Renovação das ferrovias: qual o caminho?

Dimmi Amora, da Agência iNFRA

O maior processo de investimentos na área de infraestrutura de transportes no país, a renovação antecipada das concessões ferroviárias, provocou certa tensão entre governo, empresas e órgãos de controle nas últimas semanas.

Com a promessa de investimentos que podem passar dos R$ 60 bilhões ao longo dos próximos anos, o governo tenta antecipar em quase uma década a prorrogação dos contratos de pelo menos cinco ferrovias. Em troca, quer melhorias na malha própria, um novo modelo de contrato para criar a competição interna nas ferrovias e investimentos em novas ferrovias em outros locais.

Mas o processo tem dividido o setor privado. Parte dele não crê que as regras postas até o momento sejam suficientes para, de fato, fomentar a competição, o que o governo garante que vai ocorrer.

O processo de renovação já vinha sendo conduzido com desconfiança por um histórico ruim que a primeira das ferrovias a ter o processo tornado público, a Malha Paulista, carregava de sua antiga acionista, a ALL. Os órgãos de controle impuseram exigências que levaram a uma reconfiguração do modelo inicialmente apresentando no início de 2017 e que ainda não está aprovado.

Agora, são os governos estaduais que entraram no jogo, exigindo uma nova configuração para os investimentos que resultarão do pagamento que as concessionárias têm que fazer pelo direito de explorar a ferrovia por mais tempo.

Nesta semana, a ANTT inicia os processos de audiência pública de mais duas concessões, a EFC (Estrada de Ferro de Carajá) e da EFVM (Estrada de Ferro Vitória-Minas), ambas da Vale. As sessões presenciais ocorrerão em São Luiz e Belém, na semana entre 14 e 17 de agosto; e em Belo Horizonte, Ipatinga e Vitória na semana entre 21 e 24 de agosto. As contribuições poderão ser enviadas até setembro.

Agência iNFRA entrevistou dois especialistas no tema para tentar ampliar o conhecimento e o debate sobre o processo: Bernardo Figueiredo, ex-diretor-geral da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do IBRE/FGV, que se dedicou nos últimos anos ao estudo de ferrovias.

Ambos apontam benefícios e dificuldades do processo, concordando que ele é essencial para o desenvolvimento do país que paga caro (e vai pagar cada vez mais) pelo abandono do seu sistema ferroviário por décadas. As conversas dos especialistas com a Agência iNFRA seguem abaixo.

Bernardo Figueiredo, ex-diretor-geral da ANTT e ex-presidente da EPL

Você declarou em artigo à Agência INFRA ser favorável às renovações. O que está errado com o processo? 
Acho que a antecipação da renovação da concessão é importante. É um ativo. Elas têm valor. Ao antecipar isso, antecipa um valor que pode se aplicar no melhoramento da própria malha ou em outras coisas. Pode ir para o Tesouro ou para o fundo que vai fazer parceria público privada, investimento, fazer mais ferrovias. Há uma crise fiscal e o estado não tem dinheiro. Mas tirar mais valia da ferrovia e não retornar em investimento em novas ferrovias, acho que a gente estaria perdendo uma oportunidade.

E o que não está adequado?
O segredo disso é como se calcula o valor de uma ferrovia. Tem duas alternativas: licitar ou repactuar. Qual o valor mínimo que vai orientar essa repactuação? É o valor que tem no mercado, o que era a outra opção. Você tem uma boa avaliação do valor de outorga dessas ferrovias olhando o que elas valeriam no mercado. Outra coisa é definir o que você quer com a renovação e o que vai gerar com a outorga. Tem que aumentar a capacidade porque vai chegar a Norte-Sul nas ferrovias, ou vai expandir a produção no Mato Grosso e tenho que aumentar a capacidade. Ótimo, faz o investimento para isso. O valor de outorga você calculou bem e ainda tem um valor sobrando, ele vai a um fundo para expandir a ferrovia. Aquela concessão está equacionada, no estado da arte, tem um bom ambiente regulatório definido, sem crise? Vou renovar e com o dinheiro, vou aplicar em mais ferrovias. Tem que fazer a Fico, a Fiol, a Ferrovia do Pará, do Paraná. Há grandes projetos que tem que ser feitos para um país que não tem logística.

