iNFRADebate: Novo Marco Legal das Ferrovias sinaliza nova era para matriz de transportes brasileira?

Mariana Avelar*

Após quase três anos de tramitação e graças à intensa atuação do seu segundo relator, o senador Jean Paul Prates (PT-RN), o projeto de lei saiu do Senado com compleição robusta: migrou de mero projeto instituidor das autorizações para o Novo Marco Legal das Ferrovias. 

A modernização da regulação e preocupação em viabilizar novos investimentos privados têm o potencial de reequilibrar a matriz de transportes brasileira e de criar fluxos logísticos para o crescente volume de cargas.

A instituição da autorização ferroviária em nível nacional é a principal inovação do projeto, que abre a possibilidade de construção e operação de ferrovias em regime privado, alternativo ao regime público de concessão. 

Nas autorizações há mais liberdade e mais responsabilidade por parte dos privados: o risco da operação e dos investimentos é privado e a regulação incidente é, por consequência, mais branda.

O novo marco (PLS 261/ PL 3.754) foi aprovado dias após o protocolo de diversos pedidos de autorização para construção de ferrovias em regime de direito privado com fundamento nas disposições da MP (medida provisória) 1.065: a confirmação do interesse do mercado, com a respectiva promessa de investimentos privados relevantes, incentivou a formação de coalizão entre governo e oposição para aprovação do projeto.

Conforme dados divulgados pelo Ministério da Infraestrutura, os pedidos de autorização já somam mais de 7 mil km de trilhos e R$ 100 bilhões em investimento: esse contexto favorável deverá influenciar a tramitação do PL (Projeto de Lei) 3.754 na Câmara dos Deputados, atualmente sob a relatoria do deputado Zé Vitor (PL-MG) e para o qual foi aprovado regime de urgência na tramitação.

Novo marco das ferrovias e sua corrida com dois cavalos: MP 1.065 vs PLS 261
A faceta final do projeto foi especialmente influenciada pelo texto da MP 1.065, que funcionou como válvula de pressão para acelerar a tramitação do PLS (Projeto de Lei do Senado), que há meses estava estagnada.

A corrida com dois cavalos, contudo, já enseja o primeiro dos desafios do novo marco legal: a convivência entre os pedidos de autorização já realizados sob auspício da MP 1.065 e aquelas que futuramente forem solicitadas em caso de aprovação do novo marco. 

Há grande temor quanto à forma de recebimento e processamento dos pedidos pelo Ministério da Infraestrutura. Somente em 15 de outubro foi emitido normativo que regulamenta o procedimento previsto pela MP 1.065. 

Existem projetos que se sobrepõem ou que coincidem com malhas já existentes e, dessa forma, há receio de que a possibilidade de competição inviabilize a financiabilidade das malhas. 

A portaria de regulamentação da MP indica, de forma ampla, que a regra é conferir a outorga a todos os requerentes, desde que haja compatibilidade locacional à implantação concomitante dos empreendimentos e desde que não se apresente outro motivo técnico-operacional relevante que impossibilite a concomitância dos empreendimentos.

Segundo definição proposta na regulamentação, a análise de compatibilidade locacional será feita no prazo de até 45 dias pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) – prorrogável por igual período – com objetivo de avaliar a “possibilidade técnica de implantação geométrica da infraestrutura ferroviária requerida por meio de autorização considerando as demais infraestruturas ferroviárias implantadas ou outorgadas que interceptem o traçado diretriz da ferrovia requerida”. Nas últimas semanas, a ANTT declarou a compatibilidade locacional de parte dos pedidos de autorização para construção de ferrovias, a gerar expectativa de que o processo de autorização seja concluído pelo Ministério da Infraestrutura antes que a MP 1.065 caduque.

Se não houver viabilidade locacional ou outro motivo técnico-operacional relevante que impossibilite a implantação concomitante de autorizações, a regulamentação prevê que será priorizada a análise dos processos de autorização de acordo com a ordem de apresentação da documentação completa: é a clássica situação do first come, first served.

O tema ensejou questionamentos na via administrativa e judicial e antecipa um risco que já era vislumbrado pelo mercado, qual seja, o de que players interessados em manter sua situação monopolista turbem a iniciativa daqueles interessados em desenvolver projetos privados de infraestrutura pela via da autorização.

É possível que nova solução seja sugerida durante a tramitação do projeto na Câmara, com aprimoramento das regras de transição previstas que preservem a situação das autorizações já requeridas.

