Extinção da ANTT e da ANTAQ e criação de nova agência reguladora de transportes terrestres e aquaviários

Mauricio Portugal Ribeiro[1]

A Agência Infra antecipou no dia 21/12/2018 que o Governo Bolsonaro pretendia realizar fusão entre a ANTT – Agência Nacional de Transportes Terrestres e a ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Aparentemente, a rigor, a intenção do Governo é extinguir ambas as mencionadas agências e criar uma nova agência que enfeixe as competências e atribuições das duas anteriores.[2]

Antes de seguir falando desse tema, acho importante mencionar para o leitor que sou advogado, especialista nos setores de infraestrutura, e atualmente advogado de várias concessionárias em processos perante agências reguladoras, inclusive ANTT e ANTAQ.

Trata-se de agências reguladoras que têm sido incapazes de lidar com problemas graves nos respectivos setores, que se arrastam há anos. Por exemplo, entre outros tantos problemas, vale citar: a necessidade de reestruturação de pelo menos 5 contratos de concessões federais de rodovias assinados entre 2010 e 2014, que, se não forem reestruturados, caminharão para a rescisão ou caducidade com graves prejuízos para todos envolvidos, particularmente para os usuários dos serviços; a necessidade de criar uma regulação adequada para o transporte multimodal, algo que requer, no cenário atual, coordenação entre a ANTT e a ANTAQ e que até o presente não se mostrou viável; o estabelecimento de uma nova relação com o TCU e com os demais controladores da Administração Pública, que, como já notei em outro artigo publicado recentemente, viraram cogestores dessas agências; enfim, o restabelecimento da credibilidade das agências como entes imparciais entre Governo, concessionário e usuários, capazes de solucionar os conflitos com decisões técnicas que assegurem o cumprimento das leis e dos contratos.

Creio que já está claro para qualquer um que acompanha o setor de transporte que esses problemas não serão resolvidos pelas estruturas atuais. Portanto, por trás dessa iniciativa de criação de uma nova agência, aparentemente há a percepção de que as agências existentes não cumprem suas funções e não serão capazes de cumpri-las.

Note-se que não se trata de uma descoberta nova. Já em 2015, quando Joaquim Levy era Ministro da Fazenda do Governo Dilma, isso era claro para os especialistas no tema. O anteprojeto de lei do PPP Mais, elaborado por uma comissão de juristas nomeada nessa época por Levy e capitaneada pelo Professor Carlos Ari Sundfeld – apesar de alguns equívocos, que apontei em outros estudos – percebia esse problema e adotava uma estratégia de tirar das agências reguladoras todas as decisões finais relevantes na esfera administrativa sobre os contratos de concessão e PPP. Naquela época, mencionei, em artigo que publiquei sobre o regime dos contratos previsto no Anteprojeto do PPP Mais, o enorme custo para a sociedade de manter as agências reguladoras funcionando, mas transferir todas as decisões que elas deveriam ser capazes de tomar para painéis de especialistas, árbitros ou outras entidades, que cobram, como é natural, preço para assumir essas atribuições. Era, então, clara a necessidade de reestruturar as agências particularmente as do setor de transporte terrestre e aquaviário. A opção, contudo, do PPP Mais era pelo esvaziamento das agências.

Agora, se entendi bem, a opção do Governo Bolsonaro é pela extinção das agências existentes e criação de uma nova agência forte e com condições institucionais de independência para desempenhar adequadamente o seu papel. Essa solução, do ponto de vista teórico, é melhor que o esvaziamento das atribuições das agências anteriormente proposta.[3]

Em 2016, escrevi em coautoria com Eduardo Jordão, 3 artigos, depois consolidados em um artigo maior, mostrando as diversas formas pelas quais as agências foram desestruturadas nos últimos 15 anos, pelo próprio poder executivo, pela atividade dos órgãos de controle e pela atividade das próprias agências, dos seus diretores e corpo técnico. Vários dos problemas que analisamos atingiam a ANTT e a ANTAQ. Particularmente, essas agências perderam condições institucionais de independência. O golpe de misericórdia em relação a esse tema, para ambas as agências, foi a nomeação de diretores interinos, sem mandato, demissíveis a qualquer tempo pela então Presidente da República, o que eliminou suas condições institucionais de independência política.[4]

O Governo Temer restabeleceu as condições institucionais de independência, seguindo nas nomeações de diretores dessas agências o processo previsto em lei: submissão dos nomes ao Poder Legislativo para sabatina, aprovação e atribuição de mandato. Contudo, malgrado alguns diretores nomeados terem alguma relação com os setores regulados, o fundamental para a sua nomeação era a conexão política com senadores da base aliada no Congresso Nacional. O resultado disso foi que a ANTAQ e a ANTT continuaram incapazes de resolver os maiores problemas que estão em suas mãos.

