A transição energética que podemos, que devemos ou que queremos?

Marcelo Araújo*

Temas de alta complexidade e incertezas precisam de abordagens sistêmicas, com inteligência de informações e pesquisas, paciência para debates e construção conjunta e, em especial, resiliência, pois nem tudo dará certo na primeira tentativa. Vale aqui a máxima do jornalista americano Mencken que postulou há mais de cem anos: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”

Começando do começo: nosso problema é o aquecimento global, com seus potenciais impactos dramáticos sobre o clima e a vida das pessoas, impacto muito difícil de mitigar, em especial para países pobres ou mesmo populações pobres de países ricos.

O diagnóstico aponta para o aumento da emissão de gases de efeito estufa pela ação do ser humano, principalmente C02 e Metano, com a geração de energia, industrialização, agropecuária, desmatamento, transporte, consumo, entre outros. Ou seja, tudo o que foi fundamental para a expansão e melhoria da qualidade da vida humana nos últimos 200 anos precisa ser repensado, o que já nos dá a dimensão da complexidade que enfrentamos.

O recente e excelente estudo Transição Eficiente no Brasil (EPE-IRENA-CEBRI) afirma que não existe solução elegante do tipo “one size fits all” para a transição. E mais: as soluções potenciais ainda são, e serão por algum tempo, mais caras, impondo elevado custo às sociedades. O desafio, portanto, assemelha-se ao de um médico que irá tratar um paciente gravíssimo, sabendo que, na maioria das vezes, a diferença entre o remédio que irá salvar e o veneno que irá matar é apenas a dose. E as pesquisas para descobrir os remédios ainda estão em sua fase inicial, o que tempera a complexidade com alta dose de incerteza.

Além de mitigar as diversas fontes de emissão de carbono, cada país deve buscar sua melhor equação de transição para a geração de energia e para o transporte. O Brasil se sai muito bem em ambas. Como uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, com 48% da oferta interna de energia de fonte de renovável, temos um cenário muito diferente do resto do mundo, onde 86% da oferta interna de energia é de fonte não renovável – ou 89% considerando países OCDE (EPE- Atlas da eficiência energética, 2021). Da mesma forma, em 2020 nossa matriz de transportes carregou 25% de biocombustíveis, contra 3,7% na média global, de acordo com o World Energy Outlook (IEA 2022).

Diferente do que pode parecer uma análise superficial das notícias na mídia e todo o “buzz” em torno dos carros elétricos, o mundo não parece estar em uma corrida nem uniforme nem desenfreada nesta direção. Na semana passada, no Congresso Internacional de Motores na Alemanha, dr. Gunter Fraidl, vice-presidente de Powertrain da AVL, uma das empresas líderes em tecnologia de mobilidade no mundo, analisou a abordagem de eletrificação de veículos leves em diferentes regiões, de forma no mínimo instigante.

Ele enxerga uma Europa dogmática, acreditando ser esse o melhor e único caminho, ainda que com grande risco de desindustrialização de sua poderosa cadeia automotiva. A China, pragmática como sempre, apostando alto e certa de sua escala e competitividade em custos para dominar a indústria global. Os Estados Unidos, oportunistas, analisando os incentivos embutidos no “Inflation Reduction Act”, não dão sinais que asfixiarão sua indústria de petróleo ou de veículos. Já o Japão, baseando-se em fatos e dados, busca o equilíbrio entre a intensidade de carbono das diferentes alternativas com seu crítico suprimento de energia. Para o resto do mundo, na visão do cientista, a eletrificação será muito limitada, em especial por conta dos elevados custos e dificuldade de acesso à tecnologia.

Mas e o Brasil? Liderando o mundo no uso de biocombustíveis com nossa tecnologia flex presente em quase 75% dos veículos leves, não há que se falar em subsidiar carros elétricos, ainda que estes sejam muito bem-vindos em nossas ruas e cidades. E mesmo para veículos pesados, onde a eletrificação encontra barreiras técnicas ainda intransponíveis, temos uma gigantesca oportunidade de descarbonização através dos biocombustíveis.

Com o Rota 2030 (MDIC) e o Programa Combustível do Futuro (MME), o governo brasileiro tem duas poderosas ferramentas para estimular a eficiência e incrementar o uso de combustíveis sustentáveis, de baixa intensidade de carbono e o desenvolvimento de tecnologia veicular nacional. Os chamados combustíveis renováveis avançados, como o HVO (Diesel Verde), o diesel coprocessado, o SAF (querosene de aviação sustentável) e o biometano, somar-se-ão ao biodiesel, já adicionado à fração de 10% em volume ao diesel – e com perspectivas de crescimento no futuro próximo, para descarbonização ainda maior da nossa matriz de transportes.

Estima-se que o biorefino, em novas instalações ou conversões parciais do atual parque de refino, possa processar ou coprocessar óleos vegetais, óleos de reuso, gordura animal e outras fontes de biomassa, adicionando outros 10% em volume de diesel renovável até 2050, com até 85% de redução das emissões de gases de efeito estufa. Serão necessários vultuosos investimentos nessa direção, mas que podem fazer com que a descarbonização da nossa matriz, extremamente custosa em muitos países, possa, na verdade, ser grande fonte de riqueza e crescimento ao Brasil. Somos um dos poucos lugares do mundo que reúne alta tecnologia e custo competitivo na produção de biomassa, indústria de óleo e gás vigorosa, tecnologia automotiva e um robusto mercado consumidor.

Teremos que ser rápidos, pois a corrida global já começou. Projetos de biorefino para produção de HVO e SAF pipocam pelo mundo e já disputam recursos dos investidores e acesso à matérias-primas com estruturados programas de incentivo e financiamentos. Precisamos viabilizar os investimentos em biorefino para agregar valor à nossa disputada matéria-prima e não perdê-la para plantas no exterior. Mas, mais do que isso, urge equacionar a regulação para que os produtos renováveis sejam incorporados ao nosso mercado e não exportados, mais uma vez, em longos contratos de off-take, acordados na partida desses empreendimentos. Não precisamos nos limitar à transição que podemos, muito menos aceitar que devemos seguir o caminho europeu ou norte-americano. Temos a enorme chance de perseguir a transição energética que queremos, aproveitando nossa privilegiada posição no cenário global de energia. A aposta em biocombustíveis e biorefino é uma solução que requer planejamento, incentivos e senso de urgência. O Brasil merece agarrar essa oportunidade.

*Marcelo Araújo é diretor-executivo corporativo e de participações do Grupo Ultra e presidente do conselho de administração da Associação Brasileira de Downstream do IBP (Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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