As regras de limitação à participação em licitações: o caso do STS10 no Porto de Santos

Adalberto Vasconcelos*

Nos últimos anos, a operação portuária no Brasil, em linha com as transformações mundiais observadas, vivenciou período de grande expansão.

O marco legal do setor, especialmente com as alterações introduzidas pela Lei nº 12.815/2013, e as iniciativas adotadas desde então contribuíram significativamente para a ampliação da capacidade e para a introdução de melhorias operacionais no setor, seja por meio da realização de novas licitações e/ou a prorrogação de contratos de arrendamentos portuários, seja pela outorga de autorização para a instalação de terminais de uso privado, com repercussão direta nos níveis de serviço e de eficiência portuária.

Ao longo desse processo ou mesmo como resultante dele, observa-se o amadurecimento e o aperfeiçoamento das instituições que definem as políticas públicas e desenvolvem os mecanismos de planejamento setorial, bem como estruturam o arcabouço regulatório do setor.

Esse contexto, entre outros fatores, propiciou intenso choque de oferta e ganhos de eficiência operacional, com repercussão positiva na provisão de serviços e no nível de preços.

É dessa perspectiva que se entende que as regras de participação em licitação de novos terminais portuários devem ser adequadamente calibradas, sob pena de, com o propósito de fomentar a concorrência no setor, em verdade, impor limitações à participação que não se coadunam com as características do mercado, tornando-as ineficazes ou prejudiciais à eficiência do setor e das cadeias produtivas que dele dependam. Ademais, eventuais restrições econômicas e regulatórias desnecessárias à concorrência desse importante setor estratégico de infraestrutura poderão contribuir fortemente para o aumento do denominado custo-Brasil.

No momento, há verdadeira batalha de narrativas sobre a questão em torno da licitação do terminal para movimentação e armazenagem de cargas conteinerizadas no Porto de Santos/SP (STS10). Em linhas gerais, observa-se acentuada preocupação com a participação no certame da empresa BTP (Brasil Terminais Portuários S.A.), joint-venture formada pelos operadores portuários TIL (Terminal Investment Limited) e APM Terminals – líderes do mercado mundial de movimentação de contêineres – controladas pelas companhias de navegação pertencentes aos conglomerados econômicos MSC e Maersk, respectivamente.

Com efeito, a análise concorrencial, empreendida com base na metodologia disposta no Guia para Análise de Impacto Concorrencial de Novas Outorgas de Terminais Portuários (Guia AIC-TP)1 e constante do ato justificatório da licitação da área de arrendamento STS10 – Nota Técnica nº 216/2021/CGMP-SNPTA/DNOP/SNPTA2 – avaliou os diversos cenários que poderiam advir do leilão do referido terminal e concluiu, no tocante à concorrência no mercado, que “Maersk e MSC não possuem capacidade de fechamento de mercado a montante com efeitos no mercado a jusante, onde atua a BTP, bem como BTP não possui capacidade de fechamento de mercado a jusante com efeitos no mercado a montante, onde Maersk e MSC atuam”.

Por sua vez, em relação à concorrência pelo mercado, portanto, em relação à competitividade do certame, entendeu apropriado estabelecer “vedação da participação de consórcios entre empresas armadoras e suas correspondentes Controladoras e Controladas de grupos econômicos distintos que detenham titularidade de exploração de instalações portuárias dedicadas a movimentação e armazenagem de contêineres e carga geral no Complexo Portuário de Santos”.

Nesses termos, seria preservado “o desejável acirramento da competição do certame, sem cercear os direitos individuais desses agentes econômicos de participar do pleito”. Desse modo, em face da citada análise, a ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), na minuta de edital atualmente submetida à audiência pública, propôs, em termos práticos, limitar a participação de consórcio formado entre a MSC e a Maersk, diretamente ou por meio de suas controladoras e controladas, uma vez que eventual consórcio entre as empresas apenas poderia ser declarado vencedor na hipótese de não haver outro proponente, admitida, contudo, a participação individual de ambas ou em consórcio com outras empresas.3

A densidade da análise empreendida, por si só, evidencia o elevado nível de amadurecimento institucional da agência reguladora, hoje munida de instrumento próprio para subsidiar as análises concorrenciais no setor, nos limites de suas atribuições, por meio do GUIA AIC-TP.4

A análise relativa à concorrência no mercado revela profundo conhecimento da dinâmica do mercado e da tendência mundial de consolidação do setor.

Apesar de ter sido bastante conservadora na definição do mercado relevante geográfico5, restrito ao Portos de Santos/SP, há o expresso reconhecimento dos efeitos deletérios que a restrição de capacidade tem sobre o ambiente competitivo do referido mercado.