No caso da ANTT, por exemplo, houve algumas oportunidades, para reestruturar os contratos de concessão de rodovias mencionados. Essas oportunidades foram perdidas. A mais notória foi a criada pela Medida Provisória n° 800/17, que permitia a reprogramação de investimentos dos contratos de concessão de rodovias, e que se extinguiu sem que a ANTT tivesse praticado os atos que lhe cabia. Agora, os descumprimentos de vários desses contratos – por todas as partes envolvidas, União, ANTT e concessionários – estão submetidos ao Poder Judiciário ou a tribunais arbitrais, assim como a discussão sobre sua extinção antecipada, indenização por investimentos não amortizados e aplicação de quaisquer sanções, o que paralisou o cumprimento de obrigações relevantes desses contratos. A inércia da ANTT foi sem dúvida o motivo central para a escalada dos conflitos, situação que foi várias vezes prenunciada.[5]

A principal razão para a paralisia nos últimos anos dessas agências foi o temor dos órgãos de controle, particularmente da sua atividade de aplicação de sanções pessoais aos agentes públicos envolvidos em decisões das quais os órgãos de controle, por qualquer motivo, discordem.[6]

Entre os diretores e técnicos da agência, as estratégias mais comuns para lidar com o temor ao TCU são: (i) ou negar qualquer pedido em favor de concessionários, mesmo que eles sejam respaldados em normas legais ou contratuais, o que tem levado os temas ao Poder Judiciário ou à arbitragem; ou (ii) não decidir pleitos que tenham a aparência de serem a favor de concessionários, o que significa represar, por exemplo, pleitos de reequilíbrio com custos relevantes para concessionários e usuários dos serviços[7]; ou ainda (iii) delegar a órgãos subordinados a prática de atos, que, pela sua relevância não deveriam ser delegados.[8] Exemplos dessas estratégias não faltam nas agências mencionadas.

Percebendo a continuidade durante o Governo Temer da debilidade técnica das agências e o temor dos agentes públicos às punições pessoais, o TCU e Ministério Público avançaram sobre as suas competências e viraram cogestores delas. Isso piorou ainda mais a situação de absoluta insegurança jurídica da regulação desses setores. Atualmente, qualquer decisão dessas agências pode ser reaberta a qualquer tempo pelo TCU ou pelo Ministério Público e considerada ilícita.

Com todos esses problemas acumulados ao longo de anos, como imaginar que ANTT e ANTAQ serão capazes de – com diretores que são mais políticos que técnicos, alguns deles inclusive com problemas reputacionais notórios – reestruturar contratos de concessão em curso? Como imaginar que eles serão capazes de estabelecer uma nova relação com os controladores da Administração Pública? Como imaginar, enfim, que eles serão capazes de recuperar a credibilidade dessas agências reguladoras de modo reestabelecer o mínimo de segurança jurídica para dar continuidade ao programa de desestatização nesses setores?

Note-se que a extinção de agências e criação de uma nova que congregue as competências das anteriores não é algo completamente novo entre nós. Já aconteceu no Espírito Santo, com a extinção da ARSI – Agência Reguladora de Saneamento Básico e Infraestrutura Viária do Espírito Santo e da ASPE – Agência de Serviços Públicos de Energia do Estado do Espírito Santo para criação da ARSP – Agência de Regulação de Serviços Públicos. Nesse caso, a decisão foi do Governador Paulo Hartung e aparentemente a razão central era racionalizar despesas. Não havia então um problema de má qualidade da regulação. Portanto, por muito menos do que os problemas que se enfrenta atualmente com ANTT e ANTAQ, se fez a extinção das agências mencionadas e recriação de uma única agência.

Quanto à discussão teórica sobre os prós e contras de se criar agências multi-setoriais ou agências dedicadas a cada setor, ela não é conclusiva. Se por um lado, agências multisetoriais podem ter ganhos com o aproveitamento da experiência e de mecanismos regulatórios usados nos vários setores que regula, por outro lado, agências focadas em um único setor tendem a atrair e acumular maior expertise sobre o setor regulado.