Há garantias de que, da maneira como está, a atuação monopolista que se deu após a concessão da década de 90, pode acabar ou ser reduzida?
Não conheço ainda. Mandaram uma proposta em audiência pública [da Malha Paulista]. Teve contribuições e desenharam um novo projeto. Mas o novo eu não conheço. Então, agora, pelo que o TCU decidiu na Norte-Sul, parece que há uma convicção deles de que o direito de passagem tem que estar equacionado e não pode mais ficar em dúvida por 40 anos. O direito é um exemplo. Os trechos abandonados é outro exemplo. Não dá mais para conviver por 40 anos com trechos que não são ferrovia e nem outra coisa. O que não for viável para ferrovia, que seja outra coisa.

Por que você considera que o valor que se está se apurando com as concessões é inadequado?
É contra-intuitivo que a concessão de 30 anos de Carajás, que está duplicada e quem tem 180 milhões de toneladas de carga, ter valor perto de zero e a Norte Sul, que transporta 10% dessa carga de Carajás, é mediana, valer R$ 1 bilhão. Carajás tem que pagar uma conta do resíduo do valor que investiu na duplicação. Se pegar o preço de mercado que a Vale e MRS cobram de terceiros para transportar minério, com esse volume você gera muito recurso. Tem que fazer a conta da Vale como se fosse um prestador a prestar o serviço.

Os investimentos cruzados são a maneira mais racional de se usar o dinheiro das outorgas?
Obviamente há outras formas e até mais multiplicadoras do investimento que essa. Tem dois problemas. Estou contratando uma obra pública com recurso público. Eu poderia usar o dinheiro para dar como contrapartida de uma concessão nova. Quanto o concessionário pediria para construir e explorar a Fico, considerando que tem direito de passagem para a Norte-sul, em Carajás, na Malha Paulista? Eu consigo fazer melhor do que contratar a Vale para construir e jogar depois ao mercado?. Eu tendo a achar que o operador deve construir porque ele sabe qual é o melhor desenho da ferrovia para ele. Tudo tem vantagem e desvantagem. O investimento cruzado tem a vantagem de ser mais rapidamente a obra.

Qual é o custo de não fazer as renovações?
Quando pega o PNL e vê o carregamento da malha, tendo como referência a crise do caminhoneiro, que demonstrou que ele opera com frete que não remunera o custo dele, e a logística está toda na mão deles, mostra-se que isso não é sustentável. Não dá para andar longas distâncias de caminhão. Eu preciso construir ferrovia, uma modalidade mais econômica. No estudo da EPL, a carga agrícola é 12% da carga total. E 42% é carga geral e granel líquido. Essa carga geral está no sentido norte sul, entre Porto Alegre, São Paulo, Rio, Recife, Fortaleza. A carga transita nesse eixo. Então, se o país quiser ampliar a participação da ferrovia, tem que atender não só a demanda agrícola, que é 12%, mas também os outros 42%. E qual ferrovia estamos projetando para fazer esse atendimento da carga geral e do granel líquido? Foi isso que faltou quando o caminhoneiro fez a greve. A tabela de frete está refletindo o custo do caminhoneiro. Ele recebe menos que custa e trabalha em situações não sustáveis por isso. Quando o mercado retomar e tiver oferta e o caminhoneiro tiver poder de barganha, ele vai cobrar frete acima do custo dele. E, se não tiver alternativa, vamos perder competitividade e tudo ficará mais caro.

