Análise: Com sucessivas crises e altos custos, setor elétrico vive cenário desafiador

 Roberto Rockmann*

Um ano atrás, o então ministro Bento Albuquerque estava envolvido na crise hídrica. A ameaça de um novo racionamento e de cortes de energia durante as tardes do fim do período seco estavam na ordem do dia do governo e empresários.
 
A Claro, uma das maiores operadoras de telefonia do país, montou um comitê de crise com várias áreas da empresa. Traçaram-se várias medidas: de eficiência de energia elétrica a investimentos na instalação de baterias e geradoras para evitar ficar sem luz à tarde. “O pior cenário era ficar sem energia durante quatro horas às tardes, ainda bem que o país não chegou a isso”, diz o diretor de infraestrutura, Hamilton Silva.
 
Da escassez à abundância
Com chuvas abundantes a partir de outubro, o cenário do setor elétrico mudou drasticamente. Sem ameaça de abastecimento, mas com contas a pagar. O PLD, que tinha superado R$ 600 o MWh em setembro, despencou. Desde o início do período úmido em dezembro passado, o atual está entre os 20 mais úmidos do histórico. No Sudeste, os reservatórios estão acima de 60%. O susto passou, mas os problemas permanecem. Além de problemas financeiros, assiste-se à fragilidade das instituições e à crise mundial nos setores de gás e combustíveis, com repercussões de curto e médio prazo no Brasil.
 
A presidente da Abeeólica (Associação Brasileira da Energia Eólica), Elbia Gannoum, participou em 2001 de todas as reuniões da Câmara de Gestão da Crise de Energia, órgão criado para gerenciar o racionamento. Em 2001, foi assessora do Ministério de Minas e Energia e depois do Ministério da Fazenda. Para ela, um ano depois da crise hídrica de 2021, nada foi consertado.
 
Sem governança
“Foi colocado um torniquete a preço alto. A gente tem vivenciado um pêndulo difícil de ser arrumado: ora estamos em excesso, ora em falta, quando vivemos um excesso estamos pagando a escassez. Qual é a solução de longo prazo? De fato, dimensionar o sistema para operar de maneira adequada. Temos os recursos, as ferramentas, a inteligência, competência, mas não temos governança.”
 
Congresso é o planejador
O poder dos órgãos reguladores está em xeque diante de parlamentares cada vez mais fortes. O Congresso se tornou planejador, ao criar o jabuti que embutiu a contratação de 8 GW de térmicas na lei que autorizou o Executivo a permitir a capitalização da Eletrobras. “O Congresso impôs essa contratação, uma medida de cima para baixo. Não se estudou o problema, não se atendeu aos interesses do setor. Esse caso de imposição de térmica com gás importado é um insulto à racionalidade técnica e econômica”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e que no racionamento de 2001 estava em uma das superintendências da agência.
 
A crise de governança se soma a uma crise financeira e a uma estrutura cada vez mais pesada de tarifas no mercado regulado, o que por sua vez estimula a geração distribuída solar e a migração para o mercado livre. A inadimplência das contas de luz será um problema cada vez maior, assim como a fuga de clientes de maior poder aquisitivo do mercado regulado em busca dos benefícios da geração distribuída solar. A crise hídrica também teve seu peso sobre a tarifa.
 
Nos cálculos da consultoria PSR, até agora, cerca de 35 milhões de unidades consumidoras sofreram reajustes de 18% em média. Discutem-se medidas conjunturais para reduzir o impacto. “Era a hora de o ministério e a ANEEL exigirem valor quase zero para os contratos legados e liberar o mercado”, opina Edvaldo Santana.
 
Uma das razões de o país ter vivenciado a ameaça de nova crise de racionamento ano passado foi a dificuldade em mensurar a energia disponível de fato nos reservatórios das hidrelétricas. Ao assumir o Ministério de Minas e Energia, em janeiro de 2019, Bento Albuquerque escutou do então presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., que havia duas prioridades: a primeira era resolver o GSF (risco hidrológico) em relação aos débitos existentes no curto prazo; a segunda, aperfeiçoá-lo estruturalmente. Mudou o ministro, a questão estrutural permanece.
 
A Lei 14.052 de 2020 repactuou as dívidas atrasadas, mas o problema futuro permanece. A revisão das garantias físicas das hidrelétricas ainda é uma incógnita. Como o MRE (Mecanismo de Realocação de Energia) é jogo de soma zero, até se chegar ao número neutro, existirão perdedores e ganhadores. O governo irá adiante da revisão à beira da eleição? Sem revisão, qual será a posição da Eletrobras, que passou pelo processo? Os 8 GW de térmicas contratados no jabuti da Eletrobras, com 70% de inflexibilidade, terão qual impacto sobre o MRE?
 
Modernização
A abertura do mercado via PL 414 parece enterrada, mas a discussão de modernização traz também a separação lastro e energia, fio e energia. Hoje os dois serviços, de conexão ao sistema elétrico e de venda de energia, estão misturados na mesma conta. Com a separação, haveria dois contratos – que poderiam ser cobrados na mesma conta – um para a conexão ao sistema elétrico, paga por uma taxa fixa mensal, e outro com o fornecedor de energia de escolha, proporcional ao consumo. As empresas fornecedoras de energia, por seu lado, arcariam com os riscos de falta ou sobra de energia, como em qualquer negócio competitivo.
 
As usinas hidrelétricas e seus reservatórios funcionam como uma bateria para o sistema, sendo usadas, por exemplo, no suprimento ao horário de ponta. Elas têm perdido participação relativa na matriz, mas sua importância se consolida diante do avanço de fontes intermitentes. Isso sinaliza que é preciso um novo sistema de precificação da água acumulada nos reservatórios das hidrelétricas, com a separação de lastro e energia, uma necessidade de mudança regulatória e discutida há mais de cinco anos. Não há o mesmo apelo dos dutos.
 
À beira de uma possível crise histórica, o fortalecimento das instituições e a alocação adequada de custos e riscos são fundamentais para o setor se fortalecer. O cenário é complexo por combinar: corrida eleitoral, finanças fragilizadas, instituições em xeque, disrupções na cadeia global de fornecimento por conta dos recentes lockdowns na China e uma crise mundial de combustíveis e gás, intensificada pelo conflito entre Ucrânia e Rússia. Não à toa já se escutam vozes crescentes defendendo que seja instalado um novo Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico (Re-SEB), como o de 1996, que lançou as raízes do modelo baseado no capital privado.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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