Enfim, a extinção da ANTT e da ANTAQ para a criação de uma nova agência que agregue as suas competências atuais pode ser controversa – particularmente porque a extinção das agências implicará em extinção dos mandatos em curso dos diretores – mas me parece que das soluções até aqui aventadas para os problemas estruturais dessas agências, sem dúvida, é a melhor. E me parece auspicioso que finalmente um Governo, nos seus níveis mais altos, esteja disposto a enfrentar os problemas concretos da regulação nos setores de transporte, que por tanto tempo, desde pelo menos o Governo Fernando Henrique, sempre foi tocado mediante barganhas políticas.

Se, juntamente à criação da nova agência, o Governo ainda adotar algumas das sugestões seguintes, teremos avançado de forma relevante:

  • usar a experiência dos últimos 15 anos para prever mecanismos legais para evitar a captura da agência por Governos, reforçando os instrumentos tradicionais que conferem independência política, administrativa e financeira à nova agência, inclusive eliminando a possibilidade de diretores interinos após o período entre a sua criação e a sabatina e aprovação dos novos diretores;
  • tornar expressamente ilegal a utilização de recurso hierárquico impróprio, que na prática permite aos ministérios setoriais se substituírem ao papel das agências reguladoras;
  • prever a necessidade de cumprimento pelos diretores de requisitos técnicos mínimos e de independência em relação ao sistema político partidário – para isso, poderia ser aproveitado com as devidas adaptações as exigências do artigo 17 da Lei Federal 13.303/16;
  • indicar para a função de diretoria pessoas que tenham reputação e competência incontestes. Seria importante também o Governo atrair para essas posições algumas pessoas do setor privado, por exemplo CEOs de empresas nos setores de infraestrutura, que conheçam as dificuldades concretas de realizar investimentos e operar infraestruturas no Brasil para conduzir o processo ao mesmo tempo de redução e fortalecimento da regulação;
  • prever autorização legal para reestruturar os contratos de concessão em curso, inclusive deixando claro que, para isso, não há limite de alteração a esses contratos, sendo viável suprimir investimentos, remodelar a aplicação do Fator D, além de prever expressamente que isso pode ser feito diretamente com os concessionários ou como parte de um acordo nas instâncias arbitrais e judiciais, mediante reequilíbrio do contrato e possibilidade de conversão de multas e descontos de reequilíbrio (ou Fator D) em investimentos ou dilação da sua aplicação para criar condições de financiamento para os investimentos a serem realizados;
  • prever autorização legal para, como parte desses processos de reestruturação, autorizar a transferência do controle de concessões quando isso for necessário para o sucesso da reestruturação, inclusive com a possibilidade de realização da reestruturação, com efetividade condicionada à transferência de controle para acionista que cumpra as exigências legais e contratuais para tanto e que demonstre capacidade de financiar e operar o projeto;
  • previsão legal de limites à ingerência do TCU e do Ministério Público nas decisões que integrem a atividade finalística da agência;
  • previsão legal de alguma forma de proteção aos agentes públicos contra processos abertos por controladores da Administração Pública, por exemplo a contratação obrigatória pela agência de seguro de responsabilidade profissional para os seus diretores e superintendentes (conhecido como “D&O”) e a exigência da agência custear, especialmente quando não houver prova de benefícios pessoais decorrentes das suas decisões, a defesa dos seus funcionários em processos na esfera administrativa ou judicial, de modo a criar as condições para que os funcionários possam priorizar o interesse público à autoproteção contra os controladores da Administração Pública;
  • a previsão de regras para contratação de consultorias para a estruturação de projetos, semelhantes às “short lists” do Banco Mundial ou do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento, para acabar com a lamentável prática de contratação por meio de pregão de atividades de consultoria sofisticadas – aliás, o uso do pregão é mais um exemplo de decisão adotada por agentes públicos para autoproteção, deixando de lado o interesse público de contratar a melhor consultoria, ainda que por preços mais altos que os que se obtém nos pregões;
  • a criação de uma carreira de procurador das agências autônoma em relação à AGU, e de mecanismos para a participação formal da União, como parte, nos processos que tenha interesse perante a agência, de maneira a superar a natureza inquisitorial dos processos administrativos perante as agências, nos quais a agência e particularmente a sua procuradoria, representem ao mesmo tempo o interesse público tal como definido pela União e o interesse da agência enquanto órgão que deveria ser imparcial entre o Governo, os concessionários e os usuários;
  • estender por lei a possibilidade de utilização de arbitragem para abarcar (1) a possibilidade de apreciação da causa para a aplicação de quaisquer penalidades e, portanto, a possibilidade de anulação de penalidades, particularmente, multas e caducidade, e (2) a rescisão contratual por descumprimento do contrato pelo poder público;
  • incluir cláusulas arbitrais com amplo espectro de aplicação em todos os contratos em curso nos quais não há cláusula arbitral; e,
  • estabelecer prazos claros para a realização dos reequilíbrios dos contratos pela ocorrência de eventos que são risco do poder concedente e afetem aos concessionários econômica e/ou financeiramente, após o qual o concessionário ficaria autorizado a submeter a questão ao juízo arbitral.

