Análise: Abertura do mercado de energia será o foco do setor nos últimos 3 meses do ano

Roberto Rockmann*

Lançada em 26 de julho, a proposta de abertura do mercado livre de energia elétrica para a alta tensão em 2024 foi sacramentada, praticamente, dois meses após, em 28 de setembro, diante de uma maioria de agentes favoráveis à medida.

Já a decisão de lançar, em consulta pública a ser encerrada em 1º de novembro, uma minuta de portaria de abertura total a partir de 2028 deverá ser cercada de opiniões divergentes e uma série de questionamentos que trarão desafios a serem superados e que, se concretizada, poderá parar na Justiça ou no Congresso. A alta tensão é um segmento que paga demanda diferenciada, tem maior conhecimento do setor e já opera com medidores eletrônicos.

Na baixa tensão, com mais de 85 milhões de medidores e diferentes realidades regionais, não há tarifa binômia, pagam-se rede e energia, os medidores não têm complexidade tecnológica e as distribuidoras são obrigadas pela legislação a contratar energia no longo prazo. Mais: nos últimos anos, custos, encargos e ineficiências foram se avolumando e sendo alocados em grande parte no mercado cativo.

Divulgada na sexta-feira passada, a minuta de portaria para todo o mercado, colocada em consulta pública quarenta e oito horas depois da abertura da alta tensão, surpreendeu até os mais otimistas agentes. Foi bem recebida, já que a abertura total é inexorável.

A questão são os detalhes de como fazer a travessia do modelo atual para o totalmente livre. Criar uma transição equilibrada é um desafio complexo com a diversidade dos interesses envolvidos e a incerteza que a velocidade de expansão da minigeração distribuída solar traz.

“Desde 2004 a expansão tem sido desequilibrada. Uma principal correção é permitir que a distribuidora compre como quiser. É preciso olhar a migração e os custos para equilibrar essa conta e fazer todos se beneficiarem da liberdade”, diz Edvaldo Santana, consultor e ex-diretor da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica).

“É preciso tratarmos os desequilíbrios, vamos abrindo e o mercado regulado ficará insustentável com consumidor com capacidade cada vez menor de pagamento”, afirma Marcos Madureira, presidente da Abradee (Associação Brasileira das Distribuidoras de Energia Elétrica).

A discussão sobre a abertura do mercado livre para a alta tensão coincide também com o debate de como será comercializada a energia de Itaipu, com a revisão do anexo C do Tratado da usina em 2023. Indústrias e comercializadoras buscam que boa parte dessa energia vá para o mercado livre. Hoje, a energia do Brasil é negociada através de cotas direcionadas para distribuidoras na região Sul e Sudeste.

Equilíbrio financeiro das distribuidoras
Há uma preferência, em uma ala minoritária das comercializadoras, de que a abertura total seja feita via lei e não portaria, por assegurar maior proteção legal, principalmente em relação a eventuais alterações políticas. A decisão do ministério é vista como uma tentativa de fazer o Projeto de Lei 414/21, de modernização do setor. ganhar tração em Brasília principalmente nas semanas entre o primeiro e o segundo turno. Levantamento da Abraceel (Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia Elétrica) aponta que 15 dos 32 parlamentares da Comissão Especial que analisaram o PL não se reelegeram.

A lei também poderia trazer mais estabilidade, principalmente com soluções legais para a transição do modelo, podendo reduzir ruído com as distribuidoras, o elo arrecadador da cadeia. Porém o histórico recente traz receios. “Tenho preocupação de que se possam colocar jabutis no 414”, diz Madureira.

O equilíbrio econômico-financeiro das distribuidoras é cláusula pétrea dos contratos de concessão. O modelo atual, sancionado em 2004, é baseado na contratação de energia pelas distribuidoras em leilões anuais, em que os geradores ofertam energia em contratos de longo prazo, que valem de 25 a 35 anos, o que também contribui para financiar os projetos.

São os chamados contratos legados. Abrir o mercado implica resolver os contratos legados e redefinir o papel das distribuidoras, por exemplo com a separação entre fio e energia.

Mecanismo para cobrir custos
Estudo da PSR para o Ministério da Economia aponta que a abertura deveria incluir um mecanismo para cobrir os custos desta transição a ser aplicado aos consumidores cativos, livres e autoprodutores para que essa mudança regulatória não onere ainda mais o ambiente regulado, que tem arcado com os custos da sobrecontratação com o avanço do mercado livre.

Nos cálculos da PSR, as distribuidoras atualmente possuem um volume relevante de energia já contratada para os próximos anos, suficiente para atender 50% do mercado até 2030. Resolver isso é nevrálgico.