O estado da arte: PLS 261 e MP 1.065
Tanto o texto final do PLS 261 quanto o da MP 1.065 apresentam os mesmos elementos centrais: deseja-se reestruturar o setor ferroviário e incrementar seus regimes de outorga, bem como trazer para o nível legal uma maior variedade de operadores para além das concessionárias. As normas abordam a organização do transporte ferroviário, o uso da infraestrutura ferroviária, os tipos de outorga para a exploração indireta de ferrovias em território nacional bem como as operações urbanísticas a ela associadas.

Como antecipado, o PLS 261 acabou por incorporar boa parte das inovações trazidas pela MP, diferindo, contudo, em relação ao arranjo institucional proposto; enquanto a MP centraliza decisões na Administração Direta – em especial no Ministério da Infraestrutura –, o PLS mantém deferência à atuação da ANTT, seguindo a tendência das autorizações outorgadas em outros setores da infraestrutura.

Ainda, o PLS traz disposições sobre (i) destinação de outorgas multas e indenizações, (ii) metas de desempenho, (iii) seguros obrigatórios e (iv) regras de segurança e vigilância que não apresentam correspondência na MP; a esse respeito, teme-se que a hiper-regulação técnica acabe por sufocar o desejo por maior flexibilidade no setor.

É de se evidenciar ainda que alguns destaques votados pelos senadores implicaram alterações relevantes ao texto do substitutivo relatado pelo senador Jean Paul Prates, que aceitou parte das alterações após negociações em plenário.

As principais alterações negociadas dizem respeito a: (i) eliminação da figura do “concurso aberto” para reserva de capacidade nas ferrovias autorizadas; (ii) redução do prazo para reequilíbrio das concessões afetadas pela pandemia do coronavírus (de 24 para 12 meses); (iii) ajustes nas disposições que conferem direito de preferência às concessionárias em relação às autorizações pretendidas na área de influência da sua concessão, pelo prazo de 5 anos, para excetuar as autorizações já em andamento.

Ainda, o destaque para retirar a permissão de uma concessão ser transformada em autorização foi rejeitado. A manutenção do dispositivo – que ainda poderá ser aprimorado na Câmara – é relevante para evitar efeitos perniciosos relacionados às assimetrias regulatórias entre ferrovias concedidas e autorizadas.

A que será que se destina?
Nota-se pelas declarações de agentes relevantes do executivo federal, bem como de players do mercado, uma divisão quanto às apostas sobre a vocação das ferrovias autorizadas.

Serviriam, como na experiência dos Estados Unidos, para conferir maior capilaridade ao sistema ferroviário ou seriam alternativas para construção e expansão de linhas centrais/tronco? 

Tal como está, o marco não apresenta resposta fechada para o tema; uma breve análise dos pedidos de autorização já realizados sob auspício da MP revelam projetos com menos de 10 km de extensão (como o trecho Perequê/Cubatão/SP ao Tiplam/Santos/SP) até ferrovias interestaduais de milhares de quilômetros (como o caso do projeto Petrocity Ferrovias entre a Barra de São Francisco/ES e Brasília/DF).

Independentemente do porte das ferrovias, é necessário lembrar que, ainda que o regime da autorização seja privado, há incidência de relevante regulação pública bem como grande número de atos de liberação necessários à implementação e operação da ferrovia autorizada. A garantia de celeridade na tramitação desses atos é fundamental para o bom andamento dos projetos a serem desenvolvidos. É igualmente importante que se reduza o fardo regulatório incidente sobre as ferrovias autorizadas, em comparação com as concedidas.

Com tantos desafios e impasses, ainda é cedo para dizer se o “Brasil está de volta nos trilhos”. O tratamento de pontos sensíveis pela Câmara será essencial para enfrentamento dos desafios apontados. Ao contrário do que possa parecer, a articulista permanece otimista: a aprovação do PLS 261 pelo Senado já é razão para se comemorar a retomada da agenda ferroviária pelo Congresso.

*Mariana Avelar é advogada da Manesco Advogados especialista em ferrovias.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

Tags:

Compartilhe essa Notícia
Facebook
Twitter
LinkedIn

Inscreva-se para receber o boletim semanal gratuito!

Assine nosso Boletim diário gratuito

e receba as informações mais importantes sobre infraestrutura no Brasil

Cancele a qualquer momento!

Solicite sua demonstração do produto Boletins e Alertas

Solicite sua demonstração do produto Fornecimento de Conteúdo

Solicite sua demonstração do produto Publicidade e Branded Content

Solicite sua demonstração do produto Realização e Cobertura de Eventos