Por fim, acho importante afirmar que nossa história recente deixa claro que o funcionamento de órgãos reguladores não depende apenas de decisões abstratas e genéricas sobre a sua estrutura institucional. A construção de uma regulação adequada é tarefa do dia a dia, que não depende apenas de instituições fortes, mas também da escolha de pessoas, nesse caso diretores e técnicos, competentes e corajosos para fazer valer os contratos e a lei.

[1] Especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura, autor de vários livros e artigos sobre esse tema, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, Mestre em Direito pela Harvard Law School, Ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.
[1] Gostaria de agradecer a Antônio Júlio Castiglioni Neto pela gentileza no envio de informações sobre a recente fusão das agências reguladoras no Estado do Espirito Santo e a Gabriela Miniussi Engler Pinto pela discussão dos temas tratados nesse artigo e pela revisão do seu texto
[2] Aparentemente, o Projeto de Lei n° 1615/1999, enviado ao Congresso por meio da Mensagem do Poder Executivo n° 1268/99 – que resultou na Lei 10.233/01, que criou a ANTT e ANTAQ – previa originalmente uma só agência, a Agência Nacional de Transportes. Ao longo da sua tramitação legislativa é que houve o desdobramento para criação das duas agências atualmente existentes.
[3] O ideal seria as agências serem reestruturadas para serem a instância máxima na via administrativa e a utilização ampla da arbitragem ser adotada como um meio de substituição da atividade do Poder Judiciário.
[4] Paradoxalmente, Dilma nomeou como diretores interinos quadros técnicos das agências.
[5] Mencionei em vários artigos que esse seria o desfecho desses contratos. Vide o seguinte artigo sobre o erro na distribuição de riscos dos contratos de concessão de rodovias e aeroportos celebrados entre 2012 e 2014 no âmbito federal. Vide também o seguinte artigo sobre o fato do Governo Temer não ter incluído na Medida Provisória sobre o PPI a tentativa de resolver o problema dos contratos de concessão de rodovias em curso. E o seguinte artigo que publiquei em comentários à medida provisória que aprovou as regras sobre relicitações.
[6] O caso mais emblemático no setor de transportes terrestres foi o da Nova Subida da Serra, no qual o TCU ameaçou punir agentes públicos com multas e inabilitação para o exercício de funções públicas por até 8 anos sem que houvesse qualquer prova no processo de benefício pessoal desses agentes públicos com a decisão de assinar aditivo ao contrato de concessão da CONCER. No setor de transportes aquaviários, se tornaram emblemáticas as sanções aplicadas recentemente aos diretores da ANTAQ na discussão sobre a cobrança do THC2.
[7] Sobre represamentos de reequilíbrios, vide o seguinte artigo.
[8] Exemplo desse último caso é a delegação pela diretoria da ANTT a superintendentes da prática de atos tão graves quanto a abertura de procedimento preliminar para decretação de caducidade. Como já notei em outro trabalho, a abertura desse procedimento é um ato tão grave, que deveria ser decidida pela diretoria da agência, e acrescento agora que faria sentido que o seu regimento interno exigisse um quórum qualificado para essa decisão. É que a mera ameaça de abertura de um processo de caducidade pode por si desencadear a bancarrota de um concessionário, com vencimento antecipado dos seus financiamentos e outras consequências que inviabilizam o cumprimento de qualquer contrato de concessão.

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