“A preocupação dos agentes associados aos contratos legados nos parece legítimas e urgentes, especialmente no contexto da abertura do mercado para consumidores da baixa tensão – aproximadamente 60% do mercado atual – e considerando o framework atual que aloca exclusivamente aos consumidores regulados os custos decorrentes da sobrecontratação devido à migração para o ACL”, aponta o estudo.

Advogados consultados apontam que, se a saída for mesmo a criação de encargo, ele terá de ser criado por lei. Mas criar um encargo é uma opção mal-vista por alguns setores, como a Frente Nacional dos Consumidores. Além de haver divergências entre agentes sobre a criação de um novo encargo, há também discordâncias sobre de quem ele deveria ser cobrado.

Desconto da TUSD preocupa
Uma outra preocupação é a abertura à baixa tensão sem travar o desconto da energia incentivada aos potenciais migrantes, o que poderá ter um impacto elevado para a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético). “Isso pode trazer um impacto muito alto para a CDE e, consequentemente, para as tarifas do regulado”, diz um diretor de uma das maiores geradoras privadas.

No mercado livre, há subsídios não extensíveis aos consumidores regulados. Um deles é o desconto na TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição) incidente sobre a geração e o consumo das fontes incentivadas (renováveis).

Nesse caso, é estendido aos consumidores livres que compram contratos dos geradores incentivados o direito ao desconto nas suas tarifas de uso do sistema de transmissão ou distribuição (TUST ou TUSD). O desconto na TUSD para consumidores em Média e Alta Tensão no ACL é de, no mínimo, 50% da tarifa.

A manutenção do desconto na tarifa de transmissão para o consumidor de baixa tensão poderá criar possibilidade para o residencial contratar energia incentivada tendo um desconto de R$ 150 a R$ 200 o MWh na tarifa fio, bem acima do que os consumidores do Grupo A conseguem hoje.

Há também uma ala de agentes que enxerga uma oportunidade nesse momento em que se discutirão a abertura total e a renovação dos contratos de distribuição, um tema que afeta 55 milhões de consumidores e empresas que atendem a cerca de 60% do mercado. A primeira a ser submetida ao processo será a EDP, que comprou em 1995 a Escelsa, a distribuidora capixaba então federalizada.

Discutir essa renovação sob o contexto da transição energética seria contribuir para a modernização do setor. “A repactuação dos contratos de concessão de distribuição é uma oportunidade ímpar para essa grande transformação na gestão de redes e no desenvolvimento de novos modelos de negócio no mercado de energia elétrica”, diz um consultor.

Regras de segurança do mercado
Com mais consumidores livres, mais empresas negociando energia, cresce também a discussão sobre o aperfeiçoamento de regras de segurança do mercado, um tema que se arrasta, pelo menos, desde 2019, quando duas comercializadoras quebraram e provocaram um rombo de R$ 200 milhões. Uma das reflexões é sobre a importância de chamada prévia de margem, um tema que provoca ruídos no setor e está longe de ser unanimidade.

“Esse é um tema muito importante, não se pode jogar ficha sem dinheiro. O comercializador pode tomar posição e não ter lastro e deixará o cliente na mão. Isso está ligado à figura do supridor de última instância à inadimplência sob o varejista”, diz o vice-presidente comercial da AES Brasil, Rogério Jorge. A opinião está longe de ser unânime. Uma parte do setor defende a crescente bilateralização dos contratos.

Governança fortalecida
Outra discussão a ganhar corpo com a abertura total será o fortalecimento da governança do setor, hoje muito orientada pelo clima pós racionamento de 2001. Para o ex-diretor da ANEEL Edvaldo Santana, esse é um ponto essencial.

“A CCEE foi reestruturada no meio do racionamento de 2001-2002, em uma intervenção, e foi reformulada em 2004 apenas para retirar a palavra ‘mercado’ e ampliar a intervenção, no caso, com um forte aparelhamento. Desde então, a CCEE deixou de defender, com ênfase, o mercado livre. Defende uma boa contabilização e liquidação, e com modelos matemáticos. O ONS tem a mesma origem. O conselho de administração, de um lado, pouco apita, e, se apitasse, seria pior, devido aos conflitos de interesses. Melhorou muito, mas, junto com a “regulação parlamentar”, o excesso de intervenção na operação do sistema é importante fonte de ineficiência do setor”, disse Edvaldo.

O setor elétrico discute a modernização e a abertura há duas décadas e com mais intensidade desde a Consulta Pública 33, em 2017. Tem também debatido a neutralidade tecnológica. Para avançar de fato, será preciso que os agentes sentem à mesa e cedam em alguns pontos, com neutralidade parlamentar e jurídica.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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