Análise: ‘Subprime energético’ demandará subsídios e reestatizações para evitar quebra generalizada

Roberto Rockmann*


A cinco meses do inverno no hemisfério Norte, a crise energética na Europa se agrava a cada semana, com reflexos de curto, médio e longo prazo em todo o planeta. As contas cada vez mais altas que chegam aos milhões de consumidores do outro lado do Atlântico e as perspectivas de que a pressão de custos se arrefecerá apenas em 2025 já fazem vítimas corporativas. Alemanha e França saíram na frente em socorros financeiros a empresas, casos da alemã Uniper, maior importadora de gás da Alemanha, e da EDF, uma das maiores concessionárias de serviços de energia da Europa.  

Subprime energético 
Isso pode ser o prenúncio de um longo movimento que pode representar um marco mundial, com resultados semelhantes ao do subprime em 2008, quando os bancos centrais dos Estados Unidos e da União Europa comandaram uma reestatização nunca vista antes e injetaram liquidez trilionária para evitar quebras sucessivas de grandes instituições financeiras. Subsídios e reestatização estarão em pauta e irão mudar o desenho de participações de gigantes. 

Segundo dados da “The Economist”, os estoques europeus de gás poderão iniciar o inverno em 60%, cerca de 68 bilhões de metros cúbicos (uma demanda igual à do inverno de 2021 significaria o consumo de 310 bilhões de metros cúbicos), enquanto ganham eco ameaças de que a Rússia restringirá ainda mais o envio de gás nas próximas semanas. Os invernos europeus que mudaram rumos de guerras continentais e mundiais agora irão ditar a profundidade e extensão da crise atual.

Ameaça de racionamento na Europa 
Instituto Bruegel aponta que o gás russo tem representado 20% da demanda energética da União Europeia nos últimos meses, metade dos 40% do fim de 2021. Essa diferença tem sido preenchida principalmente por importação de GNL (gás natural liquefeito) dos Estados Unidos, que estaria perto do limite e sob ameaça futura. Está sendo acompanhada por lupa uma decisão da Agência Ambiental dos Estados Unidos de modernização de refinarias no Texas e Louisiana para reduzir emissão de poluentes e que poderá retirar capacidade de exportação de GNL. 

Há preocupação nos governos alemão e francês com a estabilidade do fornecimento da Rússia neste segundo semestre. Não ter gás russo, uma hipótese que já vem sendo discutida pelos governos europeus, implicaria um racionamento de 15%. Isso traria repercussões para a economia mundial, seja em PIB, seja em inflação, seja nas metas do Acordo de Paris.  

A alta dos preços da energia já responde por um terço da inflação global, segundo cálculos da “The Economist”. Um erro estratégico de décadas, a excessiva dependência da Rússia, não se resolverá em dias, meses. Isso poderá implicar pressões de médio prazo sobre o preço do gás natural até 2024. O energético é importante combustível para, por exemplo, fertilizantes, nicho que já tem sofrido com a guerra entre Ucrânia e Rússia. 

Nova primavera árabe? 
Os preços de alimentos e energia em alta trazem preocupações políticas. “Veremos uma nova primavera árabe que afetará muito mais geografias?”, questiona Rodrigo Novaes, analista da PSR. Sri Lanka e Gana são dois exemplos recentes de como a espiral inflacionária leva a população às ruas e os governos à beira do caos.  

A alta dos preços de energia e a ameaça de racionamento na União Europeia poderão ter impacto sobre cadeias globais como alimentos, bens de capital sob medida, automotivo e química (a maior unidade da Basf no mundo está na Alemanha). Isso coincide com lockdowns ainda em atividade na China e cidades chinesas deixando o confinamento. O capex dos projetos renováveis permanecerá pressionado em, pelo menos, 36 meses. 

E o Brasil? 
Enquanto países desenvolvidos discutem aperfeiçoamentos ao mercado livre, a agenda de modernização no Brasil está emperrada e as indicações do relator do Projeto de Lei 414/2021, Fernando Coelho Filho, são de que o projeto só seja votado após as eleições, o que traz receio de que, a depender do resultado, ele ainda leve meses para ser apreciado pelo novo governo.

A conjuntura internacional serve de alerta de que, além de avançar na atrasada agenda de modernização, será preciso progredir também nas regras de segurança de comercialização de energia, assunto que vem sendo discutido desde 2019 pelos reguladores e empresas.  

A sofisticação do mercado livre exigirá um marco regulatório atualizado que detalhe a função por exemplo do supridor de última instância, além de medidas infralegais que melhorem o sistema de garantias prévias. É preciso discutir a possibilidade de permitir que os órgãos regulatórios tenham acesso a dados sobre as posições dos agentes. Evitar problemas maiores será essencial. Desde 2021, metade das comercializadoras do Reino Unido faliu e uma grande parte foi colocada sob administração especial com injeção de mais de 2,5 bilhões de euros.  

A crise na Rússia, uma autocracia, tem feito a democracia e os princípios de estado de direito ganharem importância em um mundo em que países buscarão segurança energética. Ninguém consegue depender exclusivamente de sua oferta interna de energia, o que levará sempre a relações com outros países. Negociar com democracias tem seu valor. 

O cenário atual coloca também sob perspectiva as cadeias globais de valor. Relatório da Agência Internacional de Energia da semana passada aponta que há uma superconcentração da cadeia solar na China. Com planos ambiciosos de médio e longo prazo de reduzir dependência do gás russo, países europeus já elaboram planos de ampliação de investimentos em eólicas e solares.

Isso coincide com a reforma cambial sancionada pelo governo brasileiro no fim de 2021, o que deve reforçar a chegada de novos bolsos para financiar projetos. De outro lado, assessores das campanhas dos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Ciro Gomes começam a pensar em políticas industriais que poderiam ser usadas nas fontes renováveis. 

Custos maiores
O cenário atual é de pressão de custos. O capex de projetos renováveis já está em alta. A CTG, que está trabalhando para implementar projetos eólicos e solares, está agora começando a avaliar os preços de máquinas para os empreendimentos. Em eólicas, o preço das turbinas está 30% mais elevado que em comparação com 2021, diz o vice-presidente, Evandro Vasconcelos. 

Em conversas reservadas com gente de mercado, bancos privados já começam a apontar que, com alguns projetos de infraestrutura captando a IPCA mais 8% e os incertos cenários de inflação e recessão globais, a participação de bancos públicos terá de ser reforçada no próximo governo. Mais um tema para aquecer a campanha eleitoral, que já está nas ruas. A energia estará no topo das agendas mundiais no curto e médio prazo.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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