disso, existe o risco de sufocar ainda mais a já insuficiente concorrência intramodal. O atual regulamento do OFI é insuficiente para viabilização de concorrência intramodal e o PL prevê ainda menos abertura para essa modalidade, fazendo referência apenas a livre contratação ou respeito às regulações já existentes. Ao mesmo tempo, o PL não discute as modalidades de direito de passagem e tráfego mútuo, especialmente a respeito de eventual retirada da restrição de compartilhar ativos para transportes que iniciem e terminem na mesma malha. 

O terceiro risco trazido pelo PL se refere a potencial incompatibilidade entre a flexibilidade regulatória proposta no projeto e a estrutura de mercado e a dinâmica competitiva atualmente existente no setor. Neste sentido, acreditamos ser importante discutir em que medida o novo arcabouço proposto pelo PL é capaz de criar os incentivos econômicos adequados ao melhor funcionamento do setor. Existem questões em aberto. Por exemplo: a construção ou aquisição de infraestrutura para exploração em regime privado criará dinâmica competitiva a ponto de tornar desnecessária regulações de tarifa teto e acesso a infraestrutura sem se analisar o nível de concorrência no mercado afetado? Mais importante, caso uma nova infraestrutura seja efetivamente construída e opere em concorrência a uma concessionária, faz sentido impor uma tarifa teto ao concessionário e deixar o preço livre para o autorizatário? Por fim, como lidar com a eventual situação na qual serviços acessórios, cujos operadores apresentam posição dominante, não apresentem possibilidade de contestação? 

Enfim, o PL traz benefícios e riscos. E acreditamos ser importante debater e balancear esses prós e contras. 

Numa análise geral, avaliam como as atuais ações de governo no desenvolvimento do setor? Estão ou não no caminho apontado no trabalho? 

Entendemos que num contexto de restrição fiscal, a discussão sobre ampliação de infraestrutura e melhoria da qualidade dos serviços no setor passa eminentemente pela participação do capital privado. Ao mesmo tempo, é crucial que o governo crie uma matriz de incentivos capaz de não apenas atrair investimentos privados como também promover eficiência na alocação de recursos e prestação de serviços. Entender o papel exercido pela presença (ou ausência) de concorrência nesses mercados é ponto chave, e deveriam receber maior atenção nas discussões de política para o setor.

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