Os diversos cenários hipotéticos analisados nesse mercado reforçam a importância do “incremento da capacidade dinâmica de movimentação e armazenagem de contêineres em virtude da outorga do STS10”. Em dado momento, a agência reguladora assevera:6

“27.20. Em que pese a BTP se encontrar acima de sua capacidade instalada desde 2019 – alcançando 119% em 2020, note-se que a utilização de capacidade instalada é elevada também nos dois outros terminais, a partir de 74%. Em decorrência, o Porto de Santos, em 2020, está com a utilização da capacidade instalada de 85% para a movimentação de contêineres, denotando uma limitada capacidade ociosa do complexo portuário para esse perfil de carga, frente a demanda crescente de cargas no porto.

(…)

27.23. Entende-se existir rivalidade efetiva no mercado de terminais portuário do Porto de Santos, contudo, no cenário atual, essa rivalidade no MR Base está sendo constrangida pela ausência de capacidade ociosa disponível no mercado para acomodar a demanda atual. Portanto, o arrendamento do terminal STS10 mostra-se imprescindível para se reestabelecer o ambiente competitivo saudável entre os terminais portuários no Porto de Santos. (grifos não constantes do original)

Observa-se que, no entender da ANTAQ, acertadamente, a preocupação de ordem concorrencial exsurge tão somente em decorrência dos efeitos deletérios de eventual saturação de capacidade, não havendo apreensão com o nível de concentração do mercado.

Cumpre ainda notar que a consolidação no mercado de movimentação e armazenagem de cargas conteinerizadas tem se tornado o padrão nos principais portos do mundo. Veja-se, a esse respeito, o recente acontecimento no porto de Roterdã/Holanda. Em 2020, a autoridade antitruste holandesa autorizou a aquisição do terminal da APM Terminals pela HPH (Hutchison Port Holdings), que passou a alcançar cerca de 70% de market share no referido porto7, que é o maior porto de toda Europa em volume de carga movimentada. Em suma, a autoridade antitruste holandesa, após analisar o caso concreto, constatou ser improvável que a HPH consiga ser capaz de aumentar preços unilateralmente e continuar com a mesma demanda.

Outro exemplo é o Porto de Hamburgo/Alemanha, terceiro maior porto europeu em volume de carga movimentada, que possui quatro terminais de contêineres, sendo que três deles pertencem ao grupo HHLA (Hamburger Hafen und Logistik AG). Já o Porto de Piraeus, na Grécia, possui apenas um explorador no mercado de contêiner (Cosco). Desse modo, o entendimento da ANTAQ é deveras alinhado com a tendência mundial de consolidação do mercado de terminais de contêineres.

Com efeito, no que se refere à competição pelo mercado, a restrição proposta, ainda que não seja totalmente impeditiva a participação das referidas empresas, as quais possuem participação acionária em terminal no Porto de Santos/SP, carrega em si certo preconceito com os arranjos verticalizados cada vez mais comuns na cadeia produtiva do setor, e, por assim dizer, não reconhece ou atribui pouca relevância às eficiências operacionais que possam advir dessa modalidade de concentração, em particular, no mercado em questão.

Conforme já salientado anteriormente, nos últimos anos, houve significativa consolidação horizontal no mercado de transporte marítimo, no qual também são comuns os arranjos operacionais – alianças – entre armadores. Em grande medida, o referido movimento decorre de mudanças tecnológicas introduzidas no setor que propiciaram a utilização de embarcações cada vez maiores.

Esse processo, conhecido como “jumborização”, trouxe grandes economias de escala e de escopo. No entanto, se por um lado contribuiu para a redução do custo variável do frete, por outro, ampliou os custos fixos e intensificou a necessidade de capital, o que, consequentemente, requer patamar mínimo de cargas necessárias (em valor e em quantidade) para tornar o transporte marítimo economicamente viável.

Por conseguinte, a “jumborização” das embarcações também teve reflexos sobre os terminais portuários, os quais necessitaram passar por adaptações, como ampliação de berço de atracagem e de armazenagem, além de demandarem maiores investimentos em equipamentos de embarque, desembarque e movimentação de contêineres, entre outros.

Ademais, a mudança no modo de produção dos usuários dos serviços de transporte marítimo, orientado pelo conceito just in time, acentuou a importância da previsibilidade dos serviços logísticos como um todo, de modo que a integração vertical, a jusante e a montante, apresenta-se como resposta eficaz para a obtenção de ganhos de eficiência operacional e melhorias nos níveis de preço.