Armando Castellar, professor do IBRE/FGV

Por que você acha importante o país fazer a renovação antecipada das concessões ferroviárias?
É uma oportunidade de você fazer investimento na malha ferroviária para aumentar a participação das ferrovias no transporte de carga no Brasil, que é muito baixa dadas nossas condições continentais, o que onera muito nossos custos logísticos. Tanto estudos do Banco Mundial quanto do PNL (Plano Nacional de Logística) mostram que uma redistribuição da carga das rodovias para as ferrovias permitiria você economizar da ordem de 0,7% a 0,8% do PIB. E a prorrogação é a carta que você tem na manga para conseguir viabilizar os investimentos. Há também a redução de CO2, gases do efeito estufa, redução de acidentes, uma série de benefícios. E o que tem na mão para viabilizar é isso.

Há uma crítica a essa prorrogação sobre a manutenção de um sistema que em 20 anos desde a privatização, a rede se mostrou monopolista e pouco eficiente para reduzir o custo geral do transporte. Isso de fato ocorre?
A dimensão da renovação contratual, da modernização regulatória dos contratos, vai nessa direção de mudar o sistema. Ao se colocar o direito de passagem como preferencial, ao se abrir espaço para o operador ferroviário independente e cláusulas de arbitragem, mostra-se essa preocupação. Há também o aumento da capacidade. Os gargalos de capacidade tornam muito difícil você competir, se não tem capacidade para o concorrente passar. Na medida que tiver uma capacidade grande, fica mais interessante você ganhar dinheiro com tarifa de acesso. Além do incentivo ser maior com o aumento da capacidade, isso está contemplado no novo modelo regulatório. A prorrogação não é meramente fazer a renovação por investimento como contrapartida. Isso existiu um pouco nos portos, mas não é o caso das ferrovias.

As regras colocadas, no seu entendimento, seriam suficientes para estimular a competição interna no modal?
Não é fácil criar operadores independentes. Em nenhum país do mundo isso se mostrou tranquilo. Se olhar na Suécia, na Alemanha e Austrália tinham muito investimento, isso não faz, muitas vezes, cair o valor das tarifas. Em certo sentido, vamos estar financiando os investimentos com os recursos das outorgas e se abre espaço. Mas vai depender de como serão fixadas as tarifas de acesso, a disponibilidade de equipamentos. Nenhum mercado é fácil e particularmente os que dependem de capital. Mas sem fazer a modernização, você não terá nem isso. Não há nada além disso o que você possa fazer. Imagino que possam surgir empresas que usam muito transporte. Na Rússia, por exemplo, você tem muitas empresas que são donas de vagões. A estatal faz o transporte com suas locomotivas. Mas vai precisar ter mercado também. O que está sendo pensado aqui vai na direção certa.

A estratégia do governo de usar parte das outorgas para investir em novos trechos, na sua visão é produtiva? Ou pode trazer mais problemas ao processo?
Tendo a achar que é uma boa ideia. É um esforço para colocar o dinheiro onde ele pode dar mais retorno social. No caso onde a malha está congestionada, o investimento é na própria malha. É o caso da Malha Paulista, onde você tem gargalos nos corredores, muito saturados. Onde tem capacidade ociosa, como em Carajás, e você acabou de duplicar, não vai colocar mais capacidade ainda onde já há capacidade ociosa. Não me parece o melhor uso do recurso. Faz sentido colocar num local onde tem uma quantidade grande de carga para levar numa distância grande, para que faça sentido técnico e econômico.

Qual seria para o país o custo de não fazer essa renovação?
O primeiro custo imediato é esse aí de 0,7% a 0,8% do PIB o que é uma boa quantidade de dinheiro. É uma vez e meia o que investimos em infraestrutura de transporte por ano. Vai ter também uma quantidade de emissão de gases maior, mortes. E tem todo o benefício de quando um investimento ocorre que são as encomendas para a construção civil, para o setor de transportes, da indústria de máquinas e equipamentos. Tem também a eliminação de conflitos urbanos o que é mais de metade dos acidentes ferroviários atualmente. E tem um custo alto que é de combustível de veículo parado esperando os trens passarem. Tem uma série de problemas identificados que você tem a oportunidade de solucionar e ter um impulso nesse setor, dando um impacto econômico num momento de economia tão deprimida.

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