Dessa perspectiva, a regra de limitação à participação prevista na minuta de edital, apesar de lastreada em metodologia robusta e consistente e de não vedar a participação de armadores no certame, soa um pouco excessiva. Note-se que, mesmo no caso de eventual vitória da BTP, a mesma análise considera não haver preocupações concorrenciais no que tange ao ambiente concorrencial após a outorga, haja vista o reconhecimento de rivalidade efetiva no mercado de terminais portuários e que, muito provavelmente, será espelhada na competição pelo ativo, por ocasião do leilão.

Nesse sentido, é importante rememorar preocupação externada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) ao se manifestar sobre a própria minuta do Guia AIC-TP:8

“Nesse contexto de dificuldade de se calibrar a intervenção para garantir que seus efeitos restrinjam-se a neutralizar os efeitos concorrenciais negativos projetados e de necessidade de se ampliar o número de concorrentes nos certames de licitação, a inserção de regras restritivas em leilões de outorga de terminais portuários deve ser considerada com a máxima cautela, e as regras propostas devem se restringir à mínima intervenção necessária para que a própria regra não acabe por restringir a concorrência ou limitar a eficiência dos mercados.” (grifos não constantes do original)

A par dessas considerações, é oportuno salientar que muito em breve a execução do decorrente contrato de arrendamento se dará em um porto público, explorado em regime de concessão e com incentivos econômicos desenhados para induzir a gestão eficiente do porto e dos agentes que nele atuam, o que, por certo, contribuirá para assegurar ambiente competitivo saudável, sem prejuízo do exercício das atribuições da ANTAQ e da autoridade antitruste. Nesse sentido, veja-se a disposição constante da minuta de contrato de concessão do Porto de Santos/SP:

“14.2.4.7. A Concessionária deverá estimular sempre que possível a competição intraporto, devendo evitar que, por meio da celebração de contrato com Explorador de Instalação Portuária, surja concentração de mercado com potencial prejuízo à concorrência e aos usuários.” (grifos não constantes do original)

Para além das supostas controvérsias sobre as regras de participação no certame e apesar das limitações impostas à participação da MSC e da Maersk, consorciadas, a mais acertada decisão já está em curso e merece ser festejada: a continuidade do programa de arrendamento portuário, sem prejuízo da continuidade das discussões em torno da concessão do Porto de Santos/SP, que, pela sua relevância e dimensão, exigirá ampla atenção de todos os stakeholders.

1 Elaborado pela EPL (Empresa de Planejamento e Logística S/A), sob coordenação da SNPTA/MInfra (Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura) e com a colaboração da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) e do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Naquela ocasião, ainda uma minuta.
2 http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%20105/_25__2__5022626_Nota_Tecnica_216.pdf – acessado em 16 de março de 2022.
3 Texto constante da minuta de edital submetida à audiência pública:
“22.14. Um possível consórcio entras as empresas MAERSK e MSC só poderá ser declarado vencedor na hipótese de não haver outro Proponente que tenha apresentado proposta válida
22.14.1 A vedação se estende às empresas controladas conjuntamente pelas empresas MAERSK e MSC que detenham titularidade de exploração de instalações portuárias dedicadas à movimentação e armazenagem de contêineres e carga geral nos Complexo Portuário de Santos.”
http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%20105/_26_20220128_Minuta_de_Edital___Par_004.2021_STS10.pdf – acessado em 16 de março de 2022.
4 Mesmo quando considerada a minuta do texto.
5 A análise chegou a avaliar mercado relevante ampliado (MR Ampliado), que considerava a “movimentação e armazenagem de carga conteinerizada no Porto de Santos, TCP Paranaguá, TUP Itapoá, TUP Portonave, terminal do porto organizado de Itajaí – atualmente APM Terminals Itajaí e Sepetiba Tecon, o que diluiria ainda mais a participação de mercado da BTP e de suas concorrentes diretas no Porto de Santos.
6 Nota Técnica nº 216/2021/CGMP-SNPTA/DNOP/SNPTA, de 24 de dezembro de 2021.
7 Nota Técnica nº 216/2021/CGMP-SNPTA/DNOP/SNPTA, de 24 de dezembro de 2021.
8 http://web.antaq.gov.br/Sistemas/WebServiceLeilao/DocumentoUpload/Audiencia%20105/_30_ANEXO%202%20-Tratativas_MInfra-Cade.pdf  – acessado em 16 de março de 2022.
*Adalberto Santos de Vasconcelos é CEO da ASV Infra Partners – Consultoria em Infraestrutura.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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